Um Amor que vence o Não e a Vida exorta
MILTON MACIEL
Fim da 2a. parte:
Quando Helena
tentava ver algo do interior da cozinha, através dos vidros da janela, a porta
dos fundos foi aberta e uma pessoa apareceu!
3a. parte:
Era uma mulher de seus 50 anos, rosto moreno e cabelos lisos
de índia. Rugas miúdas sulcavam-lhe o semblante, dando-lhe um ar mais
preocupado e sério. Usava avental e chinelos simples. A
mulher andou até onde Helena ainda tentava olhar através da vidraça e
surpreendeu-a com um calmo cumprimento:
– Bom dia, moça.
Procurando alguém?
Helena levou um
susto e ficou ruborizada:
– Ah...Bom dia.
Desculpe se eu estava espiando, é que... Ah, sim, eu procuro o Seu Chiquinho.
Ele está na casa dele?
– Não, moça, Seu
Chiquinho, numa hora destas da manhã, tá na lavoura, no trator. Opa, bom dia,
Seu Aristides, vá chegando, homem, o senhor é de casa.
Seu Aristides
chegou, cumprimentou a mulher com efusão, pareciam mesmo velhos conhecidos:
– Bom dia,
Sinhana. Como vai essa espinhela?
– Como Deus quer,
Seu Aristides. Como Deus quer. E Dona Filomena?
– Bem, bem, com
a graça de Deus também.
Helena não se
aguentava de excitação:
– Seu Aristides,
Seu Aristides, o Seu Chiquinho ficou bom! Se curou! Ela disse que ele está na
lavoura, está passando o trator na...
Calou-se ao
notar que os dois sacudiam a cabeça negativamente, com ar de comiseração. A
mulher explicou:
– Não moça, eu
não disse que o Seu Chiquinho se curou. Ele está na lavoura, está no trator.
Ele vai todos os dias pra roça, sim. Mas não está bem. Antes estivesse...
– Mas, se ele
está no trator...
– Sim, ele está.
Só está. Mas está com o Marcelo, que é quem dirige o trator.
– E quem é esse
Marcelo?
Foi Seu
Aristides quem respondeu:
– Um anjo. Um
anjo que Deus mandou pra cuidar do Seu Chiquinho.
Sinhana
concordou:
– Sim, um anjo.
Um anjo negro.
– É um rapaz que
toma conta de tudo aqui, desde que o velho adoeceu. Ele é que toca a granja,
que faz todo o serviço, que administra. E, o mais importante, ele é que cuida
do velhinho pessoalmente.
Sinhana balançou
a cabeça afirmativamente:
– É isso mesmo
que Seu Aristides lhe falou, moça. Ele cuida do velho há anos, tanto quanto o
velho cuidou dele quando ele era um moleque e o Seu Chico era um homem forte e
rijo. Aqueles dois são um grude, não se largam pra nada. Mas é melhor a moça
ver com seus olhos, porque lá vêm vindo os dois de volta no trator. Sente
quietinha aqui no alpendre com seu Aristides, eu vou lá receber os dois, eles vão
parar na frente da casa grande.
Seu Aristides
tinha estacionado o taxi sob de um grupo de mangueiras baixas, as folhas quase
tocando a capota, para protegê-lo do sol quente. Ali, ao lado do alpendre e sob
as folhagens, quem viesse no trator não poderia notar a presença do carro branco.
Dona Sinhana colocou um dedo sobre os lábios e falou:
– Fiquem aqui,
não façam barulho, fiquem atrás das folhagens, só olhem. Porque, se eu contar,
ninguém vai acreditar no grude desses dois.
Helena estava
trêmula, o coração disparado, ia ver seu avô depois de tantos anos. Como estaria
ele, de verdade?
A resposta veio
imediata. A porta da cabine climatizada do grande trator foi aberta, um negro
alto e forte saltou dela, deu a volta e libertou, de um cinto de segurança
especial, uma figura pequena, que estava sentada. O rapaz recolheu essa figura cuidadosamente entre os braços,
aconchegando-a como se fosse uma criança, e falou:
– Hora do banho,
painho. A gente tá suado demais, eu sei que painho gosta. Pra piscina já, quem
chegar por último é a mulher do padre!
Imediatamente o
moço começou a despir Seu Chiquinho, tirando-lhe todas as peças de roupa.
Helena mal pôde acreditar quando aquele negro alto e sorridente retirou do
velho uma fralda geriátrica suja de uma coisa marrom e a depositou num cesto de
lixo ao lado da piscina. Aí pegou o velho no colo de novo e foi com ele até a
ducha. Usando uma só das mãos, o rapaz livrou-se do short, única peça de roupa
que ele mesmo vestia, ficando só com uma pequena cueca branca. E aí, abrindo a
torneira da ducha, dedicou-se a lavar escrupulosamente o velhinho, com
sabonete, bucha e uma toalhinha pequena, enquanto se deixava também molhar com
a água morna de sol. Rindo, o rapaz falou:
– Painho tá
fazendo cocô muito fedido de novo. Ah, já sei, já sei: Painho tá me
respondendo: “Não como cravo nem rosa, pra minha merda ser cheirosa.” – E o
negro caiu na gargalhada:
– Painho tá
muito boca-suja, hoje. Vamos pra água, vou lavar a boca-suja de painho.
O moço levou o
velhinho nu até a piscina, colocou-o sentado na parte rasa e prendeu-o à escada
de alumínio com dois cintos que estavam ali especialmente para isso. E disse:
– Puxa, painho
me ganhou de novo, entrou na água primeiro! Eu sou a mulher do padre outra vez! Assim não dá, painho ganha sempre.
E soltou mais
uma sonora gargalhada, enquanto começa a atravessar a piscina várias vezes de
ponta a ponta, com enérgicas e vigorosas braçadas. Cada vez que chegava na
ponta onde estava seu Chiquinho, o rapaz parava e falava com ele, fingindo
sempre que o velho respondia:
– O pessoal vai
falar que Seu Chiquinho é malandro, que só fica parado aí, no bem bom, não quer saber
de nadar. Tá, tá, já ouvi: Painho tá cansado, gradeou muita terra hoje, eu
compreendo. Mas não precisa fazer essa cara de brabo comigo. É o pessoal que
fala essas coisas, não sou eu.
Por mais de meia
hora a cena se repetiu, o rapaz só saiu da piscina uma vez, para ir buscar um
amplo chapéu de palha, que colocou cuidadosamente na cabeça do velho. Depois pulou na água outra vez e continuou nadando e conversando com ele.
No alpendre da
outra casa, Sinhana falou:
– Eu não disse?
Vocês já viram uma coisa igual? Pois eu vejo, é assim todo os dias. O velho é
completamente inválido, não pode caminhar, não pode falar, mal move os olhos.
Mas o Marcelo cuida dele o tempo todo, conversa o tempo todo com ele, como se
ele pudesse entender tudo e estivesse respondendo. E vocês viram: ele mesmo é
que troca as fraldas do velho, lava e veste o coitado. Não que eu não possa
ajudar, mas é que ele não deixa. Diz que a obrigação é dele, que é filho. E diz
que, se o velho tivesse um pouquinho de consciência, não ia querer que uma mulher
mexesse nas... nas coisas deles, sabe como é. Então ele faz tudo, como fez
agora. Eu só vou recolher aquela fralda e levar para o lixo, nada mais. E isso
mesmo, só depois que eles saírem de lá. Daqui a pouco eles vão almoçar.
– E como o velho
consegue comer? Ele mastiga?
– Ah, mas adivinhe quem
dá comida pra ele, Seu Aristides! Pois o Marcelo é que dá tudo na boca, com uma paciência que
só vendo, porque derrama e escorre. Ele limpa, recolhe, pega mais da papinha e
fica conversando, rindo e esperando que o velhinho consiga engolir, porque isso
ele consegue. Eu é que faço a comida pra eles, é mesma pros dois e pra mim.
Só que a do Seu Chiquinho, eu bato tudo no liquidificador até ficar bem
líquido.
Helena estava
estupefata. E comovida ao extremo. Que rapaz extraordinário aquele! Um
verdadeiro anjo negro, como dissera Seu Aristides. E chamando seu avô de
Painho! O taxista percebeu aquilo e achou que estava na hora de revelar a
Sinhana quem era aquela mocinha bonita:
– Esta é a neta
do Seu Chiquinho, Sinhana. É a filha de Silvana, que mora com ela no Japão.
Sinhana deixou o
queixo cair, olhou demoradamente para Helena, que tinha os olhos cheios de
lágrimas agora. Lágrimas vieram também, instantâneas, aos olhos da empregada da
fazenda.
– Jesus seja
louvado! A netinha do velho, que foi embora daqui tão criancinha! Que notícia
maravilhosa. Ah, que pena que ele não pode reconhecer as pessoas! Como é mesmo
o seu nome, menina?
– Ela é a
Helena, Sinhana. A Heleninha, que as crianças chamavam de Nena, lembra?
– A Nena, que Dona Fumiko não parava de falar dela! Mas
que mulher mais linda você me saiu, Nena, benza Deus!
– Pois se não a
cara da mãe, Sinhana? A cara, o corpo, o jeito até. Quando ela veio pegar meu
taxi na rodoviária, eu até senti um arrepio, parecia que estava vendo a Silvana
mocinha. Aí, quando ela disse que queria vir aqui na Fujiyama, eu já
desconfiei. Mas só depois de um tempo foi que eu tive certeza, ela até me
mostrou um documento, o passaporte. É ela mesma.
– Pois quem é
que pode duvidar? Não quem tenha conhecido a Silvana. E como é que está sua
mãe, minha filha?
Helena ainda
estava muito emocionada para conseguir responder de imediato, foi seu Aristides
que falou:
– Pois está
muito mal, Sinhana, num hospital do Japão, entre a vida e a morte. Por isso ela
mandou a menina pra cá, pra se entender com o avô dela.
Sinhana enlaçou
Helena gentilmente sob o braço direito:
– Ah, minha
filha, que coisa horrível, pobre da sua mãe, tão moça! Uma criatura tão boa e
tudo que é desgraça acontece na vida dela... E nem o seu avô vai lhe reconhecer,
nem entender o que você quer dizer pra ele. Que pena!...
Helena tentou se
desvencilhar delicadamente do abraço, queria ver logo seu avô:
– Eu vou lá,
quero ver meu avô de perto agora. Eu gostava tanto dele!
Mas Sinhana não
a libertou do abraço:
– Não, minha
filha. Por favor, não vá agora. O Marcelo está só de cueca, ele vai ficar muito
envergonhado se uma moça aparecer de repente ali na piscina. Você já esperou
tantos anos, agora espere mais uns minutinhos. Já, já, eles vão sair da
piscina, O Marcelo vai secar e vestir o velho e vai se vestir também. Então eu
levo vocês ali na casa grande.
Helena fez que
sim com a cabeça e aproveitou o aperto do braço de Sinhana para recostar-se, de
olhos fechados, de encontro a seu peito. Sinhana era uma mulher bastante alta. Nunca
tinha casado ou tido filhos. Por causa daquele abraço, Helena, mais uma vez,
pensava em sua mãe na UTI do hospital.
Seu Aristides,
que era bom de memória e cronologias, resolveu preencher aquele tempo de espera
com mais algumas explicações:
– Veja,
Heleninha, vocês foram embora aqui do Brasil em 1996, lembro daquela semana horrorosa como se fosse hoje. Você estava com sete anos, então. Sua avó, Dona Fumiko,
teve aquele ataque fulminante do coração dois anos depois, em Setembro de 98.
Mas antes disso, acho que só uns poucos meses depois que vocês partiram, ela se
tomou de amores pelo molequinho da Maria Rita, o Marcelo. Ah, a Maria Rita! Eu lembro muito bem dela, um pedaço de mau caminho...
CONTINUA...
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