ALLINE DE TROYES – 16ª
parte: O Perverso Walmaric (antepenúltimo capítulo)
MILTON MACIEL
Fim da 15ª parte:
Alline não disse
nada. Abaixou a cabeça, colocou as duas mãos na testa, encobrindo os olhos e
deixou-se ficar assim por um minuto. Quando retirou as mãos e ergueu a cabeça,
os dois romanos viram que a face da gaulesa estava banhada em lágrimas. Mais
uma vez ela os surpreendia. Tendo a oportunidade de ganhar terras e uma grande
quantia em ouro, ela abria mão de tudo isso por outra pessoa. As lágrimas de
Alline eram de comoção e eram de gratidão. Agora ela é que estava grata pela
demonstração de amizade – por que era isso mesmo o que estava evidente ali – por
parte do General Jovinus e do centurião Marcellus.
Parte 16ª - O Perverso Walmaric (antepenúltimo capítulo)
– Meus caros amigos! Caros amigos! Vocês me comovem
com sua solidariedade. Não fazem ideia de como é importante para mim ouvir isso
que disseram.
– Alline de
Troyes, não pode existir, em todo este acampamento, um só oficial ou soldado
que não lhe deva reconhecimento, gratidão e que não seja um grande admirador da
sua coragem e dos seus feitos. Você salvou milhares de romanos e Roma terá que
mostrar sua gratidão. Toda a nossa tropa, como se fosse um só homem, irá exigir
isso do imperador. E ele, para atender aquilo que você coloca para nós como a
recompensa única que pede o seu coração, ele terá que dar um jeito naquele seu
filho rancoroso.
– General, se
isso acontecer, se meu Lucius Dracus for reconduzido à posição de que jamais
poderia ter sido removido, eu é que serei eternamente grata aos senhores e a
Roma. E deixe que eu lhe diga o quanto aprendi a apreciar sua pessoa, assim
como a do centurião Marcellus, antes que eu tenha que ir embora.
– Ir embora? Não
me diga que pretende nos deixar em breve, Alline. Quando pensa partir?
– Hoje mesmo, centurião. Dentro de poucas
horas.
– E vai para onde?
Vamos sentir demais a sua falta.
– Vou atrás de
meus dois homens, general – meu amado e meu mestre. Vou para o sul, pela via
Agrippa, para depois me embrenhar naquela floresta, na região onde espero
encontrar o grupo de bandidos do cruel Walmaric, que mantém o abade e o druida
prisioneiros.
– Ou seja, você vai
fazer de novo o caminho pelo qual nos levou quando nos fez sair daqui desta
floresta e rumar para o sul, à espera dos alamanos que vinham de Troyes, na
noite em que a conhecemos.
– Isso mesmo,
centurião. E vou ultrapassar o ponto onde se travou a batalha. Acredito que os
alamanos de Walmaric estejam atacando e pilhando muito mais ao sul.
– Mas o que você
espera poder fazer? Você, mais os dois prisioneiras, apenas três contra mais de
quatrocentos invasores.
– Não, general, invasores
eram os outros que nós derrotamos. Estes são apenas um bando de salteadores, de
saqueadores, que agem por conta própria. Os alamanos que nós temos prisioneiros
aqui me contaram que eles, como invasores, pretendiam conquistar territórios,
para trazer sua gente. Pilhavam para terem recursos para comer e se manter. Mas
os homens de Walmaric são vistos como proscritos por seu próprio povo. Ele,
afirmou-me um oficial alamano que está em convalescença na tenda dos feridos,
com quem conversei longamente, era um bandido na terra deles e foi aceito na
expedição justamente porque tinha esse grande número de homens armados. Mas,
tão logo chegaram à Gália, eles se separaram do exército e voltaram a agir por
conta própria. São ladrões, assassinos e seqüestradores, nada mais do que isso.
Por isso mesmo é que meu abade e meu druida decidiram ficar com eles, pois têm
um plano, que não sei qual seja, de dar um jeito nesse bando.
– General, por
favor, me escute: Alline, Lucius e Kelvin são somente três contra quatrocentos.
Mas é óbvio que nós podemos – e devemos – dar um jeito de equilibrar essa
desigualdade, o senhor não acha?
– Maravilhosa
ideia, Caius Marcellus. Sim, não é nada mais do que nossa obrigação para com
Alline de Troyes. Além do que, é nossa
obrigação para com o povo da Gália romana, que está sob nossa proteção. E, como
se isso tudo ainda fosse pouco, se, depois de termos vencido o exército
alamano, deixarmos um bando de salteadores como esse agindo livremente, que
vitória completa teremos nós alcançado contra os alamanos?
– Posso então
tomar as providências imediatamente, general Jovinus?
– Sem dúvida
alguma, meu caro Marcellus. Quantos homens pretende levar?
– General, em
condições normais eu levaria 20 manípulos de 60 triarii, uns 1200 homens. Mas,
conhecendo como conheço esta moça aqui, que vai combater ao nosso lado, acho
que a metade disso já é suficiente. Ela vale sozinha pela outra metade. Levarei
uma coorte com apenas 600 homens muito experientes, 600 triarii.
– Magnífico,
Marcellus, acho que você tem razão, esses bandos de saqueadores não têm a
mínima organização militar, são covardes que só caem sobre os civis desarmados.
Quando se defrontarem com seus legionários, tudo o que vão querer é fugir em
debandada. E você, minha filha, fica contente com nossa companhia?
– Feliz e
honrada, general. Será uma grande satisfação cavalgar outra vez com a legião
romana. Há pouco eu só pensava em galopar como louca até encontrar os bandidos
de Walmaric e ia fazê-lo completamente só. E só eu ia lutar por meus homens. Agora
tudo mudou. Com uma coorte de legionários romanos, as horas desses criminosos
estão mais do que contadas.
– Pois então com
licença, preciso ir providenciar muitas coisas.
– Tem toda a
licença, meu caro tribuno.
–
Tribuno ?! O senhor me chamou de tribuno, general?
– Sem dúvida,
Caius Marcellus, depois de comandar uma coorte e retornar vitorioso, pode ter
certeza que este será o seu novo posto na legião. Vou providenciar a sua
imediata promoção, assim que você chegar aqui.
– Senhor, não
sei como lhe agradecer. É muita bondade sua.
– Não,
Marcellus, digamos que é muita competência sua. E, se você tiver que agradecer
a alguém, já sabe, para variar, a quem: a essa moça valente, que vai conduzi-lo
diretamente para a glória na floresta de Troyes.
Caius Marcellus
saudou Alline e o general Jovinus e retirou-se apressado, com o coração aos
saltos. Bendita gaulesa, ia levá-lo à consagração da vitória, vitória fácil
contra um bando de salteadores! Sempre tudo o que havia de bom era devido a
ela. Não tivesse Roma tal dívida de gratidão a saldar com ela, não poderia ele
comandar uma coorte com o fim de aniquilar os saqueadores e resgatar o grande
general romano Lucius Dracus.
Cerca de quatro
horas depois, tudo organizado, a coorte partiu para o sul. A tarde caía e a
marcha levaria dois dias, pela via Agrippa primeiro, e pelas bordas da floresta
depois, à medida que se aproximassem de Troyes.
Walmaric enriquece
Enquanto a
coorte avançava, o bando de saqueadores alamanos de Walmaric continuava
atacando, matando, pilhando e incendiando. A esta altura eles já tinham tanto
material pilhado que precisaram roubar diversas carroças com cavalos, para
carregarem o farto botim. Isso, evidentemente, lhes reduzia a velocidade de
avanço. Estavam todos muito felizes com os resultados de suas investidas contra
os gauleses, haviam saqueado três vilas maiores, dezenas de propriedades rurais
e uma abadia pobre que, se não rendera quase nada em objetos valiosos, rendera
algo muito mais importante: dois religiosos cujo resgate valia muito ouro.
Na caída da
noite o bando acampou novamente. Depois de serem mais uma vez acorrentados pelo
tornozelo, em uma tenda especial, os dois religiosos conversavam:
– Lucius, eu
tive, há poucos instantes, a visão mais importante pela qual esperava: Alline
foi plenamente vitoriosa em sua missão. Ela salvou e liderou os romanos que,
por sua vez, venceram definitivamente o exército alamano invasor.
– Que
maravilhosa notícia, meu amigo! Porque isso quer dizer, acima de tudo, que
minha amada menina está viva e triunfante.
– Sim, Lucius.
E, pelo que vi, ela brilha entre os romanos como Alline de Troyes. O senhor
Gilles ficou reduzido a uma trouxa de roupas guardada na sela de um cavalo em
pleno galope.
– Um cavalo?
– Isso mesmo, abade. Nossa Alline está vindo para nós
a todo galope. E traz consigo uma divisão da legião romana.
– Mas isso é
extraordinário druida! Facilita totalmente o nosso trabalho aqui.
– Mas coloca
nossas vidas em risco pela primeira vez, meu amigo. E isso só pode acontecer em
duas hipóteses, veja bem: se Walmaric souber que o exército alamano foi
derrotado pela legião romana; ou se ele souber que uma divisão romana está no
encalço dele aqui mesmo. Em ambos os casos, meu caro, ele saberá que não terá
como cobrar resgate por nossas vidas. Em ambos os casos só lhe restará fugir. E
aí, pode ter certeza, a primeira coisa que ele vai fazer será se livrar de nós
dois.
– Ah, isso é
mesmo preocupante. Nunca me passaria pela cabeça que...
– Mas é
muito bom que passe Lucius, porque nós dois temos que nos preparar para o pior.
A qualquer momento pode chegar algum remanescente dos alamanos derrotados em
Catalaunum. E, no máximo em mais algumas horas, os legionários de Alline
estarão caindo em cima do grupo de Walmaric. E, em qualquer dos casos, não
teremos quem possa impedir nossa execução.
– Tem razão,
amigo druida. Vamos rogar a Deus que não chegue a Walmaric nenhuma notícia da
derrota dos alamanos em Catalaunum. Assim teremos um pouco mais de tempo de
vida e, quem sabe, um pouquinho mais de esperança.
– Meu caro, a
rigor isso não muda nada em termos de risco, apenas de tempo. Portanto, compete
a nós dois tomarmos as medidas que pudermos tomar, para defender nossas vidas
ameaçadas. Eu tenho algumas ideias que quero discutir com você agora.
Depois de confabularem
por mais de duas horas, os dois amigos renderam-se ao sono. De qualquer forma,
precisariam estar bem descansados para o dia seguinte. E, afinal, não havia mesmo
muito que pudessem fazer por suas vidas. Mas o druida dormiu com um sorriso
instalado em seus lábios.
Os romanos chegam
Na noite
seguinte, a coorte de Marcellus já estava nas pegadas de Walmaric e os seus. Os
gauleses atacados pelos bandidos conduziram os soldados pelas trilhas da
floresta de Troyes. Quando esses guias mostraram que já estavam a uma distância
suficientemente perigosa para que os alamanos os ouvissem, Alline falou com
Marcellus:
– Agora temos
que nos deter aqui. Mande seus homens parar, descansar e comer. Daqui em diante
avanço eu sozinha. Preciso estar em condições de ajudar os meus homens.
– Mas Alline,
isso me parece loucura, é arriscado demais.
– Ora,
centurião, viver é arriscado demais. E nem por isso desistimos da vida. Entenda
que eu posso me aproximar do acampamento deles, sem ser percebida, sozinha; mas
não com uma coorte Romana inteira. Pode ficar tranquilo, quem vai avançar agora
é o senhor Gilles de Troyes, um especialista em esconder-se nas árvores.
Ninguém pode pegar o senhor Gilles.
– Mas não se
esqueça que nós o pegamos no nosso acampamento, na primeira noite.
– Ilusão sua,
centurião. Gilles se fez pegar, porque essa era a sua missão. Não esqueça que
ele precisava se revelar e convencê-los a sair dali imediatamente.
– É, pelo que
vejo, você tem razão. Como
sempre, aliás. Mas e eu? Quando saberei que devemos
avançar?
– Ora, nada mais
simples, Caius Marcellus. Primeiro você vai ter que dispor os seus homens no
mais completo cerco ao acampamento dos bandidos. Mantendo a devida distância, é
claro. Isso vai levar por volta de duas horas, porque vocês não podem fazer
barulho. Quando estiverem em posição, mande tocar as trombetas e comecem o
ataque. Os alamanos vão tratar de fugir, qualquer um deles sabe reconhecer o
toque da trombeta romana. Correrão apavorados e, para onde quer que se dirijam,
encontrarão legionários prontos para recebê-los.
– Brilhante,
Aline! Vejo que você aprendeu tudo de táticas da legião com seu general romano.
Mas e você? E Lucius e o druida?
– Esqueça de
nós, Caius Marcellus. Não haverá nada que possa fazer. Limite-se a vencer sua
batalha e aniquilar definitivamente esse odioso inimigo. Nós três teremos nossa
própria batalha. Assim que Walmaric perceber que é atacado, ele vai mandar
executar imediatamente meus homens. E, nessa hora, eu tenho que estar lá.
– Mas como você
pode agir sozinha contra quatrocentos homens?
– Ah, senhor,
mas não serão quatrocentos homens! Serão quatrocentos covardes, correndo mortos
de medo, para salvar a pele. Se Walmaric em pessoa não comandar um punhado de
bandidos na execução, simplesmente não haverá carrascos. Mas eu tenho certeza
que esse alamano cruel não vai fugir antes de matar meus homens. Por isso eu
tenho que estar lá nesse momento.
– Ainda assim…
lutará sozinha contra Walmaric e seu punhado de assassinos.
– Engano seu
outra vez, centurião. Não lutarei sozinha. Meus dois homens também lutarão.
– Mas eles são
prisioneiros. Estarão manietados, acorrentados!
– Outro engano
seu. Eles não são somente prisioneiros. São Kelvin da Bretanha e Lucius Dracus.
Eles estarão prontos, pode ter certeza! Eles lutarão. Nós lutaremos.
– Que os deuses
os protejam, então, Alline de Troyes. Boa sorte. Vou preparar o cerco agora.
– Boa sorte,
centurião. Estou entrando na floresta.
CONTINUA: A luta pela vida (penúltimo capítulo)
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