segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

DRA. FUMIKO - 3a. parte
Um Amor que vence o Não e a Vida exorta
MILTON MACIEL

Fim da 2a. parte:
Quando Helena tentava ver algo do interior da cozinha, através dos vidros da janela, a porta dos fundos foi aberta e uma pessoa apareceu!

3a. parte:
Era uma mulher de seus 50 anos, rosto moreno e cabelos lisos de índia. Rugas miúdas sulcavam-lhe o semblante, dando-lhe um ar mais preocupado e sério. Usava avental e chinelos simples. A mulher andou até onde Helena ainda tentava olhar através da vidraça e surpreendeu-a com um calmo cumprimento:

– Bom dia, moça. Procurando alguém?

Helena levou um susto e ficou ruborizada:

– Ah...Bom dia. Desculpe se eu estava espiando, é que... Ah, sim, eu procuro o Seu Chiquinho. Ele está na casa dele?

– Não, moça, Seu Chiquinho, numa hora destas da manhã, tá na lavoura, no trator. Opa, bom dia, Seu Aristides, vá chegando, homem, o senhor é de casa.

Seu Aristides chegou, cumprimentou a mulher com efusão, pareciam mesmo velhos conhecidos:

– Bom dia, Sinhana. Como vai essa espinhela?

– Como Deus quer, Seu Aristides. Como Deus quer. E Dona Filomena?

– Bem, bem, com a graça de Deus também.

Helena não se aguentava de excitação:

– Seu Aristides, Seu Aristides, o Seu Chiquinho ficou bom! Se curou! Ela disse que ele está na lavoura, está passando o trator na...

Calou-se ao notar que os dois sacudiam a cabeça negativamente, com ar de comiseração. A mulher explicou:

– Não moça, eu não disse que o Seu Chiquinho se curou. Ele está na lavoura, está no trator. Ele vai todos os dias pra roça, sim. Mas não está bem. Antes estivesse...

– Mas, se ele está no trator...

– Sim, ele está. Só está. Mas está com o Marcelo, que é quem dirige o trator.

– E quem é esse Marcelo?

Foi Seu Aristides quem respondeu:

– Um anjo. Um anjo que Deus mandou pra cuidar do Seu Chiquinho.

Sinhana concordou:

– Sim, um anjo. Um anjo negro.

– É um rapaz que toma conta de tudo aqui, desde que o velho adoeceu. Ele é que toca a granja, que faz todo o serviço, que administra. E, o mais importante, ele é que cuida do velhinho pessoalmente.

Sinhana balançou a cabeça afirmativamente:

– É isso mesmo que Seu Aristides lhe falou, moça. Ele cuida do velho há anos, tanto quanto o velho cuidou dele quando ele era um moleque e o Seu Chico era um homem forte e rijo. Aqueles dois são um grude, não se largam pra nada. Mas é melhor a moça ver com seus olhos, porque lá vêm vindo os dois de volta no trator. Sente quietinha aqui no alpendre com seu Aristides, eu vou lá receber os dois, eles vão parar na frente da casa grande.

Seu Aristides tinha estacionado o taxi sob de um grupo de mangueiras baixas, as folhas quase tocando a capota, para protegê-lo do sol quente. Ali, ao lado do alpendre e sob as folhagens, quem viesse no trator não poderia notar a presença do carro branco. Dona Sinhana colocou um dedo sobre os lábios e falou:

– Fiquem aqui, não façam barulho, fiquem atrás das folhagens, só olhem. Porque, se eu contar, ninguém vai acreditar no grude desses dois.

Helena estava trêmula, o coração disparado, ia ver seu avô depois de tantos anos. Como estaria ele, de verdade?

A resposta veio imediata. A porta da cabine climatizada do grande trator foi aberta, um negro alto e forte saltou dela, deu a volta e libertou, de um cinto de segurança especial, uma figura pequena, que estava sentada. O rapaz recolheu essa figura cuidadosamente entre os braços, aconchegando-a como se fosse uma criança, e falou:

– Hora do banho, painho. A gente tá suado demais, eu sei que painho gosta. Pra piscina já, quem chegar por último é a mulher do padre!

Imediatamente o moço começou a despir Seu Chiquinho, tirando-lhe todas as peças de roupa. Helena mal pôde acreditar quando aquele negro alto e sorridente retirou do velho uma fralda geriátrica suja de uma coisa marrom e a depositou num cesto de lixo ao lado da piscina. Aí pegou o velho no colo de novo e foi com ele até a ducha. Usando uma só das mãos, o rapaz livrou-se do short, única peça de roupa que ele mesmo vestia, ficando só com uma pequena cueca branca. E aí, abrindo a torneira da ducha, dedicou-se a lavar escrupulosamente o velhinho, com sabonete, bucha e uma toalhinha pequena, enquanto se deixava também molhar com a água morna de sol. Rindo, o rapaz falou:

– Painho tá fazendo cocô muito fedido de novo. Ah, já sei, já sei: Painho tá me respondendo: “Não como cravo nem rosa, pra minha merda ser cheirosa.” ­– E o negro caiu na gargalhada:

– Painho tá muito boca-suja, hoje. Vamos pra água, vou lavar a boca-suja de painho.

O moço levou o velhinho nu até a piscina, colocou-o sentado na parte rasa e prendeu-o à escada de alumínio com dois cintos que estavam ali especialmente para isso. E disse:

– Puxa, painho me ganhou de novo, entrou na água primeiro! Eu sou a mulher do padre outra vez! Assim não dá, painho ganha sempre.

E soltou mais uma sonora gargalhada, enquanto começa a atravessar a piscina várias vezes de ponta a ponta, com enérgicas e vigorosas braçadas. Cada vez que chegava na ponta onde estava seu Chiquinho, o rapaz parava e falava com ele, fingindo sempre que o velho respondia:

– O pessoal vai falar que Seu Chiquinho é malandro, que só fica parado aí, no bem bom, não quer saber de nadar. Tá, tá, já ouvi: Painho tá cansado, gradeou muita terra hoje, eu compreendo. Mas não precisa fazer essa cara de brabo comigo. É o pessoal que fala essas coisas, não sou eu.

Por mais de meia hora a cena se repetiu, o rapaz só saiu da piscina uma vez, para ir buscar um amplo chapéu de palha, que colocou cuidadosamente na cabeça do velho. Depois pulou na água outra vez e continuou nadando e conversando com ele.

No alpendre da outra casa, Sinhana falou:

– Eu não disse? Vocês já viram uma coisa igual? Pois eu vejo, é assim todo os dias. O velho é completamente inválido, não pode caminhar, não pode falar, mal move os olhos. Mas o Marcelo cuida dele o tempo todo, conversa o tempo todo com ele, como se ele pudesse entender tudo e estivesse respondendo. E vocês viram: ele mesmo é que troca as fraldas do velho, lava e veste o coitado. Não que eu não possa ajudar, mas é que ele não deixa. Diz que a obrigação é dele, que é filho. E diz que, se o velho tivesse um pouquinho de consciência, não ia querer que uma mulher mexesse nas... nas coisas deles, sabe como é. Então ele faz tudo, como fez agora. Eu só vou recolher aquela fralda e levar para o lixo, nada mais. E isso mesmo, só depois que eles saírem de lá. Daqui a pouco eles vão almoçar.

– E como o velho consegue comer? Ele mastiga?

– Ah, mas adivinhe quem dá comida pra ele, Seu Aristides! Pois o Marcelo é que dá tudo na boca, com uma paciência que só vendo, porque derrama e escorre. Ele limpa, recolhe, pega mais da papinha e fica conversando, rindo e esperando que o velhinho consiga engolir, porque isso ele consegue. Eu é que faço a comida pra eles, é mesma pros dois e pra mim. Só que a do Seu Chiquinho, eu bato tudo no liquidificador até ficar bem líquido.

Helena estava estupefata. E comovida ao extremo. Que rapaz extraordinário aquele! Um verdadeiro anjo negro, como dissera Seu Aristides. E chamando seu avô de Painho! O taxista percebeu aquilo e achou que estava na hora de revelar a Sinhana quem era aquela mocinha bonita:

– Esta é a neta do Seu Chiquinho, Sinhana. É a filha de Silvana, que mora com ela no Japão.

Sinhana deixou o queixo cair, olhou demoradamente para Helena, que tinha os olhos cheios de lágrimas agora. Lágrimas vieram também, instantâneas, aos olhos da empregada da fazenda.

– Jesus seja louvado! A netinha do velho, que foi embora daqui tão criancinha! Que notícia maravilhosa. Ah, que pena que ele não pode reconhecer as pessoas! Como é mesmo o seu nome, menina?

– Ela é a Helena, Sinhana. A Heleninha, que as crianças chamavam de Nena, lembra?

– A Nena, que Dona Fumiko não parava de falar dela! Mas que mulher mais linda você me saiu, Nena, benza Deus!

– Pois se não a cara da mãe, Sinhana? A cara, o corpo, o jeito até. Quando ela veio pegar meu taxi na rodoviária, eu até senti um arrepio, parecia que estava vendo a Silvana mocinha. Aí, quando ela disse que queria vir aqui na Fujiyama, eu já desconfiei. Mas só depois de um tempo foi que eu tive certeza, ela até me mostrou um documento, o passaporte. É ela mesma.

– Pois quem é que pode duvidar? Não quem tenha conhecido a Silvana. E como é que está sua mãe, minha filha?

Helena ainda estava muito emocionada para conseguir responder de imediato, foi seu Aristides que falou:

– Pois está muito mal, Sinhana, num hospital do Japão, entre a vida e a morte. Por isso ela mandou a menina pra cá, pra se entender com o avô dela.

Sinhana enlaçou Helena gentilmente sob o braço direito:

– Ah, minha filha, que coisa horrível, pobre da sua mãe, tão moça! Uma criatura tão boa e tudo que é desgraça acontece na vida dela... E nem o seu avô vai lhe reconhecer, nem entender o que você quer dizer pra ele. Que pena!...

Helena tentou se desvencilhar delicadamente do abraço, queria ver logo seu avô:

– Eu vou lá, quero ver meu avô de perto agora. Eu gostava tanto dele!

Mas Sinhana não a libertou do abraço:

– Não, minha filha. Por favor, não vá agora. O Marcelo está só de cueca, ele vai ficar muito envergonhado se uma moça aparecer de repente ali na piscina. Você já esperou tantos anos, agora espere mais uns minutinhos. Já, já, eles vão sair da piscina, O Marcelo vai secar e vestir o velho e vai se vestir também. Então eu levo vocês ali na casa grande.

Helena fez que sim com a cabeça e aproveitou o aperto do braço de Sinhana para recostar-se, de olhos fechados, de encontro a seu peito. Sinhana era uma mulher bastante alta. Nunca tinha casado ou tido filhos. Por causa daquele abraço, Helena, mais uma vez, pensava em sua mãe na UTI do hospital.

Seu Aristides, que era bom de memória e cronologias, resolveu preencher aquele tempo de espera com mais algumas explicações:

– Veja, Heleninha, vocês foram embora aqui do Brasil em 1996, lembro daquela semana horrorosa como se fosse hoje. Você estava com sete anos, então. Sua avó, Dona Fumiko, teve aquele ataque fulminante do coração dois anos depois, em Setembro de 98. Mas antes disso, acho que só uns poucos meses depois que vocês partiram, ela se tomou de amores pelo molequinho da Maria Rita, o Marcelo. Ah, a Maria Rita! Eu lembro muito bem dela, um pedaço de mau caminho...

–Isso mesmo, ela é que era a cozinheira então. Era uma negra bonita demais, que tinha chegado com o filho pequeno de algum lugar lá do Nordeste. Tinha trabalhado em cozinha de restaurante, era de forno e fogão. Logo Dona Fumiko trouxe mãe e filho para morarem na casa grande. Acho que fazia uns quatro ou cinco meses que vocês tinham ido embora. Como o Seu Aristides disse, Dona Fumiko se tomou de amores pelo pretinho, que devia andar lá pelos onze ou doze anos e era um amor de criança. Sua avó, minha filha, nunca aceitou a atitude do seu avô, de virar as costas para vocês. Ela vivia reclamando que ao menos

CONTINUA...

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