segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES - 6a. parte: LUCINUS, O ABADE DE TROYES  
MILTON MACIEL   

Fim da 5ª. parte:
– E o tal abade? – perguntou, um tanto afoito, o centurião Caius Marcellus

Os olhos de Alline de Troyes se toldaram de lágrimas novamente. Ela suspirou e disse:

– Ah, senhores, esse foi o homem da minha vida! – deixando os dois ainda mais boquiabertos e surpresos.

6ª. parte:
LUCINUS, O ABADE DE TROYES

– Como o homem de sua vida, você sendo tão jovem?! E um abade católico você diz?

– Calma, general, espere um pouco e já vai saber tudo. Deixe-me terminar com o assunto do lenhador, minha primeira vítima. Quando minha irmã chegou em casa, depois de 10 minutos de corrida e gritaria, meu pai, meus irmãos e mais dois empregados da lavoura vieram correndo ao ponto onde ela disse que tínhamos sido atacadas. Todos eles traziam instrumentos agrícolas, como pás, enxadas, forcados e foices, pois estas eram as únicas armas de que dispunham os camponeses.

Meu pai contou depois que veio rezando pelo caminho, pedindo perdão a Deus pelas surras que tinha me dado, rogando para que o lenhador não tivesse me matado. Quando eles chegaram, levaram o maior susto da vida deles: o morto era o lenhador!

Meu pai caiu de joelhos agradecendo aos céus, aos deuses gauleses, aos deuses romanos, ao deus dos católicos, a Jesus Cristo. Naquele tempo – era o ano de 363 – a minha família estava terminando de se converter ao cristianismo, que já era uma religião livre em todo o Império Romano desde que Constantino promulgara o edito de Milão, em 313.

Meu pai beijou as minhas mãos, me pediu perdão, jurou que nunca mais me surraria. Fiquei feliz e agradeci mentalmente àquele lenhador estúpido, pois foi a primeira vez que meu pai demonstrou que também gostava de mim. Embora ele insistisse para que eu lhe contasse tudo o que tinha acontecido, eu lhe disse que só contaria tudo em casa, com a presença de minha irmã e de minha mãe. E longe dos dois empregados, é evidente.

Quando comecei a contar, minha irmã exigiu que meus irmãos fossem embora da sala. Eu me opus energicamente:

– Não, eles ficam! São homens, não são mais crianças. E são os meus únicos amigos neste mundo – vi que meu pai acusou o golpe, apertando os dentes com força.

“E então contei tudo o que fiz, como tirei toda a roupa de baixo e abri as pernas para aquele monstro. Minha mãe e minha irmã ficaram horrorizadas com minhas palavras, embora Millène tivesse assistido esta parte. Meu pai ficou escandalizado e esboçou dizer alguma coisa, mas eu os interrompi aos gritos:

– Não sejam hipócritas! Parem de pensar ou falar em vergonha! Se alguém podia sentir vergonha, esse alguém, era eu e somente eu. E eu não senti, nem sinto agora. Por isso fiz questão de falar na frente dos meus dois grandes amigos. Se eu fiz o que fiz, foi para salvar a virgindade e o casamento dessa sirigaita aí. Se eu não fizesse isso, era uma vez marido rico e essa boneca vazia possivelmente se atirasse da ponte.

– Não fale assim de sua irmã! – vociferou minha mãe.

– Mas ela é uma sirigaita mesmo – falou Philippe, o mais velho dos meus irmãos.

– Boneca vazia! Boneca vazia! – ficou repetindo, às gargalhadas, Marcel, um ano mais velho que eu.

 Meu pai fez sinal para que todos se calassem e, para minha grande surpresa falou:

– Esta menina tem razão, tem toda a razão. O que ela fez só pode nos encher de orgulho, não de vergonha. E voltando-se para mim e tomando minha mão, disse:

– Alline, eu já lhe pedi perdão pela minha estupidez, minha violência. Sou um velho rústico, só um campônio gaulês. Mas hoje, quando senti tanto medo de perdê-la, eu caí em mim. E vi que eu estava errado, o tempo todo, a seu respeito. Valorizei demais sua irmã por causa da beleza dela. Percebi que isso era só egoísmo meu, porque via em Millène uma mercadoria bonita que eu podia vender no mercado do casamento. Só pensei nisso, confesso.

– Ora, marido, mas isso é só o que importa mesmo. Nosso futuro...

– Cale-se mulher! Nunca mais repita isso na minha frente! O que seria da beleza de boneca dessa sua filha, se esta nossa outra filha não tivesse arriscado sua vida e integridade para defendê-la do jeito que fez? Alline demonstrou uma grande qualidade que eu perdi, com o tempo, a capacidade de admirar: a coragem! Ponha-se no lugar dela, por um momento: enfrentar um homem gigantesco armado de machado, ter a coragem de expor-se nua para ele e a inteligência de enganá-lo e depois lutar com ele e vencê-lo. E tudo isso só para salvar a irmã! Ela colocou a vida dela em jogo e vocês não percebem isso. Será que são tão mesquinhas?

Marcel não perdeu a deixa:

– Mesquinhas! Mesquinhas! – mas um sinal do pai o fez calar-se imediatamente.

Ele então pediu com suavidade:

– Conte-nos agora, filha, como foi a luta com aquele homem enorme.

Então eu falei do ataque aos olhos dele com os dois dedos em V. Meus irmãos vibraram, por que esse era um jogo que nós praticávamos inúmeras vezes juntos. Um de nós atacava, os outros dois tinham que se defender colocando a mão espalmada perpendicular ao rosto, com o dedo indicador sobre o nariz, o que impedia que o atacante nos atingisse os olhos. Eu, que tinha a mão menor, aprendi que tinha que manter a mão inclinada para cima, senão os dedos deles me atingiam. Bem, foi essa brincadeira que me salvou! Eu afundei um dos olhos do gigante com o dedo médio.

Então prossegui a narrativa e contei como bati no homem desnudo, nas suas partes, com o machado dele mesmo. Meu pai ouviu tudo quieto, mas fazendo um sinal de aprovação com a cabeça.  Minha mãe e minha irmã ficaram vermelhas quando eu mencionei as partes do homem e como elas tinham mudado de tamanho. Meus irmãos gargalharam, meu pai não disse nada.

Mas foi quando eu contei a eles que tinha tomado a decisão de executar o homem, que estava momentaneamente indefeso a meus pés, que a coisa ficou complicada para meu lado. Minha mãe, que já era uma carola consumada, fez o sinal da cruz dezenas de vezes e repetiu diversas vezes também:

– Isso é pecado. O mandamento diz “Não matarás!”. O que essa menina fez foi um crime aos olhos de Deus. Um assassinato. Frio e premeditado! Ela é uma pecadora, vai arder nas chamas do inferno. Que vergonha para a nossa família!

Meu pai perdeu a paciência de vez e fez algo que eu nunca tinha visto: deu um sonoro tapa na cara de minha mãe e gritou para ela:

– Cale essa boca! Nunca mais ofenda minha filha assim! Você preferia a vergonha de uma filha bonita e desonrada, grávida de um marginal, envergonhada para sempre na comunidade, perdendo o casamento? O que você entende por vergonha, criatura? Minha filha fez o mesmo que eu teria feito, não se pode deixar uma fera selvagem dessas à solta, com vida, à espera que ela ataque outra mulher inocente. E agora saia daqui imediatamente com essa sua filha covarde, vocês me enojam com essa carolice.

Minha mãe, chorando e com o rosto vermelho, mais de vergonha e raiva do que pelo tapa, ainda argumentou:

– Pois deixe que o Senhor Abade decida se ela é pecadora ou não. Amanhã ele estará passando por nossos campos e vamos recebê-lo para o almoço, você sabe e concordou.

– Pois muito bem, pode consultar o Senhor Abade. Eu gosto muito dele, é um bom garfo e um bom papo. E me ganha sempre nos dados, porque rouba feito um ladrão de feira. E bebe um vinho como ninguém, eu é que sei o prejuízo que ele me dá. Pois que venha o abade. Sei que ele vai reconhecer que minha filha é inocente. Pecadora? Imagine só!

Mas, no outro dia, ao invés da chegada do bom abade Sébastien de Troyes, o que nos chegou foi a notícia de sua trágica morte. Gordo como uma pipa, velho como Matusalém, o abade morrera feliz, no final de um lauto banquete na casa de um rico comerciante. Ergue-se um pouco para soltar um arroto e tombou morto, ataque fulminante do coração.

A consternação foi geral, até eu senti a perda daquele homem tão bonachão e divertido. Tivemos que aguardar por mais de um mês, até que, do bispado de Lutécia, nos mandassem um novo abade para Troyes.

Um dia ele apareceu em nossa porteira. E nunca mais minha vida foi a mesma!

– E por que isso aconteceu?

– Ah, centurião, tudo, mas tudo mesmo mudou para mim no dia em que Lucinus de Troyes entrou em minha vida. Ele era uma figura totalmente diferente do velho abade falecido. Era muito mais jovem, bem alto, de compleição atlética, pode-se dizer. E era um homem verdadeiramente bonito e másculo. Tinha o mento saliente, olhos verdes, cabelos pretos, o queixo quadrado, o pescoço volumoso e grandes mãos, que sobressaiam por debaixo de sua roupa sacerdotal. Podia parecer tudo, menos um padre. Que dirá um abade, ainda mais para nós, que estávamos acostumados ao velho abade há tanto tempo!

Mas cinco minutos depois que ele desceu de seu cavalo – e essa foi outra surpresa, ver um homem com vestes de abade marchando garboso sobre um cavalo – todo mundo já estava mais do que convencido de sua autoridade eclesiástica. Abençoou a todos em perfeito latim, nele conduziu todas as litanias e distribuiu os sacramentos. As pessoas vieram de toda a vizinhança para nossa pequena fazenda, por que nela é que o senhor abade iria almoçar e, depois disso, atender mais fiéis.

Foi ao final do almoço em nossa casa, com nossa família somente, que o delicado caso do meu crime de morte foi exposto à maior autoridade eclesiástica da nossa região. Minha mãe fez o relato toda chorosa e procurando esconder as passagens mais escabrosas, deixando o abade sem entender nada. Só foi clara ao dizer que me considerava uma pecadora e criminosa aos olhos de Deus e que sabia que eu arderia no inferno. Meu pai mandou que ela se calasse e que eu expusesse a Monsieur L’Abbé todo o caso, sem omitir nada, sem sentir vergonha de nada.

Ora, eu não sentia nem vergonha nem arrependimento, apenas sentia raiva de minha mãe, por dizer aquelas coisa tão cruéis contra mim para o próprio abade. Então eu me vinguei na hora e quase matei minha mãe e minha irmã do coração, porque não só contei tudo como, de propósito, me referi às minhas partes e às do lenhador com as palavras mais chulas que meus irmãos conheciam. Meu pai virou a cabeça para o lado, mas deu para ver que ele entendeu o que eu estava fazendo e que ele ria do embaraço das duas, vermelhas como pimentões.

Para nossa surpresa, o abade caiu na gargalhada, o que fez meus irmãos e meu pai se sentirem livres para rir abertamente e minha mãe e minha irmã ficarem desconcertadíssimas. Ele então tomou de sua taça de vinho e propôs um brinde:

– À senhorita mais corajosa de toda Gália Romana! Brindo à jovem que o próprio Deus jamais condenaria pelo que fez, muito menos eu haverei de condená-la. Mas condeno aquele amaldiçoado que atacou as senhoritas, ele que arda no fogo do inferno por toda a eternidade.

E, virando-se para minha mãe:

–Vejo que a senhora andou bebendo catolicismo como quem bebe este bom vinho. Ele lhe subiu à cabeça, vai ser preciso abri-la, talvez com um machado de lenhador. Concluo que a senhora é que está em pecado, ao pensar e falar coisas tão absurdas contra esta sua filha heróica, que salvou esta donzela sua irmã da desonra e da perda do casamento já acertado.

– Mas Monsieur L’Abbé...

– Não, não tem conversa, madame está muito errada! Vou lhe impor uma penitência, para tentar limpar essa sua alma maldizente. Duzentas ave-marias e vinte pai-nossos.

– Sim, senhor, reverendo.

– Todos os dias. Durante trinta dias.

– Sim, senhor abade. Juro que farei.

– Três vezes ao dia – minha mãe embranqueceu. Os meninos não paravam mais de rir.

– E de joelhos no meio desta sala. De portas abertas, para que todos possam ver.

Minha mãe estava apoplética.  E meu pai agora ria abertamente. Até Millène, sempre unha e carne com a mãe, não conseguiu evitar um riso de deboche. Mas o senhor abade lhe disse:

– Quanto à senhorita, acompanhará sua mãe em todas as suas penitências, como boa filha que é.

Colhida de surpresa e indignada, Millène esqueceu da autoridade do abade e retrucou:

– Mas isso não é justo senhor! Foi ela que falou essas coisas horríveis contra minha irmã, não fui eu!

– Ora, ora! Com que então temos uma cristã rebelando-se contra seu abade! E uma filha ingrata, que abandona sua mãe na hora em que ela mais precisa de ajuda, para limpar sua alma pecadora. Que castigo adicional teremos que lhe impor, jovem?

– Não, senhor abade, perdão, perdão! Eu falei sem pensar. É justo, é justo. Eu acompanharei minha mãe nas penitências. Perdão – e Millène caiu de joelhos ante o abade, chorando de medo.

– Muito bem, minha filha, perdão pedido, perdão concedido. Cristo nosso Senhor nos ensinou a sermos generosos com os pecadores. Cumpram então suas penitências com fervor e muita gratidão no coração, para que os pecados de sua mãe e os que você mesma eventualmente tiver neste caso, venham a ser perdoados. E lembrem-se de uma coisa: como abade, é minha obrigação zelar também pelos matrimônios em minha região. E, podem ter certeza, eu jamais autorizo um casamento quando estou convencido que a noiva ou sua mãe estão ainda em pecado.

– Que abade mais fora do comum! – exclamou o centurião Caius Marcellus

– Daqui a pouco, em minha narrativa, o senhor compreenderá o porquê.

À medida que falava do novo abade de Troyes, Alline foi ficando mais e mais agitada. Levantou-se do catre e continuou a falar em pé, andando pequenos passos para um lado e para outro.

– Eu estava tão surpresa e tão feliz com minha vitória, nesse caso do meu “crime”, que mal podia acreditar que o abade me absolvera. Não que eu me considerasse criminosa, mas era muito bom ver que nem a Igreja me considerava também. Meus irmãos me abraçavam com efusão a toda hora, estávamos todos muito felizes. Exceto as penitentes, é lógico. Fiquei tão entusiasmada que retirei coragem não sei de onde e falei para o abade:

– Monsieur L’Abbé poderia me ouvir em confissão?

Todos ficaram estupefatos com minha audácia e falta de respeito. Ora, uma camponesa insignificante ser ouvida em confissão pelo abade em pessoa! Que ousadia! Mas para surpresa de todos, o abade respondeu imediatamente:

– Pedido feito, pedido concedido, minha filha. Cristo nosso Senhor nos ensinou a sermos generosos com os justos também. Todos os demais, por favor, podem se retirar desta sala de refeições imediatamente. E portas bem fechadas, hein!

Quando todos saíram, eu não sabia o que fazer. Estava embaraçada, aquele pedido louco tinha saído nem sei como. Resolvi simplificar e falar a verdade:

– Perdão, Monsieur L’Abbé! Nem sei por que falei isso. Eu nunca me confessei e nem sei se sou cristã direito. 

CONTINUA:   7a. parte: GILLES DE TROYES NA ABADIA

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