ALLINE DE TROYES - 6a. parte: LUCINUS, O ABADE DE TROYES
MILTON MACIEL
Fim da 5ª. parte:
– E o tal abade?
– perguntou, um tanto afoito, o centurião Caius Marcellus
Os olhos de
Alline de Troyes se toldaram de lágrimas novamente. Ela suspirou e disse:
– Ah, senhores,
esse foi o homem da minha vida! – deixando os dois ainda mais boquiabertos e
surpresos.
6ª. parte:
LUCINUS, O ABADE DE TROYES
– Como o homem
de sua vida, você sendo tão jovem?! E um abade católico você diz?
– Calma,
general, espere um pouco e já vai saber tudo. Deixe-me terminar com o assunto
do lenhador, minha primeira vítima. Quando minha irmã chegou em casa, depois de
10 minutos de corrida e gritaria, meu pai, meus irmãos e mais dois empregados
da lavoura vieram correndo ao ponto onde ela disse que tínhamos sido atacadas.
Todos eles traziam instrumentos agrícolas, como pás, enxadas, forcados e
foices, pois estas eram as únicas armas de que dispunham os camponeses.
Meu pai contou
depois que veio rezando pelo caminho, pedindo perdão a Deus pelas surras que
tinha me dado, rogando para que o lenhador não tivesse me matado. Quando eles
chegaram, levaram o maior susto da vida deles: o morto era o lenhador!
Meu pai caiu de
joelhos agradecendo aos céus, aos deuses gauleses, aos deuses romanos, ao deus
dos católicos, a Jesus Cristo. Naquele tempo – era o ano de 363 – a minha
família estava terminando de se converter ao cristianismo, que já era uma
religião livre em todo o Império Romano desde que Constantino promulgara o
edito de Milão, em 313.
Meu pai beijou
as minhas mãos, me pediu perdão, jurou que nunca mais me surraria. Fiquei feliz
e agradeci mentalmente àquele lenhador estúpido, pois foi a primeira vez que
meu pai demonstrou que também gostava de
mim. Embora ele insistisse para que eu lhe contasse tudo o que tinha
acontecido, eu lhe disse que só contaria tudo em casa, com a presença de minha
irmã e de minha mãe. E longe dos dois empregados, é evidente.
Quando comecei a
contar, minha irmã exigiu que meus irmãos fossem embora da sala. Eu me opus
energicamente:
– Não, eles
ficam! São homens, não são mais crianças. E são os meus únicos amigos neste
mundo – vi que meu pai acusou o golpe, apertando os dentes com força.
“E então contei
tudo o que fiz, como tirei toda a roupa de baixo e abri as pernas para aquele
monstro. Minha mãe e minha irmã ficaram horrorizadas com minhas palavras, embora
Millène tivesse assistido esta parte. Meu pai ficou escandalizado e esboçou
dizer alguma coisa, mas eu os interrompi aos gritos:
– Não sejam
hipócritas! Parem de pensar ou falar em vergonha! Se alguém podia sentir
vergonha, esse alguém, era eu e somente eu. E eu não senti, nem sinto agora.
Por isso fiz questão de falar na frente dos meus dois grandes amigos. Se eu fiz
o que fiz, foi para salvar a virgindade e o casamento dessa sirigaita aí. Se eu
não fizesse isso, era uma vez marido rico e essa boneca vazia possivelmente se
atirasse da ponte.
– Não fale assim
de sua irmã! – vociferou minha mãe.
– Mas ela é uma
sirigaita mesmo – falou Philippe, o mais velho dos meus irmãos.
– Boneca vazia!
Boneca vazia! – ficou repetindo, às gargalhadas, Marcel, um ano mais velho que
eu.
Meu pai fez sinal para que todos se calassem
e, para minha grande surpresa falou:
– Esta menina
tem razão, tem toda a razão. O que ela fez só pode nos encher de orgulho, não
de vergonha. E voltando-se para mim e tomando minha mão, disse:
– Alline, eu já
lhe pedi perdão pela minha estupidez, minha violência. Sou um velho rústico, só
um campônio gaulês. Mas hoje, quando senti tanto medo de perdê-la, eu caí em
mim. E vi que eu estava errado, o tempo todo, a seu respeito. Valorizei demais
sua irmã por causa da beleza dela. Percebi que isso era só egoísmo meu, porque
via em Millène uma mercadoria bonita que eu podia vender no mercado do
casamento. Só pensei nisso, confesso.
– Ora, marido,
mas isso é só o que importa mesmo. Nosso futuro...
– Cale-se
mulher! Nunca mais repita isso na minha frente! O que seria da beleza de boneca
dessa sua filha, se esta nossa outra filha não tivesse arriscado sua vida e
integridade para defendê-la do jeito que fez? Alline demonstrou uma grande
qualidade que eu perdi, com o tempo, a capacidade de admirar: a coragem! Ponha-se
no lugar dela, por um momento: enfrentar um homem gigantesco armado de machado,
ter a coragem de expor-se nua para ele e a inteligência de enganá-lo e depois
lutar com ele e vencê-lo. E tudo isso só para salvar a irmã! Ela colocou a vida
dela em jogo e vocês não percebem isso. Será que são tão mesquinhas?
Marcel não
perdeu a deixa:
– Mesquinhas!
Mesquinhas! – mas um sinal do pai o fez calar-se imediatamente.
Ele então pediu
com suavidade:
– Conte-nos agora,
filha, como foi a luta com aquele homem enorme.
Então eu falei
do ataque aos olhos dele com os dois dedos em V. Meus irmãos vibraram, por que esse
era um jogo que nós praticávamos inúmeras vezes juntos. Um de nós atacava, os
outros dois tinham que se defender colocando a mão espalmada perpendicular ao
rosto, com o dedo indicador sobre o nariz, o que impedia que o atacante nos atingisse
os olhos. Eu, que tinha a mão menor, aprendi que tinha que manter a mão
inclinada para cima, senão os dedos deles me atingiam. Bem, foi essa
brincadeira que me salvou! Eu afundei um dos olhos do gigante com o dedo médio.
Então prossegui
a narrativa e contei como bati no homem desnudo, nas suas partes, com o machado
dele mesmo. Meu pai ouviu tudo quieto, mas fazendo um sinal de aprovação com a
cabeça. Minha mãe e minha irmã ficaram
vermelhas quando eu mencionei as partes do homem e como elas tinham mudado de
tamanho. Meus irmãos gargalharam, meu pai não disse nada.
Mas foi quando
eu contei a eles que tinha tomado a decisão de executar o homem, que estava momentaneamente
indefeso a meus pés, que a coisa ficou complicada para meu lado. Minha mãe, que
já era uma carola consumada, fez o sinal da cruz dezenas de vezes e repetiu
diversas vezes também:
– Isso é pecado.
O mandamento diz “Não matarás!”. O que essa menina fez foi um crime aos olhos
de Deus. Um assassinato. Frio e premeditado! Ela é uma pecadora, vai arder nas
chamas do inferno. Que vergonha para a nossa família!
Meu pai perdeu a
paciência de vez e fez algo que eu nunca tinha visto: deu um sonoro tapa na
cara de minha mãe e gritou para ela:
– Cale essa
boca! Nunca mais ofenda minha filha
assim! Você preferia a vergonha de uma filha bonita e desonrada, grávida de um
marginal, envergonhada para sempre na comunidade, perdendo o casamento? O que
você entende por vergonha, criatura? Minha filha fez o mesmo que eu teria
feito, não se pode deixar uma fera selvagem dessas à solta, com vida, à espera
que ela ataque outra mulher inocente. E agora saia daqui imediatamente com essa
sua filha covarde, vocês me enojam com essa carolice.
Minha mãe,
chorando e com o rosto vermelho, mais de vergonha e raiva do que pelo tapa,
ainda argumentou:
– Pois deixe que
o Senhor Abade decida se ela é pecadora ou não. Amanhã ele estará passando por
nossos campos e vamos recebê-lo para o almoço, você sabe e concordou.
– Pois muito
bem, pode consultar o Senhor Abade. Eu gosto muito dele, é um bom garfo e um
bom papo. E me ganha sempre nos dados, porque rouba feito um ladrão de feira. E
bebe um vinho como ninguém, eu é que sei o prejuízo que ele me dá. Pois que
venha o abade. Sei que ele vai reconhecer que minha filha é inocente. Pecadora? Imagine
só!
Mas, no outro
dia, ao invés da chegada do bom abade Sébastien de Troyes, o que nos chegou foi
a notícia de sua trágica morte. Gordo como uma pipa, velho como Matusalém, o
abade morrera feliz, no final de um lauto banquete na casa de um rico
comerciante. Ergue-se um pouco para soltar um arroto e tombou morto, ataque
fulminante do coração.
A consternação
foi geral, até eu senti a perda daquele homem tão bonachão e divertido. Tivemos
que aguardar por mais de um mês, até que, do bispado de Lutécia, nos mandassem
um novo abade para Troyes.
Um dia ele
apareceu em nossa porteira. E nunca mais minha vida foi a mesma!
– E por que isso
aconteceu?
– Ah, centurião,
tudo, mas tudo mesmo mudou para mim no dia em que Lucinus de Troyes entrou em
minha vida. Ele era uma figura totalmente diferente do velho abade falecido.
Era muito mais jovem, bem alto, de compleição atlética, pode-se dizer. E era um
homem verdadeiramente bonito e másculo. Tinha o mento saliente, olhos verdes,
cabelos pretos, o queixo quadrado, o pescoço volumoso e grandes mãos, que
sobressaiam por debaixo de sua roupa sacerdotal. Podia parecer tudo, menos um
padre. Que dirá um abade, ainda mais para nós, que estávamos acostumados ao
velho abade há tanto tempo!
Mas cinco
minutos depois que ele desceu de seu cavalo – e essa foi outra surpresa, ver um
homem com vestes de abade marchando garboso sobre um cavalo – todo mundo já
estava mais do que convencido de sua autoridade eclesiástica. Abençoou a todos em perfeito latim, nele conduziu todas as litanias e distribuiu os sacramentos.
As pessoas vieram de toda a vizinhança para nossa pequena fazenda, por que nela
é que o senhor abade iria almoçar e, depois disso, atender mais fiéis.
Foi ao final do almoço
em nossa casa, com nossa família somente, que o delicado caso do meu crime de
morte foi exposto à maior autoridade eclesiástica da nossa região. Minha mãe
fez o relato toda chorosa e procurando esconder as passagens mais escabrosas,
deixando o abade sem entender nada. Só foi clara ao dizer que me considerava
uma pecadora e criminosa aos olhos de Deus e que sabia que eu arderia no
inferno. Meu pai mandou que ela se calasse e que eu expusesse a Monsieur L’Abbé
todo o caso, sem omitir nada, sem sentir vergonha de nada.
Ora, eu não
sentia nem vergonha nem arrependimento, apenas sentia raiva de minha mãe, por
dizer aquelas coisa tão cruéis contra mim para o próprio abade. Então eu me
vinguei na hora e quase matei minha mãe e minha irmã do coração, porque não só
contei tudo como, de propósito, me referi às minhas partes e às do lenhador com
as palavras mais chulas que meus irmãos conheciam. Meu pai virou a cabeça para
o lado, mas deu para ver que ele entendeu o que eu estava fazendo e que ele ria
do embaraço das duas, vermelhas como pimentões.
Para nossa
surpresa, o abade caiu na gargalhada, o que fez meus irmãos e meu pai se
sentirem livres para rir abertamente e minha mãe e minha irmã ficarem desconcertadíssimas.
Ele então tomou de sua taça de vinho e propôs um brinde:
– À senhorita
mais corajosa de toda Gália Romana! Brindo à jovem que o próprio Deus jamais
condenaria pelo que fez, muito menos eu haverei de condená-la. Mas condeno
aquele amaldiçoado que atacou as senhoritas, ele que arda no fogo do inferno
por toda a eternidade.
E, virando-se
para minha mãe:
–Vejo que a
senhora andou bebendo catolicismo como quem bebe este bom vinho. Ele lhe subiu
à cabeça, vai ser preciso abri-la, talvez com um machado de lenhador. Concluo
que a senhora é que está em pecado, ao pensar e falar coisas tão absurdas
contra esta sua filha heróica, que salvou esta donzela sua irmã da desonra e da
perda do casamento já acertado.
– Mas Monsieur
L’Abbé...
– Não, não tem
conversa, madame está muito errada! Vou lhe impor uma penitência, para tentar
limpar essa sua alma maldizente. Duzentas ave-marias e vinte pai-nossos.
– Sim, senhor,
reverendo.
– Todos os dias.
Durante trinta dias.
– Sim, senhor
abade. Juro que farei.
– Três vezes ao
dia – minha mãe embranqueceu. Os meninos não paravam mais de rir.
– E de joelhos
no meio desta sala. De portas abertas, para que todos possam ver.
Minha mãe estava
apoplética. E meu pai agora ria
abertamente. Até Millène, sempre unha e carne com a mãe, não conseguiu evitar
um riso de deboche. Mas o senhor abade lhe disse:
– Quanto à
senhorita, acompanhará sua mãe em todas as suas penitências, como boa filha que
é.
Colhida de
surpresa e indignada, Millène esqueceu da autoridade do abade e retrucou:
– Mas isso não é
justo senhor! Foi ela que falou essas coisas horríveis contra minha irmã, não
fui eu!
– Ora, ora! Com
que então temos uma cristã rebelando-se contra seu abade! E uma filha ingrata, que abandona sua mãe na hora em que ela mais precisa de ajuda, para limpar sua
alma pecadora. Que castigo adicional teremos que lhe impor, jovem?
– Não, senhor
abade, perdão, perdão! Eu falei sem pensar. É justo, é justo. Eu acompanharei
minha mãe nas penitências. Perdão – e Millène caiu de joelhos ante o abade,
chorando de medo.
– Muito bem,
minha filha, perdão pedido, perdão concedido. Cristo nosso Senhor nos ensinou a
sermos generosos com os pecadores. Cumpram então suas penitências com fervor e
muita gratidão no coração, para que os pecados de sua mãe e os que você mesma
eventualmente tiver neste caso, venham a ser perdoados. E lembrem-se de uma
coisa: como abade, é minha obrigação zelar também pelos matrimônios em minha
região. E, podem ter certeza, eu jamais autorizo um casamento quando estou
convencido que a noiva ou sua mãe estão ainda em pecado.
– Que abade mais
fora do comum! – exclamou o centurião Caius Marcellus
– Daqui a pouco,
em minha narrativa, o senhor compreenderá o porquê.
À medida que
falava do novo abade de Troyes, Alline foi ficando mais e mais agitada.
Levantou-se do catre e continuou a falar em pé, andando pequenos passos para um
lado e para outro.
– Eu estava tão
surpresa e tão feliz com minha vitória, nesse caso do meu “crime”, que mal
podia acreditar que o abade me absolvera. Não que eu me considerasse criminosa,
mas era muito bom ver que nem a Igreja me considerava também. Meus irmãos me
abraçavam com efusão a toda hora, estávamos todos muito felizes. Exceto as
penitentes, é lógico. Fiquei tão entusiasmada que retirei coragem não sei de
onde e falei para o abade:
– Monsieur
L’Abbé poderia me ouvir em confissão?
Todos ficaram
estupefatos com minha audácia e falta de respeito. Ora, uma camponesa
insignificante ser ouvida em confissão pelo abade em pessoa! Que ousadia! Mas
para surpresa de todos, o abade respondeu imediatamente:
– Pedido feito,
pedido concedido, minha filha. Cristo nosso Senhor nos ensinou a sermos
generosos com os justos também. Todos os demais, por favor, podem se retirar
desta sala de refeições imediatamente. E portas bem fechadas, hein!
Quando todos
saíram, eu não sabia o que fazer. Estava embaraçada, aquele pedido louco tinha
saído nem sei como. Resolvi simplificar e falar a verdade:
– Perdão,
Monsieur L’Abbé! Nem sei por que falei isso. Eu nunca me confessei e nem sei se
sou cristã direito.
CONTINUA: 7a. parte: GILLES DE TROYES NA ABADIA
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