sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES - 10ª parteA sala de armas. O mistério do abade.
MILTON MACIEL

Fim da 9ª parte
O druida falou algo que para mim só aumentou a confusão:

–Também eles terão que amá-la minha filha, porque é impossível conhecer uma criatura como você e não amá-la. Mas não é a isso que me refiro. Vamos dar tempo ao tempo. Aliás, não muito tempo, pelo que posso antever. E o Amor chegará para Alline de Troyes. Aproveite muito bem esses anos maravilhosos em que você estará nesta abadia. Eles serão a base maior de toda a sua vida.

10ª parte:
E, de fato, tudo aconteceu exatamente assim. Passei a ter instruções particulares com o sábio Kevin duas vezes por semana, quando ele me ensinava muito da arte de cura dos druidas. E sobre seus estranhos medicamentos. Muitas vezes eu o acompanhei à floresta, para colher o visgo dos carvalhos; e folhas, frutos e raízes, com que seus preparados eram feitos. Aprendi a reconhecer uma por uma essas benesses da floresta. Também aprendi a cultivar muitas ervas e até mesmo plantas comestíveis. Com o tempo, por causa destas plantas, passei a colaborar também com o irmão Ariosto, que era o nosso hortelão. E, como eu já tinha uma experiência com vacas desde criancinha e com fabricação de queijos desde dois anos antes, acabei assumindo a pequena queijaria da abadia – que eu consegui dobrar de tamanho e de produção.

– Pelos deuses, Alline de Troyes, isso não era demais para você? Como conseguia tempo para estudar?

– Sobrava-me tempo, general Jovinus. As aulas para os meninos, na escola da abadia eram dadas das 7 às 7 durante apenas dois dias seguidos da semana. Isso porque todas as crianças tinham que trabalhar com seus pais e mães. Eu fiquei na classe dos meus irmãos, que estudavam juntos, no mesmo nível, nos dias de Marte e de Mercúrio (NOTA: terça e quarta feiras).

No meu primeiro dia de aula, o abade mandou antes chamar meus irmãos a seus aposentos; e ali me apresentou a eles como sendo aquele que eles teriam que aceitar como seu novo e melhor amigo. Os meninos me olharam desconfiados, parecendo não simpatizar muito com o tal novo amigo. Eu, fazendo o que o abade me dissera, fiquei quieta, sem dizer uma palavra, para que eles não reconhecessem minha voz e meu jeito de falar. O abade falou para Phillipe e Marcel:

–  Quero que vocês apertem a mão do meu assistente, o senhor Gilles, que será colega de vocês na classe. É um rapaz muito inteligente e gentil, como vocês verão. Sugiro que se inclinem respeitosamente ante ele.

Meus irmãos me olharam com uma cara de poucos amigos, mas fizeram o que o abade mandou: um a um apertaram minha mão e se inclinaram respeitosamente para a frente. Só que eu não resisti na hora e caí na gargalhada. Isso foi fatal, por que minha gargalhada é inconfundível. Marcel gritou de imediato, com a cara mais surpresa do mundo:

– Alline! Por Tutatis, irmã, é você mesma! É Alline, Phillipe, você não está vendo?

Eu os abracei e o senhor abade, muito divertido com tudo aquilo, explicou a eles que, daquele dia em diante, eles deviam aceitar, ajudar e proteger, em aula e fora dela, o senhor Gilles de Troyes. Ficamos todos contentes: tínhamos de novo um segredo que era só nosso, para esconder de nossos pais e do mundo todo!  Menos do abade e do druida, é certo.

Além dos dois dias de aula e dos dois dias com o druida, em outras ocasiões, que eram combinadas com o abade, eu tinha treinamentos físicos extenuantes e práticas avançadas com armas.

– Armas? Você diz espada, lança, essas coisas?

– Isso tudo e muito mais, centurião Marcellus. O senhor abade cumpriu sempre tudo aquilo que me prometeu. Então eu ia para a sala de armas da abadia, um grande espaço subterrâneo, ao qual só se podia chegar por uma longa passagem secreta. Só o abade e o druida tinham acesso a essa passagem e suas múltiplas portas e armadilhas. A abadia ocupava o prédio de um antigo castelo, com seus sistemas de defesa e uma velha muralha não muito segura. Mas a sala de armas era realmente um lugar secreto e muito amplo. E ali havia uma quantidade impressionante de armas de todos os tipos e épocas, um verdadeiro arsenal.

– E o que você aprendeu?

– Meu instrutor deu sempre prioridade a meu treinamento com arco e flecha. Seu olhar experiente de imediato avaliou minha natural propensão para essa arma. Mas aprendi a lutar com gládio, com espada gaulesa, com pilo, com francisca – que é o machado de guerra dos francos – e com o javelin. Os senhores já devem ter notado, pelos nossos nomes, que nossa família gaulesa é descendente de francos diretamente. Outra hora eu conto isso. Aprendi também a luta dos gladiadores com escudo, rede e tridente. Meu instrutor era muito severo quanto ao esforço exigido e me fez entender que eu, por ser uma pessoa de compleição mais franzina do que um rapaz normal da minha idade, teria que seguir um programa de exercícios físicos extremamente rigorosos e constantes, para desenvolver os músculos dos braços e das pernas e a força física como um todo.

– E nós vimos você em ação, Alline de Troyes! E tendo visto, podemos dizer que esse seu instrutor era de fato muito bom. E que você, com toda certeza, seguiu à risca seus ensinamentos. Mas quem era, afinal, esse terceiro homem a ficar sabendo do seu segredo, de sua dupla identidade de Gilles e Alline?

– Esse terceiro homem era o primeiro homem, general! Era o próprio abade Lucinus. Esqueceu-se que eu disse que ele era um legionário romano?

– Por Júpiter, menina! Quem poderia imaginar um abade católico como instrutor de lutas e de armas de guerra!

– Bem, senhores, lembram-se que eu disse mais de uma vez que, depois, durante minha narrativa, compreenderiam porque o abade era assim diferente? Pois agora chegamos ao ponto: O abade Lucinus tinha sido um legionário. E, como legionário, tinha sido um centurião. E, como centurião cobriu-se de glórias em combate e subiu muito em sua carreira. E chegou à corte de Constantino já como o mais jovem general do seu tempo. O que foi a sua desgraça.

– Por que?

– Porque conseguiu rapidamente muitos inimigos, que temiam sua rápida ascensão junto ao imperador. No grupo de Constâncio, um dos três filhos do imperador, havia um oficial de origem visigoda, que tinha uma grande inveja do meu futuro abade. E tramou um atentado contra ele, com a ajuda de mais dois sicários. Mas o atacado resistiu e acabou matando todos os três. E caiu em desgraça com Constâncio, que mandou uma horda de assassinos atrás dele.

– Mas esse oficial visigodo era Teodorico! E o oficial que ele atacou covardemente pelas costas, com seus homens, era Lucius Dracus! O grande Lucius Dracus ! Não pode ser! Não me diga que seu abade…

– Era Lucius Dracus em pessoa, sim senhor! Este era o nome do meu abade. Que não era abade coisa nenhuma!

 – Como?! – gritaram ao mesmo tempo os dois oficiais romanos.

– O jovem oficial Lucius Dracus nunca foi padre nem abade. Mas foi um homem brilhante e inteligente, que conseguiu se acobertar sob a pela de um abade católico, para se proteger da perseguição que o filho do imperador mandou mover contra ele por todo o império.  

Caius Marcellus disse:

– O general Lucius Dracus! Uma lenda viva. Eu mesmo servi sob suas ordens em Ravenna, durante um curto intervalo de poucos meses. Agora, enfim, está explicado o sumiço dele, que parecia ter-se evaporado. Quase todos pensam que ele foi assassinado a mando de Constâncio, que depois fez sumir com o corpo. Que história incrível!

– Mas, Alline, como um militar pode se passar por um abade? Onde foi que ele aprendeu o suficiente para, pelo menos, poder enganar outros padres? – quis saber o general.

– Lucius Dracus fugiu para a Gália e foi acolhido por um parente seu, um tio que era abade em Lugdunum. Ele o vestiu de padre e começou a dar-lhe todas as instruções para que aquela farsa pudesse ser mantida. Mas acontece que o general Lucius de fato se converteu ao cristianismo. E aceitou viver uma vida monástica, para surpresa de seu parente abade. E, em poucos anos, ele estava totalmente integrado à vida do mosteiro, auxiliar direto de seu tio abade. Foi desse tio a ideia de terminar de garantir o futuro de Lucius, convertendo-o, por meio de documentos que fez lavrar, em padre Lucinus e, pouco depois, em abade Lucinus. O tio tinha autoridade para isso, tinha uma grande influência na igreja e a usou, obtendo a nomeação diretamente de Roma. E, quando soube da morte do abade de Troyes, mandou o sobrinho imediatamente para lá, para assumir a abadia. Foi quando eu tive a felicidade suprema de conhecê-lo.

– Pelos deuses! Então Lucius Dracus está vivo e está em Troyes. E faz muito bem em se manter sob disfarce, porque o imperador Constantino está muito doente e em breve o império estremecerá com as lutas dos seus três filhos pela sucessão. Eu acredito que teremos uma sangrenta guerra civil, que vai nos arruinar e escancarar ainda mais as fronteiras do império para todos os bárbaros invasores. E, se isso se confirmar, teremos combatido e vencido estes alamanos aqui em vão.

– General Jovinus, Lucius Dracus não está mais em Troyes. Espere um pouco mais, com paciência, até que eu chegue ao ponto em que lhe direi o que aconteceu. Antes disso, há uma história bonita demais que eu quero lhes contar. A história do grande amor que o druida me anunciou na manhã em que o conheci. O amor que me fez atravessar estas florestas três dias e três noites, atrás destes malditos alamanos invasores.

– Malditos invasores que, poucas horas atrás, você estava ajudando a sobreviver.

– Centurião, homens feridos não são ameaças, são seres apenas humanos desvalidos, que precisam de ajuda.

– Continuo não entendendo sua lógica, Alline de Troyes!

– É seu direito, centurião Marcellus. Mas deixem, agora, que eu lhes conte a parte mais maravilhosa de toda a minha curta vida.


Continua: O amor é uma avalanche!

Nenhum comentário:

Postar um comentário