sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES – 16ª parte: O Perverso Walmaric (antepenúltimo capítulo)
MILTON MACIEL 

Fim da 15ª parte:
Alline não disse nada. Abaixou a cabeça, colocou as duas mãos na testa, encobrindo os olhos e deixou-se ficar assim por um minuto. Quando retirou as mãos e ergueu a cabeça, os dois romanos viram que a face da gaulesa estava banhada em lágrimas. Mais uma vez ela os surpreendia. Tendo a oportunidade de ganhar terras e uma grande quantia em ouro, ela abria mão de tudo isso por outra pessoa. As lágrimas de Alline eram de comoção e eram de gratidão. Agora ela é que estava grata pela demonstração de amizade – por que era isso mesmo o que estava evidente ali – por parte do General Jovinus e do centurião Marcellus.

Parte 16ª - O Perverso Walmaric (antepenúltimo capítulo)

– Meus caros amigos! Caros amigos! Vocês me comovem com sua solidariedade. Não fazem ideia de como é importante para mim ouvir isso que disseram.

– Alline de Troyes, não pode existir, em todo este acampamento, um só oficial ou soldado que não lhe deva reconhecimento, gratidão e que não seja um grande admirador da sua coragem e dos seus feitos. Você salvou milhares de romanos e Roma terá que mostrar sua gratidão. Toda a nossa tropa, como se fosse um só homem, irá exigir isso do imperador. E ele, para atender aquilo que você coloca para nós como a recompensa única que pede o seu coração, ele terá que dar um jeito naquele seu filho rancoroso.

– General, se isso acontecer, se meu Lucius Dracus for reconduzido à posição de que jamais poderia ter sido removido, eu é que serei eternamente grata aos senhores e a Roma. E deixe que eu lhe diga o quanto aprendi a apreciar sua pessoa, assim como a do centurião Marcellus, antes que eu tenha que ir embora.

– Ir embora? Não me diga que pretende nos deixar em breve, Alline. Quando pensa partir?

–  Hoje mesmo, centurião. Dentro de poucas horas.

– E vai para onde? Vamos sentir demais a sua falta.

– Vou atrás de meus dois homens, general – meu amado e meu mestre. Vou para o sul, pela via Agrippa, para depois me embrenhar naquela floresta, na região onde espero encontrar o grupo de bandidos do cruel Walmaric, que mantém o abade e o druida prisioneiros.

– Ou seja, você vai fazer de novo o caminho pelo qual nos levou quando nos fez sair daqui desta floresta e rumar para o sul, à espera dos alamanos que vinham de Troyes, na noite em que a conhecemos.

– Isso mesmo, centurião. E vou ultrapassar o ponto onde se travou a batalha. Acredito que os alamanos de Walmaric estejam atacando e pilhando muito mais ao sul.

– Mas o que você espera poder fazer? Você, mais os dois prisioneiras, apenas três contra mais de quatrocentos invasores.

– Não, general, invasores eram os outros que nós derrotamos. Estes são apenas um bando de salteadores, de saqueadores, que agem por conta própria. Os alamanos que nós temos prisioneiros aqui me contaram que eles, como invasores, pretendiam conquistar territórios, para trazer sua gente. Pilhavam para terem recursos para comer e se manter. Mas os homens de Walmaric são vistos como proscritos por seu próprio povo. Ele, afirmou-me um oficial alamano que está em convalescença na tenda dos feridos, com quem conversei longamente, era um bandido na terra deles e foi aceito na expedição justamente porque tinha esse grande número de homens armados. Mas, tão logo chegaram à Gália, eles se separaram do exército e voltaram a agir por conta própria. São ladrões, assassinos e seqüestradores, nada mais do que isso. Por isso mesmo é que meu abade e meu druida decidiram ficar com eles, pois têm um plano, que não sei qual seja, de dar um jeito nesse bando.

– General, por favor, me escute: Alline, Lucius e Kelvin são somente três contra quatrocentos. Mas é óbvio que nós podemos – e devemos – dar um jeito de equilibrar essa desigualdade, o senhor não acha?

– Maravilhosa ideia, Caius Marcellus. Sim, não é nada mais do que nossa obrigação para com Alline de Troyes.  Além do que, é nossa obrigação para com o povo da Gália romana, que está sob nossa proteção. E, como se isso tudo ainda fosse pouco, se, depois de termos vencido o exército alamano, deixarmos um bando de salteadores como esse agindo livremente, que vitória completa teremos nós alcançado contra os alamanos?

– Posso então tomar as providências imediatamente, general Jovinus?

– Sem dúvida alguma, meu caro Marcellus. Quantos homens pretende levar?
– General, em condições normais eu levaria 20 manípulos de 60 triarii, uns 1200 homens. Mas, conhecendo como conheço esta moça aqui, que vai combater ao nosso lado, acho que a metade disso já é suficiente. Ela vale sozinha pela outra metade. Levarei uma coorte com apenas 600 homens muito experientes, 600 triarii.

– Magnífico, Marcellus, acho que você tem razão, esses bandos de saqueadores não têm a mínima organização militar, são covardes que só caem sobre os civis desarmados. Quando se defrontarem com seus legionários, tudo o que vão querer é fugir em debandada. E você, minha filha, fica contente com nossa companhia?

– Feliz e honrada, general. Será uma grande satisfação cavalgar outra vez com a legião romana. Há pouco eu só pensava em galopar como louca até encontrar os bandidos de Walmaric e ia fazê-lo completamente só. E só eu ia lutar por meus homens. Agora tudo mudou. Com uma coorte de legionários romanos, as horas desses criminosos estão mais do que contadas.

– Pois então com licença, preciso ir providenciar muitas coisas.

– Tem toda a licença, meu caro tribuno.

– Tribuno ?! O senhor me chamou de tribuno, general?

– Sem dúvida, Caius Marcellus, depois de comandar uma coorte e retornar vitorioso, pode ter certeza que este será o seu novo posto na legião. Vou providenciar a sua imediata promoção, assim que você chegar aqui.

– Senhor, não sei como lhe agradecer. É muita bondade sua.

– Não, Marcellus, digamos que é muita competência sua. E, se você tiver que agradecer a alguém, já sabe, para variar, a quem: a essa moça valente, que vai conduzi-lo diretamente para a glória na floresta de Troyes.

Caius Marcellus saudou Alline e o general Jovinus e retirou-se apressado, com o coração aos saltos. Bendita gaulesa, ia levá-lo à consagração da vitória, vitória fácil contra um bando de salteadores! Sempre tudo o que havia de bom era devido a ela. Não tivesse Roma tal dívida de gratidão a saldar com ela, não poderia ele comandar uma coorte com o fim de aniquilar os saqueadores e resgatar o grande general romano Lucius Dracus.

Cerca de quatro horas depois, tudo organizado, a coorte partiu para o sul. A tarde caía e a marcha levaria dois dias, pela via Agrippa primeiro, e pelas bordas da floresta depois, à medida que se aproximassem de Troyes.

Walmaric enriquece

Enquanto a coorte avançava, o bando de saqueadores alamanos de Walmaric continuava atacando, matando, pilhando e incendiando. A esta altura eles já tinham tanto material pilhado que precisaram roubar diversas carroças com cavalos, para carregarem o farto botim. Isso, evidentemente, lhes reduzia a velocidade de avanço. Estavam todos muito felizes com os resultados de suas investidas contra os gauleses, haviam saqueado três vilas maiores, dezenas de propriedades rurais e uma abadia pobre que, se não rendera quase nada em objetos valiosos, rendera algo muito mais importante: dois religiosos cujo resgate  valia muito ouro.

Na caída da noite o bando acampou novamente. Depois de serem mais uma vez acorrentados pelo tornozelo, em uma tenda especial, os dois religiosos conversavam:

– Lucius, eu tive, há poucos instantes, a visão mais importante pela qual esperava: Alline foi plenamente vitoriosa em sua missão. Ela salvou e liderou os romanos que, por sua vez, venceram definitivamente o exército alamano invasor.

– Que maravilhosa notícia, meu amigo! Porque isso quer dizer, acima de tudo, que minha amada menina está viva e triunfante.

– Sim, Lucius. E, pelo que vi, ela brilha entre os romanos como Alline de Troyes. O senhor Gilles ficou reduzido a uma trouxa de roupas guardada na sela de um cavalo em pleno galope.

– Um cavalo?

– Isso mesmo, abade. Nossa Alline está vindo para nós a todo galope. E traz consigo uma divisão da legião romana.

– Mas isso é extraordinário druida! Facilita totalmente o nosso trabalho aqui.

– Mas coloca nossas vidas em risco pela primeira vez, meu amigo. E isso só pode acontecer em duas hipóteses, veja bem: se Walmaric souber que o exército alamano foi derrotado pela legião romana; ou se ele souber que uma divisão romana está no encalço dele aqui mesmo. Em ambos os casos, meu caro, ele saberá que não terá como cobrar resgate por nossas vidas. Em ambos os casos só lhe restará fugir. E aí, pode ter certeza, a primeira coisa que ele vai fazer será se livrar de nós dois.

– Ah, isso é mesmo preocupante. Nunca me passaria pela cabeça que...

– Mas é muito bom que passe Lucius, porque nós dois temos que nos preparar para o pior. A qualquer momento pode chegar algum remanescente dos alamanos derrotados em Catalaunum. E, no máximo em mais algumas horas, os legionários de Alline estarão caindo em cima do grupo de Walmaric. E, em qualquer dos casos, não teremos quem possa impedir nossa execução.

– Tem razão, amigo druida. Vamos rogar a Deus que não chegue a Walmaric nenhuma notícia da derrota dos alamanos em Catalaunum. Assim teremos um pouco mais de tempo de vida e, quem sabe, um pouquinho mais de esperança.
– Meu caro, a rigor isso não muda nada em termos de risco, apenas de tempo. Portanto, compete a nós dois tomarmos as medidas que pudermos tomar, para defender nossas vidas ameaçadas. Eu tenho algumas ideias que quero discutir com você agora.

Depois de confabularem por mais de duas horas, os dois amigos renderam-se ao sono. De qualquer forma, precisariam estar bem descansados para o dia seguinte. E, afinal, não havia mesmo muito que pudessem fazer por suas vidas. Mas o druida dormiu com um sorriso instalado em seus lábios.

Os romanos chegam
Na noite seguinte, a coorte de Marcellus já estava nas pegadas de Walmaric e os seus. Os gauleses atacados pelos bandidos conduziram os soldados pelas trilhas da floresta de Troyes. Quando esses guias mostraram que já estavam a uma distância suficientemente perigosa para que os alamanos os ouvissem, Alline falou com Marcellus:

– Agora temos que nos deter aqui. Mande seus homens parar, descansar e comer. Daqui em diante avanço eu sozinha. Preciso estar em condições de ajudar os meus homens.

– Mas Alline, isso me parece loucura, é arriscado demais.

– Ora, centurião, viver é arriscado demais. E nem por isso desistimos da vida. Entenda que eu posso me aproximar do acampamento deles, sem ser percebida, sozinha; mas não com uma coorte Romana inteira. Pode ficar tranquilo, quem vai avançar agora é o senhor Gilles de Troyes, um especialista em esconder-se nas árvores. Ninguém pode pegar o senhor Gilles.

– Mas não se esqueça que nós o pegamos no nosso acampamento, na primeira noite.

– Ilusão sua, centurião. Gilles se fez pegar, porque essa era a sua missão. Não esqueça que ele precisava se revelar e convencê-los a sair dali imediatamente.

– É, pelo que vejo, você tem razão. Como sempre, aliás. Mas e eu? Quando saberei que devemos avançar?

– Ora, nada mais simples, Caius Marcellus. Primeiro você vai ter que dispor os seus homens no mais completo cerco ao acampamento dos bandidos. Mantendo a devida distância, é claro. Isso vai levar por volta de duas horas, porque vocês não podem fazer barulho. Quando estiverem em posição, mande tocar as trombetas e comecem o ataque. Os alamanos vão tratar de fugir, qualquer um deles sabe reconhecer o toque da trombeta romana. Correrão apavorados e, para onde quer que se dirijam, encontrarão legionários prontos para recebê-los.

– Brilhante, Aline! Vejo que você aprendeu tudo de táticas da legião com seu general romano. Mas e você? E Lucius e o druida?

– Esqueça de nós, Caius Marcellus. Não haverá nada que possa fazer. Limite-se a vencer sua batalha e aniquilar definitivamente esse odioso inimigo. Nós três teremos nossa própria batalha. Assim que Walmaric perceber que é atacado, ele vai mandar executar imediatamente meus homens. E, nessa hora, eu tenho que estar lá.

– Mas como você pode agir sozinha contra quatrocentos homens?

– Ah, senhor, mas não serão quatrocentos homens! Serão quatrocentos covardes, correndo mortos de medo, para salvar a pele. Se Walmaric em pessoa não comandar um punhado de bandidos na execução, simplesmente não haverá carrascos. Mas eu tenho certeza que esse alamano cruel não vai fugir antes de matar meus homens. Por isso eu tenho que estar lá nesse momento.

– Ainda assim… lutará sozinha contra Walmaric e seu punhado de assassinos.

– Engano seu outra vez, centurião. Não lutarei sozinha. Meus dois homens também lutarão.

– Mas eles são prisioneiros. Estarão manietados, acorrentados!

– Outro engano seu. Eles não são somente prisioneiros. São Kelvin da Bretanha e Lucius Dracus. Eles estarão prontos, pode ter certeza! Eles lutarão. Nós lutaremos.

– Que os deuses os protejam, então, Alline de Troyes. Boa sorte. Vou preparar o cerco agora.

– Boa sorte, centurião. Estou entrando na floresta.

CONTINUA: A luta pela vida (penúltimo capítulo)

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