O BOITATÁ DE “O DEMÔNIO E A SRTA. PRYM”
MILTON MACIEL
Era uma noite toda estrelada e eu saí às 11
horas para observar aquele céu fantástico. Fui andando pela estradinha de
terra, depois entrei pelo campo e caminhei por mais de 15 minutos, lentamente,
parando a todo instante para contemplar o firmamento. Foi quando eu vi a trilha
luminosa de um meteoro riscar o céu e se perder no horizonte. Minha atenção
chamada naturalmente para aquele ponto, vi que, bem perto dali, uma nuvem
luminosa como que se elevava do chão, como uma chama, no topo da coxilha.
Boitatá!
Sou fascinado pelo boitatá, aquela estranha
luminescência fosforescente, causada por resíduos de ossadas animais no campo.
O nome é indígena, vem de m’boy tatá, cobra de luz. Quase corri para o topo da colina,
para ver de perto o fenômeno. É claro que não existiria nenhuma cobra de fogo
ali. Mas, quando cheguei, me deparei com algo muito mais insólito: havia duas
figuras humanas dentro do boitatá! Convenhamos,
aquilo não fazia o menor sentido, principalmente porque as figuras pareciam tão
diáfanas e transparentes quanto o próprio boitatá. As figuras se moviam e
pareciam envolvidas em animada discussão.
Pensei: Puxa,
eu bebi vinho na janta, mas isso foi três horas atrás! Quando dei por mim,
estava falando alto sozinho:
– Que é isso? Isso é só um boitatá!
Para minha surpresa, o boitatá respondeu,
alto e bom som:
– Claro que eu sou um boitatá, qualquer um
pode ver. Mas sou também o Demônio e a Srta. Prym.
– O que??!!!
– Isso aí. Sou um boitatá e sou o Demônio e
a Srta Prym.
– Mas como pode? São esses dois caras aí,
dentro de você?
– Que caras dentro de mim? Eu sou tudo isso, é uma coisa só.
– Mas tá errado: boitatá é boitatá, é coisa
de osso somente, de fósforo branco, de ignição.
– Você é que está errado, não sabe nada de
boitatá. Tá assim de boitatá de personagens de ficção. Como eu. Aliás, se você
andar uns dois quilômetros para o sul, vai encontrar o boitatá de Otelo, o
mouro de Veneza.
Sacudi a cabeça desesperado:
– Inaceitável. Você não existe, não pode
estar falando. Boitatá não fala!
– Pura verdade, boitatá não fala. Boitatá comum. Agora, boitatá de personagem...
Ah, você nem pode imaginar o boitatá de Quincas Berro D’água e a turma dele.
Aquilo é que é palavrório, um conversê sem fim! Nem eu aguentei ficar perto
muito tempo.
– Tá bom, tá bom! Vou deixar a coisa
seguir, depois eu sei que volto ao normal, só pode ter sido aquele maldito
vinho. E daí?
–Daí o que? Que eu sou um boitatá do
Demônio e a Srta Prym?
– Sim. Se for verdade!... O que isso
significa?
–Significa o seguinte: esses dois, depois
que a história do livro terminou, acabaram se casando e agora vivem na maior
discussão, por causa das barras de ouro, que não podem carregar. Vivem
quebrando o pau. Por outro lado, como não param de falar do autor da história
deles, um tal de Paulo Coelho, que quanto mais o povo metido a literato fala
mal dele, mais livro vende e mais rico fica, eles se queimaram e resolveram vir
para o campo, procurar um boitatá de casal. E me acharam aqui. Há coisa de uns
dez meses. Agora a gente é uma coisa só, uma família só.
– Mas isso é muito louco. Eles são só
personagens, não têm existência real!
– Mas como você é primário mesmo! Desde
quando um personagem de livro com milhares, quando não milhões de leitores, não
tem vida real? Como é que você pode dizer uma barbaridade dessas?
– Ué, mas como...
– Mas como! Claro que personagens de livros
lidos por um enorme número de pessoas têm existência real. Veja o Otelo, de que
eu falei há pouco: foi criado há quase 400 anos e todo mundo ainda hoje fala
dele e sabe muito bem que ele é sinônimo de ciúme doentio. E o Hamlet? E o
Machbeth? E Romeu e Julieta? E Ana Karenina? E Madame Bovary? E Edmond Dantes? E D'Artagnan? E Jean Valjean?
– Mas...
– Mas!... Ora, você vai dizer que a
Gabriela, cheiro de cravo, cor de canela não tem vida? Francamente! E o capitão
Rodrigo, do Érico Veríssimo? E o João Grilo, do Suassuna? E Riobaldo, Diadorim,
Hermógenes? E Capitu? E Policarpo Quaresma?
– Mas... têm vida onde? Onde?!
– Ora, têm vida no Imaginário das pessoas, que é um universo paralelo sem fim,
muito mais importante do que esse mundinho tolo em que vocês vegetam. Passam-se
os anos, as décadas, os séculos e esses personagens sempre sobrevivem, às vezes
mais do que a lembrança dos seus criadores. Isso, acaso não é vida? Quem
escreveu a história de Job, na Bíblia? Você sabe? Nem eu! Mas a tal paciência
de Job e o velho Job são lembrados todos os dias, estão mais vivos do que
nunca.
– Quer dizer que, se um personagem desses
que têm vida no imaginário das pessoas achar um boitatá comum, os dois se
juntam e fazem um boitatá como você?
– Isso mesmo! Qualquer personagem, desde
que venha de uma obra com muitos leitores. Isso é uma garantia de imortalidade.
Esse encontro se deu há exatamente cinco
anos. O boitatá do Demônio e a Srta. Prym me convenceu. Ora, eu sempre aspirei
a imortalidade. Vai daí que tive uma ideia incrível.
Primeiro transformei em personagem a mim
mesmo. Apesar de ter só 39 anos, escrevi uma fenomenal história sobre mim, uma
saga, um épico – não uma autobiografia! -
que publiquei com pseudônimo, às minhas próprias expensas, para que
ninguém soubesse meu segredo. Na epopéia sobre minha vida heróica, eu morria
aos quarenta anos, um autêntico campeão, defendendo os fracos e oprimidos.
Então só precisei investir o resto das
minhas economias em propaganda. O país inteiro engoliu, meses a fio, violenta
campanha de divulgação do meu livro. Valia muito, para isso, que o autor, de
nome estrangeiro, se recusasse terminantemente a aparecer e a dar entrevistas. Todos
os veículos de imprensa saíram feito loucos atrás do misterioso escritor. Ora,
a gente sabe muito bem: um livro é um produto. E, para o sucesso de venda desse
produto, o importante não é o produto, mas a propaganda. Depois de meses de
campanhas apregoando que o meu era o melhor livro do ano – e do gênero – e eu o
mais importante herói contemporâneo, as vendas explodiram vertiginosamente.
Com isso, meu livro atingiu o primeiro
lugar na lista de Best Sellers por mais de 40 semanas, quase um ano inteiro. Eu
tinha, enfim, conseguido o que queria: eu era um personagem de livro que vivia
na memória e imaginação de mais de um milhão de pessoas.
Bem, aí foi fácil o final:
Fiz uma lauta refeição de despedida, um
jantar, sem esquecer o vinho, aquele mesmo moscatel de cinco anos atrás. Saí
para o campo às onze da noite, caminhei até achar um boitatá. Por sorte era
comum e estava livre. Pedi licença, entrei dentro dele, deitei no chão e
adormeci em seguida.
E hoje estou aqui, atingi a imortalidade,
sou um boitatá de mim mesmo!
De vez em quando voltamos ao nosso berço,
para nos reabastecermos de brilho com os restos dos meus antigos ossos. Que maravilhosa vida eterna eu alcancei !
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