ALLINE DE TROYES - 10ª parte: A sala de armas. O mistério do abade.
MILTON MACIEL
Fim da 9ª parte
O druida falou
algo que para mim só aumentou a confusão:
–Também eles
terão que amá-la minha filha, porque é impossível conhecer uma criatura como
você e não amá-la. Mas não é a isso que me refiro. Vamos dar tempo ao tempo.
Aliás, não muito tempo, pelo que posso antever. E o Amor chegará para Alline de
Troyes. Aproveite muito bem esses anos maravilhosos em que você estará nesta
abadia. Eles serão a base maior de toda a sua vida.
10ª parte:
E, de fato, tudo
aconteceu exatamente assim. Passei a ter instruções particulares com o sábio
Kevin duas vezes por semana, quando ele me ensinava muito da arte de cura dos
druidas. E sobre seus estranhos medicamentos. Muitas vezes eu o acompanhei à
floresta, para colher o visgo dos carvalhos; e folhas, frutos e raízes, com que
seus preparados eram feitos. Aprendi a reconhecer uma por uma essas benesses da
floresta. Também aprendi a cultivar muitas ervas e até mesmo plantas
comestíveis. Com o tempo, por causa destas plantas, passei a colaborar também com o irmão Ariosto, que era o nosso hortelão. E, como eu já tinha uma
experiência com vacas desde criancinha e com fabricação de queijos desde dois
anos antes, acabei assumindo a pequena queijaria da abadia – que eu consegui dobrar
de tamanho e de produção.
– Pelos deuses,
Alline de Troyes, isso não era demais para você? Como conseguia tempo para
estudar?
– Sobrava-me
tempo, general Jovinus. As aulas para os meninos, na escola da abadia eram
dadas das 7 às 7 durante apenas dois dias seguidos da semana. Isso porque todas
as crianças tinham que trabalhar com seus pais e mães. Eu fiquei na classe dos
meus irmãos, que estudavam juntos, no mesmo nível, nos dias de Marte e de
Mercúrio (NOTA: terça e quarta feiras).
No meu primeiro
dia de aula, o abade mandou antes chamar meus irmãos a seus aposentos; e ali me
apresentou a eles como sendo aquele que eles teriam que aceitar como seu novo e
melhor amigo. Os meninos me olharam desconfiados, parecendo não simpatizar
muito com o tal novo amigo. Eu, fazendo o que o abade me dissera, fiquei
quieta, sem dizer uma palavra, para que eles não reconhecessem minha voz e meu
jeito de falar. O abade falou para Phillipe e Marcel:
– Quero que vocês apertem a mão do meu
assistente, o senhor Gilles, que será colega de vocês na classe. É um rapaz
muito inteligente e gentil, como vocês verão. Sugiro que se inclinem
respeitosamente ante ele.
Meus irmãos me
olharam com uma cara de poucos amigos, mas fizeram o que o abade mandou: um a
um apertaram minha mão e se inclinaram respeitosamente para a frente. Só que eu
não resisti na hora e caí na gargalhada. Isso foi fatal, por que minha
gargalhada é inconfundível. Marcel gritou de imediato, com a cara mais surpresa
do mundo:
– Alline! Por
Tutatis, irmã, é você mesma! É Alline, Phillipe, você não está vendo?
Eu os abracei e
o senhor abade, muito divertido com tudo aquilo, explicou a eles que, daquele
dia em diante, eles deviam aceitar, ajudar e proteger, em aula e fora dela, o
senhor Gilles de Troyes. Ficamos todos contentes: tínhamos de novo um segredo
que era só nosso, para esconder de nossos pais e do mundo todo! Menos do abade e do druida, é certo.
Além dos dois
dias de aula e dos dois dias com o druida, em outras ocasiões, que eram
combinadas com o abade, eu tinha treinamentos físicos extenuantes e práticas
avançadas com armas.
– Armas? Você
diz espada, lança, essas coisas?
– Isso tudo e
muito mais, centurião Marcellus. O senhor abade cumpriu sempre tudo aquilo que
me prometeu. Então eu ia para a sala de armas da abadia, um grande espaço
subterrâneo, ao qual só se podia chegar por uma longa passagem secreta. Só o
abade e o druida tinham acesso a essa passagem e suas múltiplas portas e
armadilhas. A abadia ocupava o prédio de um antigo castelo, com seus sistemas
de defesa e uma velha muralha não muito segura. Mas a sala de armas era
realmente um lugar secreto e muito amplo. E ali havia uma quantidade
impressionante de armas de todos os tipos e épocas, um verdadeiro arsenal.
– E o que você
aprendeu?
– Meu instrutor
deu sempre prioridade a meu treinamento com arco e flecha. Seu olhar experiente
de imediato avaliou minha natural propensão para essa arma. Mas aprendi a lutar
com gládio, com espada gaulesa, com pilo, com francisca – que é o machado de guerra dos francos – e com o javelin. Os senhores já devem ter
notado, pelos nossos nomes, que nossa família gaulesa é descendente de francos
diretamente. Outra hora eu conto isso. Aprendi também a luta dos gladiadores
com escudo, rede e tridente. Meu instrutor era muito severo quanto ao esforço
exigido e me fez entender que eu, por ser uma pessoa de compleição mais
franzina do que um rapaz normal da minha idade, teria que seguir um programa de
exercícios físicos extremamente rigorosos e constantes, para desenvolver os músculos
dos braços e das pernas e a força física como um todo.
– E nós vimos
você em ação, Alline de Troyes! E tendo visto, podemos dizer que esse seu
instrutor era de fato muito bom. E que você, com toda certeza, seguiu à risca
seus ensinamentos. Mas quem era, afinal, esse terceiro homem a ficar sabendo do
seu segredo, de sua dupla identidade de Gilles e Alline?
– Esse terceiro
homem era o primeiro homem, general!
Era o próprio abade Lucinus. Esqueceu-se que eu disse que ele era um legionário
romano?
– Por Júpiter,
menina! Quem poderia imaginar um abade católico como instrutor de lutas e de
armas de guerra!
– Bem, senhores,
lembram-se que eu disse mais de uma vez que, depois, durante minha narrativa,
compreenderiam porque o abade era assim diferente? Pois agora chegamos ao
ponto: O abade Lucinus tinha sido um legionário. E, como legionário, tinha sido
um centurião. E, como centurião cobriu-se de glórias em combate e subiu muito
em sua carreira. E chegou à corte de Constantino já como o mais jovem general
do seu tempo. O que foi a sua desgraça.
– Por que?
– Porque conseguiu
rapidamente muitos inimigos, que temiam sua rápida ascensão junto ao imperador.
No grupo de Constâncio, um dos três filhos do imperador, havia um oficial de
origem visigoda, que tinha uma grande inveja do meu futuro abade. E tramou um
atentado contra ele, com a ajuda de mais dois sicários. Mas o atacado resistiu
e acabou matando todos os três. E caiu em desgraça com Constâncio, que mandou
uma horda de assassinos atrás dele.
– Mas esse
oficial visigodo era Teodorico! E o oficial que ele atacou covardemente pelas
costas, com seus homens, era Lucius Dracus! O grande Lucius Dracus ! Não
pode ser! Não me diga que seu abade…
– Era Lucius
Dracus em pessoa, sim senhor! Este era o nome do meu abade. Que não era abade
coisa nenhuma!
– Como?! – gritaram ao mesmo tempo os dois
oficiais romanos.
– O jovem oficial
Lucius Dracus nunca foi padre nem abade. Mas foi um homem brilhante e
inteligente, que conseguiu se acobertar sob a pela de um abade católico, para
se proteger da perseguição que o filho do imperador mandou mover contra ele por
todo o império.
Caius Marcellus
disse:
– O general Lucius Dracus! Uma lenda viva. Eu mesmo
servi sob suas ordens em Ravenna, durante um curto intervalo de poucos meses.
Agora, enfim, está explicado o sumiço dele, que parecia ter-se evaporado.
Quase todos pensam que ele foi assassinado a mando de Constâncio, que depois
fez sumir com o corpo. Que história incrível!
– Mas, Alline,
como um militar pode se passar por um abade? Onde foi que ele aprendeu o
suficiente para, pelo menos, poder enganar outros padres? – quis saber o
general.
– Lucius Dracus
fugiu para a Gália e foi acolhido por um parente seu, um tio que era abade em
Lugdunum. Ele o vestiu de padre e começou a dar-lhe todas as instruções para
que aquela farsa pudesse ser mantida. Mas acontece que o general Lucius de fato
se converteu ao cristianismo. E aceitou viver uma vida monástica, para surpresa
de seu parente abade. E, em poucos anos, ele estava totalmente integrado à vida
do mosteiro, auxiliar direto de seu tio abade. Foi desse tio a ideia de
terminar de garantir o futuro de Lucius, convertendo-o, por meio de documentos
que fez lavrar, em padre Lucinus e, pouco depois, em abade Lucinus. O tio tinha
autoridade para isso, tinha uma grande influência na igreja e a usou, obtendo a
nomeação diretamente de Roma. E, quando soube da morte do abade de Troyes,
mandou o sobrinho imediatamente para lá, para assumir a abadia. Foi quando eu
tive a felicidade suprema de conhecê-lo.
– Pelos deuses!
Então Lucius Dracus está vivo e está em Troyes. E faz muito bem em se manter
sob disfarce, porque o imperador Constantino está muito doente e em breve o
império estremecerá com as lutas dos seus três filhos pela sucessão. Eu
acredito que teremos uma sangrenta guerra civil, que vai nos arruinar e
escancarar ainda mais as fronteiras do império para todos os bárbaros
invasores. E, se isso se confirmar, teremos combatido e vencido estes alamanos
aqui em vão.
– General
Jovinus, Lucius Dracus não está mais em Troyes. Espere um pouco mais, com paciência,
até que eu chegue ao ponto em que lhe direi o que aconteceu. Antes disso, há
uma história bonita demais que eu quero lhes contar. A história do grande amor
que o druida me anunciou na manhã em que o conheci. O amor que me fez
atravessar estas florestas três dias e três noites, atrás destes malditos
alamanos invasores.
– Malditos
invasores que, poucas horas atrás, você estava ajudando a sobreviver.
– Centurião, homens
feridos não são ameaças, são seres apenas humanos desvalidos, que precisam de ajuda.
– Continuo não
entendendo sua lógica, Alline de Troyes!
– É seu direito,
centurião Marcellus. Mas deixem, agora, que eu lhes conte a parte mais
maravilhosa de toda a minha curta vida.
Continua: O amor é uma avalanche!
Nenhum comentário:
Postar um comentário