DRA. FUMIKO – 6ª. parte
Um Amor que vence o Não e a Vida exorta
MILTON MACIEL
Fim da 5ª. parte:
A outra fotografia era dela mesma! Era a pequena
Helena Fumiko, com seus sete aninhos, feliz e inocente, com os dois dedinhos da
mão esquerda fazendo o V da Vitória. Comemorava sua classificação como melhor
aluna da classe! Poucos dias antes que a grande desgraça sobreviesse para as
duas...
6ª. parte:
Sinhana explicou
que aquele era um segredo que só ela e Dona Fumiko conheciam. Sempre que o
marido se afastava, para Bastos ou em viagem, a avó se trancava a chave na sala
de jantar e colocava o quadro virado do avesso na parede. E ficava horas a fio lá dentro. Do lado de
fora, Sinhana nunca a ouvia chorar. Mas sempre a ouvia rezar muito e cantar em
japonês, quase o tempo inteiro.
Da sala, Marcelo
e Aristides ouviram a nova explosão de emoção da visitante. O rapaz abriu as
duas mãos com as palmas para cima e fez um muxoxo com os lábios, como quem
perguntasse a Aristides o que era tudo aquilo. O taxista, intuitivamente, fez
com as mãos e o rosto um gesto correspondente, como a dizer que não tinha a
menor ideia. Marcelo desconversou voltando para o velho:
– Painho não
quer casar mesmo? Olhe só, a moça tá chorando de novo. Tenha dó, painho!
Nesse momento,
Donana entrou na sala e falou aos dois homens:
– Não estranhem,
a moça estava desabafando comigo, coisa de mulher, sabe? Teve uns problemas
sérios de família, parece que está com uma mãe morre-não-morre longe daqui.
Estava visitando uns amigos em Iacri quando soube, o Seu Aristides foi buscar a
menina, está levando pra pegar o ônibus em Bastos esta noite, vai pra Campinas.
Ela está no banheiro agora.
Falou isso
olhando fixamente para o motorista, que entendeu que devia corroborar a
história. Era evidente que a moça tinha preferido não dizer quem era para
Marcelo. Não competia a ele atrapalhar os planos dela, já chegavam todos os
sofrimentos que a coitadinha estava vivendo, ainda mais com a mãe numa UTI
entre a vida e a morte. E essa mãe era a sua
Silvana, o grande amor do seu passado. Houvesse o que houvesse, ele estaria
sempre do lado de uma filha de Silvana. Confirmou imediatamente a meia mentira
de Sinhana, paciência!
– É, a moça está
mesmo muito mexida com a doença da mãe, é coisa grave, UTI de hospital, morre-não-morre.
É melhor a gente não fazer nenhuma pergunta pra ela, qualquer coisa ele se
derrete, está sofrendo demais a pobrezinha.
– Sim, isso
mesmo, Seu Aristides. E Marcelo: é melhor a gente tentar distrair a coitada, faça
das suas palhaçadas. Que ela pergunte pra gente o que quiser, a gente evita
perguntar coisas pra ela. Não parece bem assim?
– Claro, claro,
você tem razão, Sinhana. Pode deixar que eu vou tentar ajudar a moça como eu
puder.
– Você é um
amor, meu filho. Isso, faça assim mesmo. Mas agora traga seu painho pra mesa,
está na hora do almoço, vamos fazer um almoço bem descontraído, deixar a pobre
da moça à vontade, longe dos medos e das tristezas dela. Instale o Seu
Chiquinho na cadeira alta dele, que eu vou trazer a comida. Aliás, pra facilitar,
enquanto o Marcelo acomoda Seu Chiquinho, o senhor até que podia me dar uma
mãozinha na cozinha, me ajudando a trazer as travessas e as jarras.
Seu Aristides
entendeu, deu um salto da poltrona onde estava e já se encaminhou atrás de
Sinhana, em direção à cozinha. Menos de três minutos foi o que ela precisou
para explicar tudo ao taxista. Logo depois ele chegava com as duas travessas
maiores. Marcelo não deixou escapar a deixa:
– Que vergonha,
Sinhana! – gritou para a cozinha – Fazendo um visitante de sua copeira, que
folga criatura! Olhe só, painho, que desabusada – comentou, rindo para o velho
e entregando, mais uma vez, sua origem nordestina.
Sinhana chegou
com o restante dos pratos e, nesse preciso momento, Helena voltou à grande sala
de jantar. A mesa já estava toda posta, seu avô, Marcelo e Seu Aristides já
sentados a ela e o grande quadro de dona Fumiko de volta a seu lugar na parede,
em frente à mesa.
Marcelo
ergueu-se rapidamente, puxou uma cadeira para que ela sentasse e iniciou uma
animada conversa sobre os pratos que iam ser servidos no almoço. O principal,
um delicioso surubim que ele mesmo havia pescado na noite anterior. Isso deu
vez a que ele contasse toda a pescaria, caprichando na palhaçada para tentar
descontrair a moça visitante.
Contou como
tinha ido atrás de Seu Chiquinho, que era o maior pescador de toda a região,
para suplicar que ele não acabasse com todos os peixes do rio. A contragosto,
Seu Chiquinho tinha concordado por fim, devolvendo para a água três enormes
peixes, todos com mais de 30 quilos, que ele tinha pescado nos primeiros dez
minutos.
– Pescador como
Painho não tem no Brasil. É o maior, não é painho? Olhem só, ele é modesto, não
diz que sim nem não. Mas é maior mentiroso, também. Porque não pode existir
pescador sem mentira de pescador. Quanto
a maior o pescador, maior a mentira. Sabe qual é a última de painho, Seu
Aristides?
– Não sei, mas
fico sabendo se você me contar.
– Pois aí vai,
acredite se puder: Pois painho me contou ontem à noite de uma pescaria danada
que ele fez na represa de Avaré. Pois ele pegou e puxou sozinho um tubarão, uma
enorme arraia de 80 quilos e mais de 20 bacalhaus da Noruega. Verdade painho?
Caiu na
gargalhada, piscou para o velho, deu-lhe um piparote debaixo do braço. O velho
voltou para ele aqueles olhinhos felizes de adoração. Helena podia jurar que
eles estavam rindo.
– Mas esses
bichos não são de água salgada, Marcelo?
– Claro que são,
Seu Aristides. Por aí é que se vê a grandeza de painho pescador. Primeiro ele
isolou uma pontinha da represa e mandou jogar lá dentro mais de cem carretas de
sal. Aí ele trouxe os peixes e as arraias tudo filhotinho. E foi deixando a
bicharada crescer e criar. Aí, no tempo certo, ele vai lá e pesca um pouco de
bicho, pra não dar problema de super-população. Só que os bacalhauzinhos
cresceram numa parte que ficou com sal demais, por isso, quando se pesca, eles
já saem salgados e secos. E também
aconteceu que o tubarão que ele matou foi um que andou pulando do cercado de
painho pra dentro da represa e começou a gostar de água doce. E aí começou a
devastar os outros peixes e a crescer rápido demais. E antes que ele virasse um
monstro de filme americano de tubarão, painho resolveu dar um fim naquele
abusado. Pulou de calçãozinho na represa, levando só o canivete de escoteiro
dele, que tem mais de cem lâminas. O pessoal que viu diz que foi uma luta
terrível. O tubarão mordia painho, engolia ele inteiro, e painho cortava a
barriga do bicho com canivete, saía dela e ia se jogar, com toda a coragem, na
boca do bruto de novo. Aí era mastigado, engolido, a coisa toda se repetia e
ele abria outro buraco na barrica do monstro e saía de novo. No fim o tubarão
acabou morrendo, de tão furado que ficou no baixo ventre.
– Notável –
falou animada a moça Helena, que agora já estava rindo contente – Mas se o
tubarão mordeu tanto o Seu Chiquinho, como é que ele conseguiu sair com vida e
não ficou todo rasgado.
– Ah, mas a moça
não faz idéia de como é grosso e duro o couro de painho! Quando ele terminou de
içar o tubarão morto pra fora d’água, o pessoal todo viu, contou, recontou e
confirmou: o tubarão não tinha um único dente inteiro. Tinha quebrado tudo
contra o couro duro de painho. Já painho tinha um único corte feio na altura do
ombro, mas isso ele acabou confessando que foi ele mesmo que fez com o
canivete. Afinal, justificou, era uma vergonha se ele saísse daquela luta
tremenda sem nenhum arranhão. E também tinha aquele monte de mocinha do lado de
fora e ele queria impressionar as garotas com um ferimento grave. Painho é que
contou tudo isso, gente. Mas pescador é sempre mentiroso... Não é, painho?
E lá veio a
sonora risada. Aquele, de fato –
pensou Helena – era um homem de bem com
a vida... Não seria ela que iria botar
minhocas na sua cabeça, revelando quem era.
Terminada a
história de pescador, momentos depois terminava também o almoço. Sinhana trouxe
um cafezinho, com grão moído na hora, depois de encerrar o menu com doce de
leite e papo de anjo, como sobremesa. Há muitos e muitos anos que Helena não
comia aquelas delícias caseiras de sua infância. A refeição havia sido, antes
de mais nada, uma viagem gastronômica ao seu passado e dela a moça participara
com um deleite que não era somente físico, mas que tinha sido muito mais
emocional. Vó Fumiko fazia pessoalmente doces brasileiros e portugueses para a
filha e a neta, que não eram muito chegadas em comida japonesa tradicional.
E também tinha
sido, aquele almoço, uma janela da qual ela podia espiar, a todo instante, sem
chamar atenção, o semblante mirrado de seu avô. Dentro de poucos minutos ela
teria que achar condições de falar aquilo que viera falar a ele. Que certamente
não saberia quem estava lhe falando e, muito menos, poderia entender suas
palavras. Quando chegasse o momento propício, Sinhana e Seu Aristides fariam o
combinado antes do almoço, o taxista levaria o moço para fora para examinar o
seu novo taxi e, nesses escassos minutos em que o rapaz aceitasse se distanciar
um pouco do velhinho, a neta diria o que tinha que dizer ao avô. Era um curto
discurso, de uma interlocutora somente, um monólogo inútil. E então tudo o que
viera fazer no Brasil estaria pronto.
Teria que se
despedir de Sinhana, que lhe falava já ao coração. E teria que dar adeus àquele
moço impressionante, alto e bonito no porte, mas incomparavelmente mais bonito
na alma. Depois chegaria a hora de apertar a mão daquele homem que parecia tão
bom e dar adeus definitivo a Seu Aristides. Na hora de sair faria algumas
fotografias da granja e das pessoas, para mostrar a sua mãe que, com a graça de
Deus, haveria de se recuperar e apreciá-las.
Enquanto
degustavam o cafezinho, Sinhana começou a dar um rumo estranho à conversa,
deixando Helena um pouco intranqüila:
– Marcelo, você
conversava com seu painho sobre a filha dele e o que aconteceu aqui?
– No começo,
não, Sinhana. Eu era muito moleque e não entendia bem aquilo, só sabia que
painho, que então eu chamava de padrinho, não admitia nunca que alguém falasse
sobre isso. Ficava uma fera. Mas eu sabia também o que a madrinha me falava. E
ela falava sempre com tanto amor daquela filha e da netinha dela e eu via que
ela sofria tanto porque elas tinham ido embora. Inúmeras vezes eu pensei em ir
buscar as duas lá no tal de Japão, pra fazer uma surpresa pra madrinha, ver a
madrinha feliz outra vez. O padrinho tinha começado a me dar uma mesada e eu
não gastava nada dela, absolutamente nada, nem um tostão; ia juntando tudo pra tal
viagem de ida e volta ao Japão. Até que, já maior, um dia me explicaram onde
ficava o tal Japão e o quanto custava a tal passagem de avião. Fiquei
desesperado.
– E aí?! – quis
saber, ansiosa, uma interessadíssima visitante jovem.
– Foi aí que
aconteceu a única vez na vida em que eu tentei ser desonesto. Eu sabia onde
painho tinha um monte de dinheiro guardado em dólares, era numa caixa
escondida, não era num cofre. E eu fiquei tentado em roubar aquele dinheiro pra
ir pro Japão, vejam só. A essa altura eu já sabia calcular direitinho quanto ia
precisar para minha passagem de ida e volta e para as passagens das duas. Aí
resolvi que a minha ia ser só de ida, assim eu precisava roubar menos do
padrinho, o pecado ia ser menor.
– Ué, mas como
só de ida, meu filho?
– Sim, vejam só:
eu chagava lá, achava a filha e a neta, comprava as duas passagens delas, só
ida para o Brasil. E, ficava eu por lá mesmo, ia arranjar algum trabalho em
alguma fazenda de café ou de gado, eu me virava pra sobreviver.
Helena riu alto,
divertida. Mas estava com aquela bola atravessada na garganta. Que criança
incrível era aquela! E conseguiu falar:
– Fazenda de
café no Japão? Ou uma grandona, cheia de boi nelore?
Todos caíram na
gargalhada, Marcelo mais do que qualquer um:
– Pois veja,
moça, como eu não sabia nada sobre o Japão. Mas no fim eu não tive coragem de
roubar. Fui pedir perdão pra madrinha por causa disse, contei para ela onde
estavam os dólares, se ela quisesse roubar ela mesma e viajar... Mas aí ela me
falou que sabia muito bem onde estavam aqueles dólares. E me disse que não
precisava roubar, que tinha dinheiro dela mesma guardado. Mas que uma mulher
honesta tem que fazer o que o marido manda. E o padrinho não deixava ela viajar
pra buscar a filha e a neta e não havia nada que ela pudesse fazer. Então,
pouco antes de morrer, ela me contou que o padrinho tinha deserdado a filha e
me explicou o que era isso. Foi a única vez na vida que eu vi a madrinha com
lágrimas nos olhos.
– E você?
– Seu Aristides,
eu fiquei passado, era a primeira vez que eu achava feia uma coisa que o
padrinho tinha feito. Pra mim ele era o homem mais perfeito da face da Terra.
Me lembro que, por muitas noites, eu perdia o sono tentando encontrar uma
explicação pra isso, que não deixasse aquele ponto escuro na admiração
incondicional que eu tinha por ele. Mas não encontrei. Nunca encontrei. Então
aprendi que ninguém é perfeito neste mundo. E isso não alterou em nada o amor
que eu já sentia por ele.
– Coisa séria
isso, não é mesmo? Tanto sofrimento causado por um preconceito, por uma coisa
tão antiga. Ou, como diria minha filha jornalista, por um machismo rançoso.
– Pois é, Seu
Aristides. Aquilo era terrível mesmo. De um lado painho, com seus princípios
antigos de milênios, sua moral duríssima. E do outro toda a sua família: a
esposa, a filha, a neta. Como uma coisa de tradição podia fazer sofrer tanto
quatro pessoas que eram todas boas. A neta porque era uma criança ainda. Mas a
madrinha e o padrinho eram pessoas boníssimas. E da filha deles, eu só ouvi
falar coisa boa a vida inteira. Não era só a mãe dela não, todo mundo que eu
ouvi, que se referisse a ela, longe dos ouvidos de painho é claro, só falava bem
dela. Foi assim que eu aprendi o que é preconceito. E jurei pra mim mesmo que
eu nunca haveria de ser preconceituoso.
Sinhana botou
mais lenha na fogueira:
– E você sabe o
que aconteceu com a moça e com filha dela que foram pro Japão?
CONTINUA...
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