ALLINE DE TROYES - 9a. parte: O druida celta e a promessa de amor
MILTON MACIEL
Fim da 8ª. parte
– Bem, isso é tudo que eu posso fazer agora. Cubra a sua
cabeça com o manto, amanhã, à luz do dia, tentarei fazer um serviço melhor, usando
tesouras. E trate de improvisar, com suas próprias vestes, algo que fique um
pouco menos feminino. Use este meu manto preto, que ficará enorme em você, mas
permitirá que se cubra da cabeça aos pés. Vamos voltar a cavalgar e dentro de
pouco tempo o meu novo ajudante de ordens, o jovem gaulês Gilles de Troyes
estará jantando comigo na abadia. Eu contarei a meus pares como tive a
felicidade de encontrar um jovem tão inteligente e que sabe ler muito bem, em
plena região camponesa.
E assim começaram, senhores, aqueles que seriam os três anos
mais felizes da minha vida.
9ª parte:
Naquela primeira
noite eu não quis comer nada! Minha excitação, que era imensa, só era superada por meu medo de ser
descoberta e desmascarada pelos outros frades. E pelos estudantes, no dia
seguinte, na escola. Meu cabelo devia estar um horror e minhas roupas
improvisadas por mim mesma no escuro, sem uma tesoura que fosse... Assim
cheguei e fui me enfiar correndo em meu alojamento. Este, para minha surpresa,
ficava dentro dos aposentos do abade. Achei aquilo ótimo, eu estaria sob a
proteção direta do superior da abadia.
O abade veio me
fazer companhia depois de ter jantado e conversado com seus pares por um bom
tempo. Já devia ser perto de meia-noite quando ele entrou em meu quarto, pé
ante pé, procurando verificar se eu dormia com conforto e tranqüilidade. Mas eu
não conseguia pregar olho, estava apavorada. Quando o abade voltou-se, para
retornar a seu grande dormitório, eu falei:
– Não consigo
dormir senhor. Estou muito assustada.
– Ora, mas por que? Sente-se insegura? É o escuro?
Não pude deixar de
rir ante aquele absurdo:
– Insegurança? Medo do escuro? Ora, senhor abade,
por quem me toma? Não, meu problema é outro. Tenho receio que os frades e os
estudantes me desmascarem amanhã, que descubram que eu sou... uma mulher. Por
causa dos meus cabelos. E das minhas roupas, sabe? A rigor eu não tenho roupa alguma
que se pareça com a de um homem.
Foi a vez do
senhor abade rir:
– Ora, ora,
mocinha! Por quem você me toma? Acha
que eu já não pensei e já não tenho tudo isso esquematizado e resolvido? Pois
amanhã, à primeira hora da manhã, com boa luz, eu vou terminar de tosar essa
sua lã que está agora, realmente, uma calamidade.
E ele riu outra
vez, divertindo-se com minha expressão contrafeita. De fato eu acusei aquilo,
fiquei perturbada por ele ter insinuado que eu estava muito feia. Supliquei em
silêncio aos deuses para que me ajudassem e no outro dia, o senhor abade
acertasse o corte final do meu cabelo. E eu não ficasse tão patinho feio, como
estava me sentindo naquela hora. Mas outra coisa que o reverendo falou me trouxe
mais tranqüilidade:
– Quanto às
roupas, Alline, fique tranquila. Nós temos aqui uma grande quantidade de roupas
de meninos, de todos os tamanhos e para todas as estações. Nós acolhemos aqui
um grande número de garotos muito pobres, então tratamos de vesti-los muito
bem, para que eles não se sintam humilhados entre os meninos de mais posses,
que, aliás, são pouquíssimos. Eu já separei um bom número de roupas e abrigos e
já estão no meu armário agora. Amanhã de manhã, após o banho, você pode
experimentara e escolher o que for compatível, quer com o seu tamanho, quer com
o seu gosto pessoal. Ah, apenas um detalhe: a roupa de baixo também é de homem,
me desculpe.
–Acho que isso
não tem importância senhor. Se me arranjar agulha, linha e tesoura, eu sei o
que fazer com os tecidos. Faz mais de um ano que venho sendo obrigada por minha
mãe a aprender essas coisas horríveis de mulher. Agora, enfim, poderão ter
alguma utilidade.
– Muito bem,
então agora você pode se acalmar e pode dormir. E, se quiser, pode deixar a
porta aberta, uma vez que ela se comunica com a ante-sala do meu quarto. Assim,
qualquer coisa que você precisar, pode me chamar. Não tenha receio, não me
atrapalhará. Eu tenho sono muito leve. Mas, se for acordado, volto a dormir com
igual facilidade. Amanhã de manhã eu estarei com os irmãos à hora do Ângelus.
Você permaneça aqui até eu voltar. Pode deixar que eu mesmo lhe trarei sua
primeira refeição. Então vamos cuidar de fazer um bom corte de cabelo, para
você ficar um menino bem bonito.
E, rindo
gostosamente, o reverendo se retirou e foi dormir em sua ampla e confortável
cama. Eu fiquei um tempo ainda me remoendo. Estranhamente, o que atrapalhava
meu sono agora era a ideia de que eu devia estar horrorosa, como o abade
insinuara. Ora, por que iria eu me incomodar
com isso, se eu nunca dei importância a aparência física, mesmo quando minha
mãe me forçava a usar toda aquela parafernália odiosa de roupas de mulher. Fui
dormir com o patinho feio transformado num grande pato monstruoso.
Na manhã
seguinte, às 5 horas, os sinos repicaram e eu levei um enorme susto. Pulei da
cama, mas ainda estava escuro como de noite. Mas eu sabia que a hora do Ângelus
se aproximava. Ouvi quando o reverendo saiu e fechou a porta do corredor. Fui até
a porta e constatei que ele a tinha fechado com chave. Concluí que o fizera
para evitar que alguém entrasse nos nossos aposentos e me pegasse de surpresa.
Não consegui dormir mais. Fiquei impaciente, espiando pela janela, vendo o dia
clarear e o sol aparecer. E nada do abade voltar!...
Devia ser mais
de 8 horas quando ouvi o ruído da chave na fechadura. Meu coração disparou. E
se não fosse o senhor abade? E, se fosse ele, como eu iria me apresentar com a
minha cara horrível, de cabelos tosquiados de qualquer jeito, em plena luz do
dia? Fiquei de novo surpresa com essa minha reação.
O abade Lucinus
entrou com uma bandeja na mão, onde estava uma generosa refeição a meu dispor.
Agradeci muito e expliquei:
– Senhor, por
favor, não me leve a mal. Mas eu não vou conseguir comer nada, até ver que esse
desastre, que deve estar o meu cabelo, pode ser transformado num cabelo decente de
menino. E enquanto eu não me sentir segura com as roupas de rapaz. Por favor, podemos
começar?
O abade
suspirou, levou-me para o aposento de banhos e ali, ante a claridade da janela
alta, colocou-me em frente a um espelho. No primeiro minuto eu levei um susto.
Mas, logo a seguir, caí na gargalhada. Eu estava tenebrosa, muito, muito pior
do que podia ter imaginado! Parecia uma galinha arrepiada, o reverendo tinha
feito um estrago e tanto no meu cabelo de mulher. Ele riu também, menos do que
eu, e passou a mão sobre a minha cabeça, escabelando ainda mais aquela parte do
alto. E disse:
– Não deboche do
meu trabalho, até que não ficou tão ruim assim. Lembre-se que era de noite. Mas
em compensação agora, eu vou fazer um trabalho de mestre em sua cabeça.
Então ele
apareceu com um jogo de tesouras de três tamanhos e formatos diferentes, dois
pentes de tamanhos diferentes também e começou a trabalhar com muita calma no
meu cabelo. Levou talvez quase meia hora, até se dar por satisfeito. Só então
levou-me de novo para a frente do espelho. E, desta vez, eu tive uma surpresa
diferente, porque muito agradável!
Meu cabelo
estava cortado bem curto em baixo, mas um pouco cheio e armado em cima, o que
me dava uma expressão de um certo equilíbrio. Fiquei muito contente e muito
curiosa também. Meu abade era, como já mencionei, de uma perspicácia
incomparável. E, antes que eu fizesse a pergunta, ele mesmo a fez e respondeu:
– Sim sim, você
está morrendo de curiosidade de saber como é que um abade católico sabe cortar
cabelo como um barbeiro. Pois eu lhe digo: devo isso ao tempo em que fui
prisioneiro dos francos que invadiram o sul da Gália. Eles me obrigaram a
aprender esse ofício, porque o barbeiro deles estava muito velho e quase não enxergava
mais nada direito. O velho me ensinou tudo o que sabia do seu ofício e, dessa
forma – e somente dessa forma – eu consegui evitar que eles me executassem, com
executaram outros prisioneiros romanos e gauleses.
– E o senhor já
era padre então?
– Padre?! Que nada, eu era um legionário.
– Por Júpiter ! Então seu abade foi um legionário
romano antes?
– Isso mesmo, general. Um legionário. E como tal
foi feito prisioneiro e passou meses cortando os cabelos e as barbas dos
francos invasores. Até que conseguiu fugir durante uma batalha dos francos com
os gauleses.
– E ele fez o
que, depois que fugiu?
–
Reincorporou-se à legião. Mas isso eu vou contar depois. Agora quero voltar
àquela primeira amanhã radiosa na abadia, que assistiu minha metamorfose, a
transformação da menina Alline no menino Gilles. O reverendo mandou-me para o
banho, disse que eu ficasse à vontade. Ele iria sair por mais de uma hora,
dando-me assim tempo para me banhar na água fria que havia na grande tina e,
depois, experimentar as roupas do grande fardo que ele colocou ali na minha
frente.
Nas duas horas
seguintes, eu coloquei e tirei mais de duas dezenas de roupas de menino. Minhas
favoritas foram, estranhamente, as que mais delineavam meu corpo, como minha
irmã havia me ensinado. Fiquei surpresa com minha própria escolha. Mas,
momentos depois, caindo em mim, deixei aquelas roupas de lado e investi na
busca das mais pesadas e folgadas, que anulassem a visão das curvas do meu
corpo.
Fiquei um bom
tempo me olhando nua no espelho, coisa que eu não fazia há muitíssimo tempo. Constatei
então que o meu corpo tinha passado por uma sensível transformação. Meus seios
estavam maiores, minha cintura seguia fina, mas meu quadril e minhas ancas
tinham crescido bastante. Nas minhas costas a mesma coisa tinha acontecido. Em
resumo, eu estava perdendo o meu corpo de moleque e começando a desenvolver um
corpo bem feminino.
Detestei aquela
novidade! Aquilo ia complicar minha vida, ia tornar mais difícil a minha
camuflagem. Mas suspirei resignada: haveria de me esforçar ainda mais no
disfarce. Paciência, a causa era justa e nobre. Aquele era o preço a pagar para
poder ser aceita numa escola de verdade. Improvisei uma faixa para os seios e
caprichei nas roupas mais largas e grosseiras que havia. O resultado foi
bastante satisfatório. Recuperei meu jeito de moleque e concluí que não ia ser
tão difícil assim passar por homem. Trejeitos femininos, requebros, faceirices,
isso eu nunca tinha tido mesmo!
Quando o
reverendo abade retornou, ele mesmo ficou agradavelmente surpreso com o que
viu. Apertou minha mão, como se cumprimentasse um homem e falou:
– Muito bem,
senhor Gilles de Troyes! Magnífico! Seja muito bem-vindo a nossa abadia e a
nossa escola. Agora, com certeza, depois desse resultado perfeito, acho que o
senhor pode ir tomar sua refeição, não é verdade?
Dei um salto,
fiz meia volta e fui, felicíssima, devorar tudo o que o abade havia me trazido.
De repente eu tinha o apetite de um leão
do Coliseu.
– Coma muito
bem, Monsieur Gilles, pois vai precisar de muita energia para todas as suas
tarefas diárias. Mas, antes de mais nada, assim que comer, eu vou levá-lo para
conhecer um verdadeiro Mestre.
– Um dos meus
professores?
– Não, Gilles,
eu disse um Mestre! Esse homem que você vai conhecer hoje não é um dos nossos
professores. Está muito, muito acima disso. Ele é o meu professor. E será seu instrutor também. É um autêntico druida
celta, o sábio Kelvin. Deus me concedeu a graça suprema de poder recebê-lo aqui
entre nós. E ele teve a bondade suprema de aceitar meu convite para que
permanecesse aqui. Venha, limpe a boca e vamos caminhar um pouco.
Enfim eu saí
para fora dos aposentos do senhor abade e pude apreciar o magnífico pátio
interno da abadia. Ali havia diversos religiosos e o abade foi me apresentando
a cada um deles em particular:
– Conheça o
senhor Gilles, que é o meu secretário particular a partir de ontem. – e explicava onde havia me encontrado e quais
eram as minhas qualidade e predicados. Fui muito bem recebida por todos. Na
verdade, Gilles de Troyes é que foi bem recebido. E isso era exatamente o que
nós dois queríamos.
Saímos a
caminhar pela lateral do prédio principal, até chegarmos a uma porta muito bem
lavrada em madeira escura. O abade puxou uma corda que pendia dela e um som de
sineta se fez ouvir. Em pouco tempo a porta foi aberta por uma figura
totalmente fora do meu mundo. Era Kevin
da Bretanha, o druida celta. Um velho de cabelos e barbas brancas, com uma
longa túnica também branca até os pés, estranhos símbolos inscritos nessa peça
de roupa. Tinha um barrete de cor azulada sobre a cabeça e sorriu para mim
imediatamente:
– Ora, ora, com
que então esta menina bonita é o nosso senhor Gilles. Seja bem-vinda, Alline de
Troyes – era evidente que o senhor abade já havia falado de mim para o druida.
O druida deu
dois passos em direção a mim, tomou meu rosto entre suas mãos e olhou
longamente dentro dos meus olhos. Eu me senti inundada de um sentimento
maravilhoso, como se algo viesse daquele homem que me fizesse um bem enorme.
Ele continuou:
–Bela aura,
minha filha! Admirável numa pessoa tão jovem. De fato, meu amigo abade está muito
certo em trazê-la para cá e disfarçá-la de Gilles de Troyes. Antevejo dias de
crescimento e de glória para você. E, acima de tudo, de muito amor, como você
jamais poderia esperar encontrar aqui.
Fiquei surpresa
e desconcertada. Falei pela primeira vez:
– Amor, senhor?
Os reverendos padres me darão o amor dos cristãos, o amor de Cristo, de quem
tenho ouvido falar? É isso? Será que sou merecedora?
O druida falou
algo que para mim só aumentou a confusão:
–Também eles
terão que amá-la minha filha, porque é impossível conhecer uma criatura como
você e não amá-la. Mas não é a isso que me refiro. Vamos dar tempo ao tempo.
Aliás, não muito tempo, pelo que posso antever. E o Amor chegará para Alline de
Troyes. Aproveite muito bem esses anos maravilhosos em que você estará nesta
abadia. Eles serão a base maior de toda a sua vida.
Continua: A sala de armas. A Escola.
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