ALLINE DE TROYES - 11ª parte: O amor é uma avalanche!
MILTON MACIEL
Fim da 10 parte:
– Centurião, homens
feridos não são ameaças, são seres apenas humanos desvalidos, que precisam de
ajuda.
– Continuo não
entendendo sua lógica, Alline de Troyes!
– É seu direito,
centurião Marcellus. Mas deixem, agora, que eu lhes conte a parte mais
maravilhosa de toda a minha curta vida.
11ª parte: O amor é uma avalanche!
Nos primeiros
meses eu fiz progressos enormes, dei verdadeiros passos de gigante. Já ia fazer
quinze anos na próxima primavera e, cada vez que eu pensava nisso, a minha
felicidade aumentava ainda mais. Na minha idade, todas as meninas já estavam
casadas ou a caminho rápido para isso. A maioria delas já tinha filhos,
inclusive.
Eu, cada vez que
via uma jovem grávida no burgo de Troyes, olhava para aquilo horrorizada e
agradecia mentalmente ao meu abade, por ter me livrado daquele horror. Minha
barriga, ao contrário dos enormes ventres da maior parte de minhas coetâneas,
era lisa, dura como uma tábua, podia aguentar socos e pancadas com o simples
retesar dos meus músculos. Mais uma coisa a agradecer a meu abade/general, que
tinha sido tão exigente e tão duro com os meus exercícios de todos os dias.
Depois de alguns meses de severíssima rotina, eu estava completamente
acostumada e adaptada, me surpreendia fazendo ainda mais flexões e abdominais e
correndo horas a fio voluntariamente, porque o meu organismo agora exigia isso
por si mesmo. O senhor Gilles de Troyes, que chegara ali pouco mais do que um
palito andante, agora encorpava a olhos vistos.
Mas o problema é
que, sob as vestes de menino, as curvas e os cheios de um corpo de mulher
também encorpavam. E isso tornava mais difícil minha rotina diária de ocultação
desses incômodos e indesejáveis atributos femininos. Eram mais enchimentos para
nivelar os seios com o peito de rapaz, para ocultar aquelas desagradáveis
protuberâncias traseiras que os meninos não tinham, para engrossar a cintura,
que era fina demais. O senhor Gilles de Troyes parecia mais um tourinho retaco,
alguns colegas diziam que eu ia ser um velho gordo. Só meus irmãos sabiam porque
o menino Gilles tinha que ter aquela silhueta quadrada.
Foi por essa
época que o senhor abade começou dois novos tipos de treinamento comigo. Um foi
a equitação de competição e de combate. Lucius Dracus era um exímio cavaleiro,
havia aprendido muitas técnicas com cavaleiros celtas e também com cavaleiros
hunos, para ele os dois melhores tipos de cavaleiros que ele havia conhecido na
vida. Eu adorei aprender aquelas incríveis peripécias e, principalmente, a
grande quantidade de truques para usar em combate. Cheguei a superar meu mestre
inúmeras vezes, o que o deixava extremamente feliz e orgulhoso de mim.
Mas o segundo
tipo de treinamento trouxe complicações pelas quais eu não esperava – a luta
livre. Começa que eu não podia praticar a luta usando todos aqueles meus
enchimentos de disfarce. Sobre o corpo havia uma simples túnica até os joelhos,
encobrindo só em parte minha calças gaulesas de montaria. Assim eu dispunha de
liberdade total de movimentos das pernas. Mas nessa prática de lutas, o combate
é travado corpo a corpo. E coisas estranhas começaram a acontecer comigo.
Cada vez que o
abade me pegava entre os braços para me imobilizar, que me aplicava uma chave
de pernas, que me fazia rolar no chão com ele, eu perdia o controle dos
movimentos de luta. Ficava distraída, porque o meu coração disparava e batia
muito rápido. E eu sentia uma estranha perturbação, como eu nunca tinha sentido
na vida. Não fui uma boa aluna de luta livre e o abade me disse que estranhava
o meu comportamento em aula, porque eu era boa demais em todas as outras
modalidades, principalmente as que envolviam o uso de armas. Um dia ele me
perguntou se eu não gostava de luta livre e se eu desejava parar com esse
treinamento.
Na hora eu tive
uma reação que me assustou. Eu dei um grito, meu coração tinha disparado de
novo:
– Não!!! Pelo seu Cristo, não! Eu não quero parar.
Juro que vou melhorar, que vou me esforçar mais, muito mais. O senhor pode
aumentar o número de horas, tire da equitação, onde um não preciso mais nada –
e saí correndo como uma louca para a passagem exterior da sala de armas, me
embrenhando no horto e no pomar, correndo como uma fugitiva e desatando a
chorar. Se meu abade me visse, o que ia pensar de mim? Eu acabava de ter uma
reação de mulher, de mulherzinha chorona e fiasquenta! Fiquei apavorada comigo
mesma.
Nos dias
seguintes, atendendo a minha sugestão, o tempo que seria gasto com os
exercícios a cavalo foram usados para a luta livre. Eu fiz o melhor que pude,
tentei me controlar, passei a agredir o abade com uma fúria desproporcional ao
treinamento. Ele interpretou aquilo como um progresso e chegou a me elogiar.
Mas por dentro eu sabia o quanto era difícil manter aquele controle todo.
Porque, cada vez que ele me apertava com os braços, cada vez que o seu corpo
musculoso e másculo encostava no meu, eu me sentia sufocar por dentro, estremecia
tanto que tinha medo que ele percebesse.
A situação foi
ficando tão tensa para mim, que eu fui procurar a ajuda do mago Kelvin. Depois
de mais de uma hora de rodeios e floreios, na qual eu hesitava e morria de
vergonha de entrar no assunto, o druida disse de repente, como se aquilo fosse
a coisa mais simples e transparente deste mundo:
– Está bom,
minha menina tola. Já lhe dei bastante tempo, mas vejo que você não consegue se
livrar do seu medo. Pois eu vou lhe dizer: seu druida já lhe falou, no primeiro
dia em que a conheceu, que isso ia acontecer, lembra-se?
– Isso o que,
mestre? – respondi confusa.
– Que você iria
encontrar o Amor na abadia de Troyes.
–Mas, mestre, eu
não encontrei amor algum. Quer dizer, tem a bondade extrema do senhor e do
senhor abade, que me tratam como seu fosse uma coisa muito melhor do que sou.
Tem a paciência e a generosidade dos irmãos e dos professores, todos muito bons
comigo. É isso?
– Não, minha
filha. Não é o amor que vem de fora para dentro, das outras pessoas para com
você. O amor que eu disse que você iria encontrar é o amor que surgiria dentro
de você mesma. E esse amor já chegou.
– Mas como,
senhor meu mestre? Eu não consigo entender.
– Alline, você é
uma alma pura, dessas que raramente se vê neste mundo. E, para um velho mago
como eu, é muito fácil ler o que vai por dentro das almas puras e transparentes
como a sua. Você está amando, Alline de Troyes. Encontrou o amor!
– Mas...mas,
senhor... Que amor é esse, se eu mesma não o reconheço? Estou tão confusa com o
que diz...
– Você está
confusa com o que sente, minha pobre
menina. Mas seu druida pode ler você perfeitamente. Você é uma mulher jovem e
precoce em tudo, Alline. Você é uma mulher, por mais que se vista de homem. E
você está amando, mocinha. Está apaixonada. O amor, quando chega, é uma
avalanche
– Eu??!! Mas
como? E por quem ?
– Ora, ora, pelo
seu querido abade, por quem mais poderia ser?
Na hora eu senti
uma vertigem, o chão pareceu sumir aos meus pés e eu caí quase desfalecida nos
braços do maravilhoso druida Kelvin. Ele me recostou em sua cama e foi buscar
algo de cheiro muito intenso e estranho, que colocou sob o meu nariz. Voltei a
mim imediatamente. Foi a primeira vez na vida que tive um desfalecimento
verdadeiro e fiquei morta de vergonha do druida.
Mas ele, com
toda a facilidade, leu o que eu pensava e sentia e falou:
– Você não deve
se envergonhar disso, minha filha. É normal que as pessoas tenham vertigens sob
emoções muito fortes. Digo-lhe mais: pare de pensar que isso é coisa de mulherzinha,
que homens não sentem isso. Porque sentem. E eu mesmo já passei por isso mais
de uma vez na vida.
– Mas, senhor...
– Alline, de uma
vez por todas, compreenda isto, minha filha: você é MULHER! Você só está muito
bem adaptada a sua casca exterior de homem, que a protege aqui nesta abadia, mas
você é mulher! E não pense que toda mulher é fraca e pusilânime como sua irmã,
ou fingida e manipuladora como sua mãe. Há milhares de mulheres dignas e de
caráter, quer estejam cuidando de uma penca de doze filhos, quer sejam
sacerdotisas nos templos, quer sejam guerreiras como você. Nunca se envergonhe
de ser mulher. Ao contrário, aprenda a ter orgulho de sua condição feminina.
A leitura de
minha irmã e minha mãe tinha sido perfeita! E o druida nunca as tinha visto nem
eu lhes falara jamais sobre elas. Naquele momento, enfim, eu tive um primeiro
lampejo sobre minha real identidade. Sim, eu era uma mulher. E não era nenhuma
florzinha de estufa nem uma falsa ou mentirosa. Eu era mulher e era digna. Era
mulher e era corajosa. Era mulher e sabia lutar com armas. E sabia lutar a luta
livre e...
E nesse momento,
ao lembrar da perturbação que eu sentia durante os exercícios de luta com o meu
abade, eu entendi enfim o que o druida estivera tentando me revelar: Sim, eu
era Alline e não Gilles, eu era uma moça
e não um rapaz. E essa mulher tremia quando o abade a apertava em seus
braços porque ela... tinha encontrado o Amor DENTRO DE SI!
Mestre Kelvin
entrou dentro do meu raciocínio com toda a facilidade:
– Isso mesmo,
minha filha! Agora você compreende tudo. O verdadeiro amor surge sempre de
dentro para fora. Dentro da pessoa que se descobre amando. Felizmente você veio
a mim no momento certo. E, antes que você comece a se preocupar com medo da
reação do seu abade, deixe que eu lhe diga, entrando um pouco futuro adentro:
Sim, seu amor será correspondido. Na verdade, já o é. Mas isso é tudo que eu
posso lhe dizer por ora. Agora vá em paz para seu alojamento e trate de
descansar e por os pensamentos dessa cabecinha em ordem.
E eu fiz isso:
saí dali andando em direção ao nosso alojamento, flutuando pelos ambientes da
abadia, cantando baixo, rindo contente, rodopiando pelos corredores, com se eu
fosse uma criança abençoada. Pois era exatamente assim que eu me sentia naquele
momento.
–E o abade?
–perguntaram os dois oficiais romanos em uníssono.
– Isso eu acho
que vou ter que deixar para lhes contar depois, pois vejam: três oficiais estão
chegando à entrada da tenda e devem precisar dos senhores.
–Sim, sim, é
verdade! Esqueci que tTemos que nos reunir para decidir o futuro dos
prisioneiros que não estão feridos. Então com licença, Alline de Troyes,
devemos nos retirar. Mais tarde, por favor, de-nos outra vez o prazer de
compartilhar a refeição conosco. Então haveremos de encontrar um bom momento e
lugar para prosseguirmos com seu relato. E pode ficar tranquila, de nossas
bocas não saíra uma só palavra a respeito de um certo general do império.
Alline inclinou
a cabeça em agradecimento e o general e o centurião foram embora com os outras
oficiais.
Continua: O abade Lucinus e o general Lucius duelam
por amor
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