Um Amor que vence o Não e a Vida exorta
MILTON MACIEL
Fim da 3ª. parte:
– Isso mesmo, Maria Rita é que era a cozinheira então.
Era uma negra bonita demais, que tinha chegado com o filho pequeno de algum
lugar lá do Nordeste. Tinha trabalhado em cozinha de restaurante, era de forno
e fogão. Logo Dona Fumiko trouxe a mãe e filho para morarem na casa grande.
Acho que fazia uns quatro ou cinco meses que vocês tinham ido embora, Dona
Fumiko se tomou de amores pelo pretinho, que devia andar lá pelos onze ou doze
anos e era um amor de criança. Sua avó, minha filha, nunca aceitou a atitude do
seu avô, de virar as costas para vocês. Ela vivia reclamando que ao menos...
4ª. parte:
...você não tinha culpa de nada, que se ele
quisesse ser carrasco com a filha, não tinha direito de ser malvado com a neta.
E queria porque queria ir para o Japão à procura de vocês. Eu tinha acabado de
ser contratada quando ela chegou um dia toda contente de Bastos, tinha recebido
a informação de onde vocês estavam em Tóquio, o embaixador do Brasil é que
tinha conseguido.
– Mas o Seu
Chiquinho, muito turrão...
– Ah, Seu
Aristides, não houve força nesse mundo que fizesse aquele cabeçudo mudar de
ideia! Ele se isolou nesta granja, nunca mais saiu, nunca mais recebeu ninguém,
colocou um contador pra fazer todos os contatos de negócios, de cooperativa, de
bancos. Virou um bicho, um anti-social completo.
Helena, agora
mais tranquila, lembrou-se de perguntar então:
– E como morreu
a minha avó?
– Pois foi assim
mesmo, foi um ataque do coração fulminante. Como isso aconteceu ninguém sabe,
mas eu sei, porque eu estava
presente. E eu vi que ela estava tendo, mais uma vez, uma discussão terrível
com o marido, por causa da filha e da neta. Para uma mulher japonesa
tradicional ter coragem de enfrentar o marido daquele jeito, é porque ela
estava mesmo decidida. Eu ouvi os gritos deles, Dona Fumiko estava com uma mala
pequena na sala e disse que ia embora pra Tókio atrás de vocês. E que, por
causa disso, estava deixando o marido.
– Santo Deus,
Sinhana! Ninguém sabe disso aqui em Bastos.
– Não sabem porque
eu nunca contei, hoje é a primeira vez que estou falando nisso. O velho ficou
possesso, avançou pra cima da mulher, arrancou a mala da mão dela e sacudiu
Dona Fumiko com toda a força, gritando com ela. Não sei o que eles diziam,
porque aí já estavam falando só em japonês. Então ela se soltou dele, usando
toda a sua força, e começou a dizer algo, gritando. Mas não acabou. De repente
ela desabou no chão. Estava morta! E tinha só 59 anos.
– Céus! E o meu
avô?
– Primeiro ele
ainda deus uns gritos com ela, acho que pensou que ela estava fingindo. Eu, que
estava olhando tudo escondida lá da sala de jantar, tive certeza na mesma hora
que ela tinha morrido. Não sei como, mas eu senti isso! Fiquei gelada, sem
ação, não saí do mesmo lugar. Aí o Seu Chico se convenceu que ela estava
desmaiada e saiu correndo aos gritos pra pedir ajuda. Mas, antes, ele correu e
escondeu a mala dela no quarto, acho que jogou dentro de um armário. Pra ele,
era uma vergonha mortal a mulher desobedecer o marido e ir embora sem permissão
dele.
– E quem veio
socorrer?
– As primeiras
pessoas a chegarem foram Maria Rita e o menino. E viram que Dona Fumiko estava
morta, com os olhos meio abertos. Os dois começaram a chorar e o Seu Chico foi
buscar mais gente. Todos os que chegaram reconheceram a morte dela, menos o
marido. Ele saiu como um louco, pegou o automóvel, foi para Iacri, que é mais
perto daqui do que Bastos, e voltou com um medico. Que só o que fez foi atestar
a morte dela.
– Que coisa,
Sinhana, como essa família tem dramas de morte!
– O Seu Chico,
daquele dia em diante, se fechou ainda mais. Mal falava algo com a gente, só o
mínimo pra se fazer entender. Mas não com o Marcelo. Dona Fumiko adorava o
menino, que levava pra tudo que é lugar aonde ia. E o Seu Chico conversava
bastante com ele, também. Assim, depois que Dona Fumiko se foi, ele se fechou
de vez, mas fez do menino a sua ligação com o mundo. Eu imagino só a culpa que
ele devia sentir pela morte dela!
– É mesmo,
Sinhana, deve ser uma coisa terrível: saber que sua esposa morreu por sua culpa
e, ainda mais, por causa do que você fez com sua filha e sua neta. Eu é que não
queria estar na pele dele nessa hora.
– Pois é, Seu
Aristides, ele, que era um homem forte como só, começou a definhar a olhos
vistos a partir daquele dia. Era a culpa. E a saudade dela. Tanto que, dois
anos depois, teve o primeiro derrame.
– Sim, eu
lembro, ficou com a boca torta, falava mal e se movia com dificuldade, usando
bengala. E usando mais o moleque, que já estava alto e espigado e servia de apoio
pro velho. Isso foi em 2001, o menino já estava então com 15 anos.
– E a mãe dele,
a belezura da Maria Rita, já tinha dado no pé e fugido aqui da granja com
aquele motorista do caminhão de ovos. Ela chegou a me consultar, disse que o
homem ia botar casa pra ela na Paraíba, mas que não queria filho dos outros.
Para ir com ele, ela tinha que deixar o menino aqui.
Helena se
horrorizou:
– E ela teve a
coragem?!
– Teve, minha
filha. A diaba era muito linda, só pensava em roupa bonita e produto de beleza.
Nunca deu muita atenção ao filho, por isso ele tinha se apegado tanto a Dona
Fumiko. Abandonou o moleque aqui, porque ela sabia que o Seu Chiquinho, não só
gostava muito do Marcelo, como tinha passado a precisar muito dele também.
– E então?
– Então, minha
filha, o menino se agarrou com Seu Chiquinho e o Seu Chiquinho se agarrou com o
menino. Era Marcelinho pra cá, padrinho pra lá, era como eles se tratavam. Seu
Chiquinho ensinou ao menino tudo sobre o negócio da granja, de ração, de
produção de milho e soja, de contabilidade, de bancos. Saiam quase todo dia naquele
trator, um mais velho, que era um pouco menor que este, não tinha uma cabine
assim tão moderna. Seu Chiquinho mandou fazer uma adaptação e ainda conseguia
dirigir, o menino aprendia, e eles iam no maior conversê, que durava o dia
todo. Depois de pouco tempo, já era o Marcelo quem dirigia o trator, sempre os
dois juntos, como ele faz até hoje. E eu, que via tudo desde aquela época , fico
impressionada: como é que o Marcelo faz tudo igual, como se não tivesse
acontecido nada, nem o primeiro, nem o segundo derrame, como ele sai e volta
conversando com o Seu Chiquinho como era antes. E o Seu Chiquinho agora parece
que é um bonequinho, quieto, mirradinho, sem ação, sem palavrório, um pacotinho
de gente...
– O segundo
derrame, o terrível, foi em 2005. Aí o menino já estava com 19 anos.
– Isso mesmo,
Seu Aristides. E ele já tinha assumido todos os negócios. Antes de ter esse
segundo derrame, Seu Chiquinho deu procuração de tudo pra ele, assim que ele completou
os 18 anos. Ele é que negociava com os clientes e fornecedores, com a
cooperativa, com os bancos. Ele é que recebia dinheiro, assinava cheques, fazia
pagamentos, contratava e despedia empregados. O velho tinha a maior confiança
no rapaz.
– E, pelo jeito,
o Marcelo merecia mesmo, a julgar pelo que fazia então e pelo que faz hoje em
dia, quando o velhinho está totalmente incapaz e tudo ficou só nas mãos do
rapaz. Se fosse um desonesto, ele tinha desviado uma fortuna pessoal ou, quem
sabe, podia vender tudo isso que está aqui e ir embora pra gozar a vida como
milionário, deixando o velho largado aqui.
– Pois é, Seu
Aristides. O Marcelo é a pessoa mais honesta que eu conheci na vida. Um dia eu
disse isso pra ele e ele não concordou. Ele me falou que a pessoa mais honesta
que eu conheci na vida se chamava Takeo Toshiuki, o Seu Chiquinho. E que, se
ele era honesto como eu dizia, é porque ele tinha orgulho de ser filho de Takeo
Toshiuki, que tudo o que ele sabia, inclusive honestidade, ele aprendeu com o velho.
E que jamais iria fazer qualquer coisa que desonrasse o nome do pai. E ele me surpreendeu falando essa
palavra, pai, com os olhos cheios de
lágrimas. Foi nesse dia que ele me mostrou os documentos secretos, coisa de
mais ou menos uns seis meses atrás.
– Documentos
secretos?
– Sim, minha
filha, ele me mostrou que o Seu Chiquinho, pouco antes do segundo derrame,
tinha adotado ele como seu filho, com todos os direitos sucessórios. Você não
vai gostar de saber, mas ele deserdou sua mãe na mesma semana que ela foi
embora para o Japão. Teve a coragem de deserdar a filha única, que tinha uma
filha e estava grávida de outra criança. Dona Fumiko nunca aceitou isso, sofreu
por causa disso, morreu por causa disso.
– Mas eu já sei
disso há muito tempo! E não tenho que gostar ou não gostar, Dona Sinhana. Minha
mãe me fala, desde que eu era criançinha, que tem certeza que o pai dela fez
isso mesmo, que nem ela nem eu temos qualquer direito sobre as propriedades do
meu avô. Eu cresci acostumada com isso, nós nunca pensamos nesses bens.
Felizmente, estamos bem lá ano Japão, minha mãe é médica e professora
universitária. Eu também sou médica e acabei minha pós-graduação bem agora.
Pelo contrário, eu fico muito feliz que esse rapaz tenha crescido aqui na
granja e tenha se tornado um filho para o meu avô.
Heleninha
arregalou os olhinhos amendoados, como quem faz cara de surpresa e prosseguiu:
– E que filho!
Eu acabo de ver com meus próprios olhos, se alguém me contasse, eu acho que
dificilmente acreditaria. E vocês, ainda por cima, me dizem que ele é tão
honesto assim. Meu avô ganhou isso tudo aqui trabalhando dezenas de anos de sol
a sol. Ele tinha todo o direito de legar esses bens para quem ele quisesse, é
mais do que justo.
– Puxa, menina,
você me surpreende! Pensei que você ia ficar chateada com essa história de ele
deserdar sua mãe, fazer do Marcelo um filho e o único herdeiro universal.
– Não, Seu
Aristides, eu não vim aqui atrás de nada material, eu quero é só ver o meu avô,
dizer o que a minha mãe pediu que eu dissesse, ainda que ele não consiga me
entender. Depois disso, minha missão está cumprida. Aí eu só quero é voltar correndo para o
Japão, para ficar com a minha mãe no hospital, só isso. Aliás, como eu vou
poder falar com o meu avô dentro de poucos minutos, eu lhe peço, Seu Aristides,
que fique mais um pouco aqui, me espere, porque em seguida a gente volta para
Bastos e eu pego o primeiro ônibus que tiver para Campinas, para Viracopos. Eu
lhe pago um pouco a mais por seu tempo de espera.
– Ora, ora, menina,
você não conhece mesmo o velho Aristides Silveira, não teve tempo ainda. Não só não vou
cobrar nada a mais, como já resolvi, desde que soube quem você era, que não vou
cobrar nada de você por esta corrida.
– Nada?! Mas
isso é injusto, Seu Aristides. Eu não posso aceitar.
– E também não
pode fazer nada pra impedir, Heleninha. Essa vai ser minha pequena homenagem a
sua mãe, uma pessoa que eu prezei tanto no meu passado.
A voz do homem
embargou-se levemente e ele disse que precisava se afastar um pouco, para fumar.
Quando ele desapareceu na outra ponta da casa, tomando o cuidado de ainda ficar
oculto para Marcelo, mantendo-se entre as mangueiras, Sinhana cochichou para
Helena:
– Mentira,
menina, ele não fuma faz muitos anos. É que sua mãe foi o grande amor da juventude
dele. Foi no colo da minha mãe que ele chorou, no dia em que voltou do
casamento dela.
Helena ficou com
os olhinhos perdidos na distância, imaginando como teria sido melhor, se seu pai
tivesse sido aquele homem tão bom, tão simples e tão humano, ao invés daquele
dentista criminoso, que ela descobrira dois dias atrás que estava vivo e que era um
presidiário.
Sinhana
arrancou-a do devaneio, dizendo:
– Pronto, agora
se prepare para ver seu avô enfim! O Marcelo já está levando o velho no colo
pra dentro de casa. Eu vou pra lá, servir nosso almoço, comemos sempre juntos
os três. Mas antes que eu ponha os pratos na mesa, eu quero que você e o Seu
Aristides batam palmas ali na porta principal da casa grande, assim que eu
aparecer ali e lhes fizer sinal. Se tudo correr bem como eu espero, eu quero –
e o Marcelo vai querer também – que vocês fiquem pra almoçar com a gente. Vá lá
buscar o Seu Aristides, que eu estou indo pra cozinha agora.
Era meio-dia em
ponto quando Sinhana apareceu na porta e fez sinal com a mão. Voltou a entrar
em casa e esperou pelas palmas. Estas vieram imediatamente, batidas por quatro
mãos, as de Helena extremamente trêmulas e nervosas. O grande momento ia
chegar!
CONTINUA...
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