quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES - 9a. parte: O druida celta e a promessa de amor  
MILTON MACIEL  

Fim da 8ª. parte
– Bem, isso é tudo que eu posso fazer agora. Cubra a sua cabeça com o manto, amanhã, à luz do dia, tentarei fazer um serviço melhor, usando tesouras. E trate de improvisar, com suas próprias vestes, algo que fique um pouco menos feminino. Use este meu manto preto, que ficará enorme em você, mas permitirá que se cubra da cabeça aos pés. Vamos voltar a cavalgar e dentro de pouco tempo o meu novo ajudante de ordens, o jovem gaulês Gilles de Troyes estará jantando comigo na abadia. Eu contarei a meus pares como tive a felicidade de encontrar um jovem tão inteligente e que sabe ler muito bem, em plena região camponesa.

E assim começaram, senhores, aqueles que seriam os três anos mais felizes da minha vida.

9ª parte:
 Naquela primeira noite eu não quis comer nada! Minha excitação, que era imensa,  só era superada por meu medo de ser descoberta e desmascarada pelos outros frades. E pelos estudantes, no dia seguinte, na escola. Meu cabelo devia estar um horror e minhas roupas improvisadas por mim mesma no escuro, sem uma tesoura que fosse... Assim cheguei e fui me enfiar correndo em meu alojamento. Este, para minha surpresa, ficava dentro dos aposentos do abade. Achei aquilo ótimo, eu estaria sob a proteção direta do superior da abadia.

O abade veio me fazer companhia depois de ter jantado e conversado com seus pares por um bom tempo. Já devia ser perto de meia-noite quando ele entrou em meu quarto, pé ante pé, procurando verificar se eu dormia com conforto e tranqüilidade. Mas eu não conseguia pregar olho, estava apavorada. Quando o abade voltou-se, para retornar a seu grande dormitório, eu falei:

– Não consigo dormir senhor. Estou muito assustada.

Ora, mas por que? Sente-se insegura? É o escuro?

Não pude deixar de rir ante aquele absurdo:

– Insegurança? Medo do escuro? Ora, senhor abade, por quem me toma? Não, meu problema é outro. Tenho receio que os frades e os estudantes me desmascarem amanhã, que descubram que eu sou... uma mulher. Por causa dos meus cabelos. E das minhas roupas, sabe? A rigor eu não tenho roupa alguma que se pareça com a de um homem.

Foi a vez do senhor abade rir:

– Ora, ora, mocinha! Por quem você me toma? Acha que eu já não pensei e já não tenho tudo isso esquematizado e resolvido? Pois amanhã, à primeira hora da manhã, com boa luz, eu vou terminar de tosar essa sua lã que está agora, realmente, uma calamidade.

E ele riu outra vez, divertindo-se com minha expressão contrafeita. De fato eu acusei aquilo, fiquei perturbada por ele ter insinuado que eu estava muito feia. Supliquei em silêncio aos deuses para que me ajudassem e no outro dia, o senhor abade acertasse o corte final do meu cabelo. E eu não ficasse tão patinho feio, como estava me sentindo naquela hora. Mas outra coisa que o reverendo falou me trouxe mais tranqüilidade:

– Quanto às roupas, Alline, fique tranquila. Nós temos aqui uma grande quantidade de roupas de meninos, de todos os tamanhos e para todas as estações. Nós acolhemos aqui um grande número de garotos muito pobres, então tratamos de vesti-los muito bem, para que eles não se sintam humilhados entre os meninos de mais posses, que, aliás, são pouquíssimos. Eu já separei um bom número de roupas e abrigos e já estão no meu armário agora. Amanhã de manhã, após o banho, você pode experimentara e escolher o que for compatível, quer com o seu tamanho, quer com o seu gosto pessoal. Ah, apenas um detalhe: a roupa de baixo também é de homem, me desculpe.

–Acho que isso não tem importância senhor. Se me arranjar agulha, linha e tesoura, eu sei o que fazer com os tecidos. Faz mais de um ano que venho sendo obrigada por minha mãe a aprender essas coisas horríveis de mulher. Agora, enfim, poderão ter alguma utilidade.

– Muito bem, então agora você pode se acalmar e pode dormir. E, se quiser, pode deixar a porta aberta, uma vez que ela se comunica com a ante-sala do meu quarto. Assim, qualquer coisa que você precisar, pode me chamar. Não tenha receio, não me atrapalhará. Eu tenho sono muito leve. Mas, se for acordado, volto a dormir com igual facilidade. Amanhã de manhã eu estarei com os irmãos à hora do Ângelus. Você permaneça aqui até eu voltar. Pode deixar que eu mesmo lhe trarei sua primeira refeição. Então vamos cuidar de fazer um bom corte de cabelo, para você ficar um menino bem bonito.

E, rindo gostosamente, o reverendo se retirou e foi dormir em sua ampla e confortável cama. Eu fiquei um tempo ainda me remoendo. Estranhamente, o que atrapalhava meu sono agora era a ideia de que eu devia estar horrorosa, como o abade insinuara. Ora, por que iria eu me incomodar com isso, se eu nunca dei importância a aparência física, mesmo quando minha mãe me forçava a usar toda aquela parafernália odiosa de roupas de mulher. Fui dormir com o patinho feio transformado num grande pato monstruoso.

Na manhã seguinte, às 5 horas, os sinos repicaram e eu levei um enorme susto. Pulei da cama, mas ainda estava escuro como de noite. Mas eu sabia que a hora do Ângelus se aproximava. Ouvi quando o reverendo saiu e fechou a porta do corredor. Fui até a porta e constatei que ele a tinha fechado com chave. Concluí que o fizera para evitar que alguém entrasse nos nossos aposentos e me pegasse de surpresa. Não consegui dormir mais. Fiquei impaciente, espiando pela janela, vendo o dia clarear e o sol aparecer. E nada do abade voltar!...

Devia ser mais de 8 horas quando ouvi o ruído da chave na fechadura. Meu coração disparou. E se não fosse o senhor abade? E, se fosse ele, como eu iria me apresentar com a minha cara horrível, de cabelos tosquiados de qualquer jeito, em plena luz do dia? Fiquei de novo surpresa com essa minha reação.

O abade Lucinus entrou com uma bandeja na mão, onde estava uma generosa refeição a meu dispor. Agradeci muito e expliquei:

– Senhor, por favor, não me leve a mal. Mas eu não vou conseguir comer nada, até ver que esse desastre, que deve estar o meu cabelo, pode ser transformado num cabelo decente de menino. E enquanto eu não me sentir segura com as roupas de rapaz. Por favor, podemos começar?

O abade suspirou, levou-me para o aposento de banhos e ali, ante a claridade da janela alta, colocou-me em frente a um espelho. No primeiro minuto eu levei um susto. Mas, logo a seguir, caí na gargalhada. Eu estava tenebrosa, muito, muito pior do que podia ter imaginado! Parecia uma galinha arrepiada, o reverendo tinha feito um estrago e tanto no meu cabelo de mulher. Ele riu também, menos do que eu, e passou a mão sobre a minha cabeça, escabelando ainda mais aquela parte do alto. E disse:

– Não deboche do meu trabalho, até que não ficou tão ruim assim. Lembre-se que era de noite. Mas em compensação agora, eu vou fazer um trabalho de mestre em sua cabeça.

Então ele apareceu com um jogo de tesouras de três tamanhos e formatos diferentes, dois pentes de tamanhos diferentes também e começou a trabalhar com muita calma no meu cabelo. Levou talvez quase meia hora, até se dar por satisfeito. Só então levou-me de novo para a frente do espelho. E, desta vez, eu tive uma surpresa diferente, porque muito agradável!

Meu cabelo estava cortado bem curto em baixo, mas um pouco cheio e armado em cima, o que me dava uma expressão de um certo equilíbrio. Fiquei muito contente e muito curiosa também. Meu abade era, como já mencionei, de uma perspicácia incomparável. E, antes que eu fizesse a pergunta, ele mesmo a fez e respondeu:

– Sim sim, você está morrendo de curiosidade de saber como é que um abade católico sabe cortar cabelo como um barbeiro. Pois eu lhe digo: devo isso ao tempo em que fui prisioneiro dos francos que invadiram o sul da Gália. Eles me obrigaram a aprender esse ofício, porque o barbeiro deles estava muito velho e quase não enxergava mais nada direito. O velho me ensinou tudo o que sabia do seu ofício e, dessa forma – e somente dessa forma – eu consegui evitar que eles me executassem, com executaram outros prisioneiros romanos e gauleses.

– E o senhor já era padre então?

– Padre?! Que nada, eu era um legionário.

– Por Júpiter ! Então seu abade foi um legionário romano antes?

– Isso mesmo, general. Um legionário. E como tal foi feito prisioneiro e passou meses cortando os cabelos e as barbas dos francos invasores. Até que conseguiu fugir durante uma batalha dos francos com os gauleses.

–  E ele fez o que, depois que fugiu?

– Reincorporou-se à legião. Mas isso eu vou contar depois. Agora quero voltar àquela primeira amanhã radiosa na abadia, que assistiu minha metamorfose, a transformação da menina Alline no menino Gilles. O reverendo mandou-me para o banho, disse que eu ficasse à vontade. Ele iria sair por mais de uma hora, dando-me assim tempo para me banhar na água fria que havia na grande tina e, depois, experimentar as roupas do grande fardo que ele colocou ali na minha frente.

Nas duas horas seguintes, eu coloquei e tirei mais de duas dezenas de roupas de menino. Minhas favoritas foram, estranhamente, as que mais delineavam meu corpo, como minha irmã havia me ensinado. Fiquei surpresa com minha própria escolha. Mas, momentos depois, caindo em mim, deixei aquelas roupas de lado e investi na busca das mais pesadas e folgadas, que anulassem a visão das curvas do meu corpo.

Fiquei um bom tempo me olhando nua no espelho, coisa que eu não fazia há muitíssimo tempo. Constatei então que o meu corpo tinha passado por uma sensível transformação. Meus seios estavam maiores, minha cintura seguia fina, mas meu quadril e minhas ancas tinham crescido bastante. Nas minhas costas a mesma coisa tinha acontecido. Em resumo, eu estava perdendo o meu corpo de moleque e começando a desenvolver um corpo bem feminino.

Detestei aquela novidade! Aquilo ia complicar minha vida, ia tornar mais difícil a minha camuflagem. Mas suspirei resignada: haveria de me esforçar ainda mais no disfarce. Paciência, a causa era justa e nobre. Aquele era o preço a pagar para poder ser aceita numa escola de verdade. Improvisei uma faixa para os seios e caprichei nas roupas mais largas e grosseiras que havia. O resultado foi bastante satisfatório. Recuperei meu jeito de moleque e concluí que não ia ser tão difícil assim passar por homem. Trejeitos femininos, requebros, faceirices, isso eu nunca tinha tido mesmo!

Quando o reverendo abade retornou, ele mesmo ficou agradavelmente surpreso com o que viu. Apertou minha mão, como se cumprimentasse um homem e falou:

– Muito bem, senhor Gilles de Troyes! Magnífico! Seja muito bem-vindo a nossa abadia e a nossa escola. Agora, com certeza, depois desse resultado perfeito, acho que o senhor pode ir tomar sua refeição, não é verdade?

Dei um salto, fiz meia volta e fui, felicíssima, devorar tudo o que o abade havia me trazido. De repente eu tinha o apetite de um  leão do Coliseu.

– Coma muito bem, Monsieur Gilles, pois vai precisar de muita energia para todas as suas tarefas diárias. Mas, antes de mais nada, assim que comer, eu vou levá-lo para conhecer um verdadeiro Mestre.

– Um dos meus professores?

– Não, Gilles, eu disse um Mestre! Esse homem que você vai conhecer hoje não é um dos nossos professores. Está muito, muito acima disso. Ele é o meu professor. E será seu instrutor também. É um autêntico druida celta, o sábio Kelvin. Deus me concedeu a graça suprema de poder recebê-lo aqui entre nós. E ele teve a bondade suprema de aceitar meu convite para que permanecesse aqui. Venha, limpe a boca e vamos caminhar um pouco.

Enfim eu saí para fora dos aposentos do senhor abade e pude apreciar o magnífico pátio interno da abadia. Ali havia diversos religiosos e o abade foi me apresentando a cada um deles em particular:

– Conheça o senhor Gilles, que é o meu secretário particular a partir de ontem. –  e explicava onde havia me encontrado e quais eram as minhas qualidade e predicados. Fui muito bem recebida por todos. Na verdade, Gilles de Troyes é que foi bem recebido. E isso era exatamente o que nós dois queríamos.

Saímos a caminhar pela lateral do prédio principal, até chegarmos a uma porta muito bem lavrada em madeira escura. O abade puxou uma corda que pendia dela e um som de sineta se fez ouvir. Em pouco tempo a porta foi aberta por uma figura totalmente fora do meu mundo.  Era Kevin da Bretanha, o druida celta. Um velho de cabelos e barbas brancas, com uma longa túnica também branca até os pés, estranhos símbolos inscritos nessa peça de roupa. Tinha um barrete de cor azulada sobre a cabeça e sorriu para mim imediatamente:

– Ora, ora, com que então esta menina bonita é o nosso senhor Gilles. Seja bem-vinda, Alline de Troyes – era evidente que o senhor abade já havia falado de mim para o druida.

O druida deu dois passos em direção a mim, tomou meu rosto entre suas mãos e olhou longamente dentro dos meus olhos. Eu me senti inundada de um sentimento maravilhoso, como se algo viesse daquele homem que me fizesse um bem enorme. Ele continuou:

–Bela aura, minha filha! Admirável numa pessoa tão jovem. De fato, meu amigo abade está muito certo em trazê-la para cá e disfarçá-la de Gilles de Troyes. Antevejo dias de crescimento e de glória para você. E, acima de tudo, de muito amor, como você jamais poderia esperar encontrar aqui.

Fiquei surpresa e desconcertada. Falei pela primeira vez:

– Amor, senhor? Os reverendos padres me darão o amor dos cristãos, o amor de Cristo, de quem tenho ouvido falar? É isso? Será que sou merecedora?

O druida falou algo que para mim só aumentou a confusão:

–Também eles terão que amá-la minha filha, porque é impossível conhecer uma criatura como você e não amá-la. Mas não é a isso que me refiro. Vamos dar tempo ao tempo. Aliás, não muito tempo, pelo que posso antever. E o Amor chegará para Alline de Troyes. Aproveite muito bem esses anos maravilhosos em que você estará nesta abadia. Eles serão a base maior de toda a sua vida.


Continua: A sala de armas. A Escola.

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