DRA.
FUMIKO – 7a. parte - CONCLUSÃO
Um
Amor que vence o Não e a Vida exorta
MILTON MACIEL
Fim
da 6ª. parte:
E da filha deles... eu só ouvi falar bem dela a vida
inteira. Não era só a mãe dela não, todo mundo que eu ouvi, que se referisse a
ela, longe dos ouvidos de painho, é claro, só falava coisas boas dela. Foi assim
que eu aprendi o que é preconceito. E jurei pra mim mesmo que eu nunca haveria
de ser preconceituoso.
Sinhana botou mais lenha na fogueira:
– E você sabe o que aconteceu com a moça e a filha
dela, que foram pro Japão?
7ª. Parte
– Não, Sinhana,
eu nunca fiquei sabendo. Primeiro porque não falavam disso perto de mim. E
também porque acho que nem os velhos sabiam direito. Depois acho que a madrinha
ficou sabendo onde elas viviam, mas ela morreu logo depois. E painho nunca me
deixou entrar nesse assunto. Depois que ele teve aquele primeiro derrame, eu
bem que tentei, mas ele se fechava e ficava diferente, agressivo, ficava uma
fera. Só uma vez, quando eu fiz 18 anos, ele me falou sobre a filha. Contou
claramente o que ela tinha feito e disse que, para ele, ela estava morta desde
então. E me contou que ele tinha deserdado a moça, como mandavam os costumes da
região do Japão de onde ele veio.
– Pobre filha...
– murmurou Helena, agora com enorme dificuldade de falar.
– Tem toda a
razão moça. Pobre filha! Eu não concordo com essa atitude de painho, nunca
concordei. Acho cruel. Mas agora é tarde pra ele mudar, pelo estado em que ele
ficou depois do segundo derrame. Mas eu acho que ela pode mudar isso.
– Ela? Mas como
ela poderia mudar esse testamento do pai?
–Bem, moça, eu
não sou advogado, mas andei me informando com alguns, e eu acho que existe uma
brecha, agora que painho está assim totalmente incapaz. Uma brecha pra filha
tentar anular o testamento do pai.
–E você
concordaria com isso, Marcelo. Digo, como representante legal do Seu Chico?
Você não se oporia?
– Claro que não,
Sinhana! Que ideia! Pois se isso tudo aqui, por direito verdadeiro, é pra ser
dela quando painho faltar.
Sinhana arregalou
os olhos e fez um sinal sutil para Seu Aristides. O taxista entendeu que era
hora de cair fora:
– Olhem, vocês
me dêem licença, mas eu tenho que preparar o carro pra viagem até Bastos, dar
uma boa limpada nele – e foi saindo apressado.
Sinhana continuou
então com aquela conversa, que estava deixando Helena cada vez mais
intranquila:
– Olhe, Marcelo,
eu vou lhe fazer uma pergunta e tenho certeza que você pode responder na frente
desta moça, porque ela vai embora daqui hoje mesmo, não vai comentar nada disso
em Bastos, onde ela não conhece ninguém. E, quem podia comentar, já saiu da
sala.
A mulher olhou
Helena e Marcelo bem nos olhos, longamente, e então perguntou:
– Meu filho, eu
sei que você foi adotado oficialmente por Seu Chiquinho, é filho dele agora e é
o único herdeiro disto tudo, já que ele deserdou a filha. Você já não se sente
o dono de tudo, Marcelo?
– De jeito
nenhum, Sinhana! Eu seria um monstro, se fizesse isso.
– Monstro?! Mas por
quê? Não vejo a razão...
– Ora, Sinhana,
eu disse bem claramente que não aceito a decisão de painho, de deserdar a filha
dele. Então eu seria incoerente se aceitasse ser o herdeiro único desse
patrimônio. E, mais do que incoerente, eu seria um ladrão, um monstro mesmo.
Helena estava
muda, petrificada, não podia acreditar no que estava ouvindo. Aquele rapaz, que
chegara ali criança, filho da cozinheira, pobre, paupérrimo, tinha todas as
condições legais de ser dono de tudo e... não
concordava?! Mas que homem era aquele, Senhor?!
Marcelo
continuou sua explicação:
– O único dono
disto aqui é só painho e vai ser até o último segundo da vida dele. Que, se
depender de mim, vai durar muitos e muitos anos. No triste dia em que ele
morrer, por lei tudo passa pra mim. Mas a primeira coisa que eu vou fazer, no
primeiro dia que não tiver que cuidar mais de painho, é viajar.
– Viajar?! Ué,
mas pra onde, menino?
– Pro Japão,
Sinhana! A viagem que eu e a madrinha tanto sonhamos fazer. Eu vou ter todo o
dinheiro do mundo pra viajar, pra pagar gente especializada e localizar essa
pobre filha e a filha dela, que foram tão injustiçadas por painho.
– Mas isso
significa abrir mão da sua fortuna para uma pessoa que você nem conhece.
– Que minha
fortuna, Sinhana! A verdadeira herdeira é ela e só ela. O dia que essa fortuna
passar de painho, se depender de mim, vai direto pra ela. É só encontrar essa
doutora e, na hora que ela puder vir aqui e assinar todos os papéis, tudo aqui
passa a ser dela.
– E você? O que
vai ser de você?
– Ora, eu sou um
enorme negão, um metro de oitenta e três, e dois braços compridos e bem fortes,
graças a Deus. Tenho curso colegial, que foi o que deu pra fazer antes que
painho ficasse paralítico. E não sou nenhum miserável, tenho uma belíssima
poupança e até aplicações. Afinal com o salário que eu ganho!
– Ora, não é
nenhum salarião. Você é o gerente de tudo aqui, numa empresa diriam que você é
o presidente. Mas você ganha salário de peão. Ganha só, não: o pior é que você se paga salário de peão, porque é você e
só você quem decide isso.
– Mas 1200 reais
está muito bom pra mim. É o mesmo que eu pago pra você, não é? E tem férias e
13º.
– Sim, é o mesmo
que você paga pra mim, por isso estou dizendo que é salário de peão. Mas por
que você se paga tão pouco?
– Mas não é
pouco, Sinhana. Eu não tenho nenhuma despesa, tudo o que eu consumo ou preciso
é coberto pela empresa, a Granja Fujiyama. Então tudo que eu faço é guardar
esse dinheiro todos os meses, todos os anos. Hoje, entre poupança e aplicações,
eu tenho mais de 160 mil reais.
– Nossa, isso é
muito pra alguém como eu, que tenho também umas economias, não vou negar, mas não
asim como você. Mas isso é muito pouco para um herdeiro de todo o patrimônio de
Seu Chiquinho, como você é.
– Por favor,
Sinhana! A herdeira é a Doutora Silvana. Eu administro isto aqui pra painho,
economizo em tudo o que posso, até no meu próprio salário. Mas, a longo prazo,
eu administro pra legítima herdeira. O dia que ela chegar aqui, eu quero ter o
orgulho de entregar pra ela todos os livros de contabilidade, impecavelmente
certos. E todo o patrimônio dela bem cuidado e multiplicado. E, na minha saída
da empresa, eu vou me mandar embora e ter direito a uma rescisão justa.
Homologada na justiça do trabalho, vai dar um bom dinheiro também. Eu e painho
vamos precisar disso no futuro...
Não chegou a
concluir a frase. De repente, ouviram que a moça expedia um forte sopro pela
boca e a viram tombar de lado sobre a mesa. Helena acabava de desmaiar.
Os dois levaram
um enorme susto, correram para socorrer a moça, não sabiam o que fazer. Sinhana
gritou por Seu Alcides, devia ter noções de primeiros socorros, em Bastos todos
os taxistas tinham que ter.
O motorista
entrou correndo, olhou a mocinha desmaiada, tomou-lhe o pulso e perguntou a
Sinhana:
– Tem limpador
ou desinfetante com amoníaco aí?
Por sorte tinha!
A mulher correu até um armário do corredor, voltou com um frasco de
desinfetante já destampado. Seu Aristides levou-o ao nariz da moça desmaiada,
que imediatamente fez cara de desconforto e começou a se mexer. E começou a voltar
a si, ainda bastante atordoada.
Sinhana pegou as
duas mãos dela nas suas, ficou a massageá-las, fez um sinal para Marcelo, que
serviu um copo com água e ofereceu-o a Helena. Ao cabo de mais dois minutos,
ela já podia falar:
– Me perdoem
pelo fiasco, de repente tive uma vertigem e...
– Foi demais pra
você, não é, minha filha. Muita coisa!
– Sim, Sinhana,
este é um mundo novo para mim. Totalmente novo. Eu não sabia que existiam
pessoas como este moço aqui. Nunca podia imaginar...
Marcelo, não
entendo o que significava aquilo, levou na brincadeira, como sempre:
– Quer dizer que no seu mundo não existem
negros feios como eu, moça? Todo mundo é branquelo ou japonês?
– Não, não é
isso o que eu quero dizer. Quero dizer que eu nunca vi uma pessoa tão linda,
tão luminosa quanto o senhor.
– Ué! Eu lindo e
luminoso? Que nem a fonte lá da praça de Iacri?
Todos riram com
a idéia da fonte luminosa de Iacri. Menos Helena, que tinha lágrimas nos olhos.
Então Sinhana entendeu que tinha chegado a hora!!!
Andou até à
parede, retirou o grande quadro de Dona Fumiko, e voltou-se com ele, para que
todos pudessem ver o que havia na parte de trás.
Os outros três
estremeceram!
Aristides, por
ver a sua Silvana, de beca e capelo,
no auge de sua beleza, ele então no auge de sua paixão.
Helena, por
pensar o quanto sua avó tinha sofrido, rezado e cantado olhando para aquelas
duas fotografias. E por pensar que aquela moça linda da foto, estava agora na
UTI de um hospital no Japão, lutando pela vida.
E Marcelo,
porque a moça com a beca e o capelo era igualzinha aquela que estava ali ao seu
lado, com os olhos cheios de lágrimas. E a menininha linda, com os dedinhos
fazendo o V da Vitória, também era a mesma moça que chorava suavemente agora.
Então Sinhana
terminou de fazer a confirmação a Marcelo:
– Sim, Marcelo.
Isso mesmo! Esta é a Heleninha, a filha da Silvana. Chegou hoje, vinda do
Japão, pra ver seu avô. Ela é médica também, que nem a mãe.
O rapaz estava
em estado de choque! Ficou um longo tempo sem nada falar, só olhando encantado
para Helena e para as duas fotografias, alternado o olhar entre elas, cada vez
mais admirado. Subitamente ele deu um grito animado:
– Maravilha! – e
saiu correndo em direção ao interior da casa.
Não levou nem
três minutos para voltar. Do seu escritório tinha trazido uma pilha de cadernos
de escrituração contábil. E várias pastas de documentos:
– Está tudo
aqui, doutora! Tudo aqui, sem faltar nada, pra senhora ver. Pode conferir a
hora que quiser, toda a nossa contabilidade está aqui, rigorosamente em dia. Na
pasta verde estão todos os nossos balanços e balancetes. Na amarela, a relação
de todos os bens e valores que vão ser de vocês quando chegar o dia mais triste
da minha vida, quando painho nos deixar.
O moço era todo
entusiasmo, seu olhos brilhaavam:
– Mal posso
acreditar, Meu Deus! Eu pedi tanto, rezei tanto pra que esse dia chegasse, que
sua mãe estivesse aqui na minha frente. Mas Deus quis que fosse a senhora, a
filha dela, a neta de painho. Tome, segure, isto é tudo seu. E da sua mãe.
Sinhana não se
conteve, abraçou-se a Marcelo, apertou-o contra o peito, deu-lhe um beijo no
rosto:
– Você é um
anjo, meu filho. Com é bom ser sua amiga! Como eu tenho orgulho de você!
Helena recolheu
todos os cadernos e pastas de documentos, refez a pilha com cuidado, chegou-se
a Marcelo e entregou tudo de volta a ele:
– Não, isto é
tudo seu, Marcelo. Vai ficar tudo em
suas mãos. Eu não entendo nada disso, não tenho nada a ver com isso e, como
você mesmo disse, isso é tudo de um só e único dono por enquanto: do Seu
Chiquinho.
– Mas Doutora
Helena, a senhora não quer...
– Por favor, não
me chame de Doutora Helena, Marcelo.
Eu sou só Helena para qualquer um de vocês.
– Mas a senhora
é a patroa agora, doutora e...
– Pare, eu já
pedi. Pare!!! Eu não sou patroa coisa
nenhuma. Sou só a neta enjeitada do seu painho. Se ele estivesse lúcido, talvez
estivesse me correndo daqui a bastonadas agora. Eu não vim aqui atrás de nada
desses bens. Vim porque minha mãe está muito mal num hospital, entre a vida e a
morte, e me pediu para dizer uma coisa ao pai dela. É só por isso que eu
estou aqui, compreenda. E, assim que eu despejar o que quero dizer para o seu
painho, eu vou sair porta afora desta casa e Seu Aristides vai me levar daqui
numa viagem que começa nesta Granja e só termina em Tókio, naquele hospital.
– Mas... Mas não
pode ser... Dout... Helena, Não pode ser, você
não pode ir embora assim, depois de todos estes anos que eu esperei pela
chegada de vocês. Por favor, fique ao menos uns dias, percorra as propriedades,
saiba o que dizer pra sua mãe quando chegar no Japão. Faça fotos pra mostrar
pra ela. Ela há de ficar boa e aí vocês voltam correndo aqui pra Bastos, pra
tomar posse do que é de vocês.
E completou seu
pensamento:
– Quando vocês voltarem, eu passo um documento
em cartório, abro mão da minha herança em nome de vocês duas. Não precisam me
dar nada, eu só quero pedir uma única coisa:
E então o rapaz
olhou com apreensão para a moça herdeira:
– Por favor, ME
DEIXEM FICAR COM PAINHO! Ele não vai servir de nada pra vocês, é só um estorvo
pras pessoas, menos pra mim. Além do que, vocês devem ter muita raiva dele,
pelo que sofreram. Eu vou embora com ele, fiz uma reserva de dinheiro exatamente
pensando nisso, pro dia em que eu tivesse a felicidade de devolver tudo pra
vocês. Eu levo painho, o meu dinheiro dá pra um bom tempo, a gente aluga uma
casinha por aí, longe de Bastos, painho não tem doença, não gasta com médico
nem dinheiro e, se a gente precisar, tem o SUS.
E o rapaz estava
tão aflito que, sem perceber, segurou as duas mãos da moça de Tókio, enquanto
renovava sua súplica para que ela não fosse embora imediatamente:
– Fique, por
favor, eu lhe imploro. Ao menos não vá hoje!...
Foi então que
dois milagres aconteceram.
O encontro das
mãos deflagrou verdadeiras correntes elétricas, inesperadas, instantâneas. No
segundo seguinte, pela primeira vez, os olhos se encontraram longamente. E, ao
se encontrarem, se perderam. Perderam-se rapidamente um na profundidade do
outro. Os olhos verdes do rapaz, que eram os mesmos olhos verdes da ingrata mulata
Maria Rita, sumiram dentro dos olhinhos castanhos puxados, que eram os mesmos
olhos castanhos da dedicada nissei Silvana. Marcelo esperava por Helena e sua
mãe há tantos anos! Helena tinha começado a conhecer aquele homem extraordinário
há tantos minutos! Não foi amor à primeira vista. Foi ao primeiro toque de
mãos.
Só que ninguém
tinha prestado qualquer atenção em Seu Chiquinho, que continuava afivelado em
sua cadeira alta, na cabeceira da mesa. Ninguém tinha prestado atenção em seus
olhinhos ativos, a única coisa que se movia em seu corpo. Por isso ninguém
tinha percebido que os seus olhos agora não estavam pulando como sempre,
estavam parados, grudados na observação estática das duas enormes fotografias à
sua frente.
Então um ruído
estranho veio dali de onde ele estava imóvel. Todos se voltaram e viram que o
corpo de Seu Chiquinho parecia tremer. As pelancas compridas do seu pescoço
tinham um movimento perceptível, músculos abaixo dela se moviam, como se ele estivesse
engolindo. De sua boca escapava, junto a com a costumeira baba, um som
esquisito, de ar soprado. E a cabeça tinha uma nítida oscilação, ainda de que
de muito pequena amplitude. A mão direita tremia intensamente, os dedos se
separavam, o indicador se esticava em direção às fotografias.
Takeo Toshiuki
estava se mexendo! Seu Chiquinho parecia que queria falar!
– Painho!
Painho! Painho está se mexendo gente!
– Um milagre, um
milagre de Deus!
– Um milagre
desta mocinha – afirmou sorrindo Seu Aristides. Por que ele foi o primeiro a
notar que os olhos do velho agora estavam parados, hipnotizados, no semblante
harmonioso de Helena Fumiko. E que, do olho direito, muito mais aberto que o
esquerdo, escorria um volumoso filete de lágrimas, que caíam sobre a toalha
branca.
O dedo indicador
se destacava cada vez mais dos outros, a mão direita, tremendo intensamente,
subia mais e mais, afastando-se do corpo. E aquela mão trêmula apontava
visivelmente para Helena.
A moça se aproximou
até ficar a menos de um metro do velho. Ele continuou a fazer um esforço cada
vez maior para dizer alguma coisa. Ele engolia e a baba diminuía, engolia e a
baba diminuía, cada vez mais. E o som articulado começava a ser repetido, mais
e mais, mais e mais... até que, por fim fez sentido!
A moça deu um
grito:
– Gomen-nassai! Gomen-nassai! Ele está
dizendo gomen-nassai! Ele está
pedindo PERDÃO!!! Está pedindo perdão, está pensando que eu sou minha mãe!
– Gomen-nassai! Gomen-nassai! – repetia
Helena sem cessar. E dizia para o velho, em japonês, que era exatamente isso
que ela viera fazer ali: pedir perdão ao pai, em nome da filha.
– Gomen-nassai! Gomen-nassai! Gomren-nassai!
– repetia o velho sem parar, pedindo perdão à filha que acreditava estar na sua
frente. E o velho chorava porque lembrava de sua amada Fumiko, que ele havia
matado de pesar. E chorava porque podia pedir perdão a sua filha e sua filha
pedia perdão a ele no mesmo instante.
Depois de mais
15 minutos, a lucidez do velho foi se fazendo grande o suficiente para que ele conseguisse
entender que aquela não era sua filha Silvana, que aquela era a mensageira de
sua filha Silvana, que viera lhe pedir perdão.
Aquela era sua
neta Helena! Helena Fumiko. Era Fumiko, como sua pobre Fumiko. Era doutora como
sua pobre Silvana. Era Doutora Fumiko!
E o velho, com a
mão trêmula agora enfeixada dentro das duas mãos delicadas de sua neta, olhava
para ela embevecido e repetia sem cessar, em português:
– Dotôla
Fumiko... Dotora Fumiko... Doutora Fumiko...
E Takeo
Toshiuki, resplandecente de paz, reconciliado com a filha, reconciliado com a
neta, reconciliado com a esposa, reconciliado enfim consigo mesmo, com a mão
nas mãos da Doutora Fumiko, enlaçado carinhosamente pelo filho, expirou
calmamente duas horas depois. O esforço custara-lhe as últimas forças. E sua
últimas palavras foram:
– Gomen-nassai... Doutora Fumiko.
Doutora... Fumiko...
Perdão pedido e
concedido de parte a parte, o Amor havia vencido o Não, trazendo Takeo Toshiuki
de volta, numa exortação à Vida, antes que sua hora chegasse. O Amor naquela
família havia vencido o Tempo e havia vencido o Não. Um Amor que vence o Não e
a Vida exorta!
Na boca do venerável
Takeo Toshiuki não havia mais baba. Recuperara ele, por minutos, toda a dignidade
de sua figura. Nela pairava somente um liberto sorriso de bem-aventurança.
Abraçado a seu
painho que partira digno e feliz, Marcelo soluçou por um longo tempo como uma
criança em desespero. Era sua terceira perda. Chorara a mãe que o havia
abandonado. Chorara a Madrinha, que havia partido também. E agora chorava a
maior de todas as suas perdas: painho!
Helena soltou a
mão inerte do avô e usou suas duas mãos para passá-las longa e repetidamente
pelos cabelos crespos e pelo rosto sulcado de lágrimas do melhor filho que um
homem poderia ter tido na vida. E depositou na sua face escura o primeiro
dentre os infinitos beijos de amor que os dois iriam trocar daquele dia em
diante.
Cinco anos
depois...
...pelo mesmo
gramado da Fujiyama, correria mais uma Fumiko. E esta era Regina Fumiko.
Regina Fumiko
Toshiuki da Silva era uma belíssima criança, uma inigualável mulatinha clara,
alta, delgada, de olhos verdes como os do pai, intensamente puxados como os da
mãe. Uma figura de impressionante elegância e beleza, o porte delicado, simples
e altivo ao mesmo tempo, fazendo jus ao nome de rainha. Em resumo, o sonho
dourado de qualquer descobridor de talentos para modelo fotográfico e de
passarela.
E o orgulho
maior de sua avó, a doutora Silvana, que sobrevivendo à operação, seguiu sua
carreira vitoriosa na Universidade de Tókio. Passava nove meses no Japão, três
meses em Bastos todos os anos. Tinha ali uma filha maravilhosa, a Doutora dos Pobres, como era chamada,
porque não precisava trabalhar por dinheiro, uma alma generosa devotada aos
outros, como o fora aquela outra Fumiko, sua saudosa mãe.
E a doutora
Silvana tinha ali também uma neta adorável, que era um verdadeiro mimo de
porcelana, uma bonequinha café-com-leite, uma mulata de olhos verdes puxados,
que fazia as cabeças se voltarem para ela às centenas, desde que era bebezinha.
E tinha um genro
que era a criatura mais incrível deste mundo! Era ele quem tocava aquele
lucrativo negócio chamado Granja Fujiyama. Ele, que era seu genro e seu sócio,
50% para cada um. Uma solução encontrada por Helena, depois de três dias de
discussões infindáveis, em que cada um daqueles dois cabeçudos queria porque
queria abrir mão de sua parte totalmente e ceder tudo para o outro.
Doutora Helena
revalidou seu diploma japonês no Brasil. E, daquele momento em diante,
abandonando seu primeiro nome, fez questão de ser chamada exclusivamente de
Doutora Fumiko, em homenagem a sua avó e em reconhecimento às últimas palavras
de seu avô. E esta Doutora Fumiko, de Bastos, foi a mais jovem médica no Brasil
a receber uma condecoração do governo federal, pelos inestimáveis serviços
sociais prestados por ela a diversos municípios da região. FIM
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