sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

 CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM NO ROMANCE            - 2ª. parte        
(do Curso de Formação de Escritores Auto-editores O ESCRITOR PUBLICÁVEL)
MILTON MACIEL
O ESCRITOR PUBLICÁVEL - FIÇÃO > Romance > Personagem - IV

IV – O PERSONAGEM E O INCONSCIENTE DO AUTOR – 1

Na parte III, usando afirmações de Jorge Amado e minhas, mostrei como o PERSONAGEM é capaz de dominar o autor e capaz de forçá-lo a dar novo rumo à historia. Evidentemente, o que nós quisemos dizer é que, no processo de criação, uma grande parte é conduzida pelo inconsciente do autor e, não , pelo seu consciente.

Isso é uma realidade não só na criação literária, mas em todas as artes. Como quando a gente acorda com uma melodia tocando insistentemente na cabeça e tem que correr para o instrumento em desespero e tratar de trazê-la para o consciente, ainda que esteja apertado para fazer xixi. Caso contrário, a gente esquece, exatamente como o sonho que a gente não conta para alguém assim acorda e isso for possível.

Johann Strauss Pai (foto) sempre usava longas camisolas para dormir. Isso porque ele acordava no meio da noite com um tema musical martelando em sua mente. Sem abrir os olhos, ele passava a mão no escuro sobre o criado mudo, apanhava a pena de dentro do tinteiro e anotava na camisola mesmo, sobre o peito, as notas do novo tema. Depois, voltava a dormir instantaneamente. No outro dia, era só estender a camisola ao lado do piano e copiar o tema, aprofundando-o a seguir. A empregada, acostumada, sabia quando já podia retirar dali a camisola e levá-la para lavar.

Na urdidura de um romance, no interagir incessante de narração, descrição, cenário, enredo, personagem, diálogo,vocabulário, é evidente que o personagem é o ator principal em cena, girando tudo o mais ao seu redor. E é exatamente a partir dele que as outras partes de redefinem e se transformam.

Por exemplo, quando minha protagonista sacana começa a ter percepções extra-sensoriais não cogitadas inicialmente em meu enredo original, a personagem se transforma e, como conseqüência, muda o teor dos seus diálogos e as pessoas com quem ela vai preferir dialogar. A transformação se torna irreversível e o romance toma um rumo inesperado, surpreendente para o próprio autor – como contou Jorge Amado, a respeito do desfecho final em Dona Flor e Seus Dois Maridos.

Em resumo, trata-se da interferência do inconsciente do autor, fazendo-se manifesta e concreta para sua própria surpresa. Evidentemente, ainda é o autor que está no comando, mas ele está dando passagem a uma parte muito mais profunda e sábia de si mesmo, que pelo geral, aprimora muito o processo criativo.

ENTÃO, PARA QUE ESTUDAR TEORIA DA ESCRITA???

Essa é a reação normal de todo estudante a esta altura do curso. Já que o personagem, como diz Jorge Amado, é que faz o romance, para que estudar sobre a construção do personagem?

Ora, a resposta me parece evidente por si mesma. Para que estudar piano ou violão? Ora, para poder desenvolver a TÉCNICA com que os dedos e o ouvido vão aprender a dominar o instrumento, de forma a fazê-lo dócil intérprete do que flui da inspiração do compositor.

É óbvio que, se nós aprendermos a desenvolver a técnica por trás da arte de escrever, nós vamos poder dar muito melhor provimento àquilo que flui da nossa mente consciente e inconsciente, da nossa ideia, da imaginação e da inspiração.

Inclusive, eu creio que é fundamental conhecer as regras para poder desrespeitá-las com autoridade, para não deixar que elas nos engessem. E, ao mesmo tempo, para não deixar que nossa criação liberta se perca num vácuo de inadequações concretas, que farão o nosso livro, a nossa querida criação,  NÃO-PUBLICÁVEL.

O que recomendo – e pratico, obviamente – é estabelecer um diálogo constante e muito aberto entre técnica e inspiração. No meu caso, como já sou conhecedor das técnicas e suas regras, depois das dezenas de cursos que fiz e dei, essas duas caturritas ficam o tempo inteiro grasnando como se fossem gralhas, num conversê sem fim na minha mente.

Mas a inspiração, a tal que faz os personagens mudarem o tomarem o roteiro em suas mãos, acaba predominando. O que faço, então, é deixá-la assumir o leme e ver para onde ela nos conduz, a mim e todos os outros partícipes do romance. Mas tem uma hora em que a inspiração já deu o que tinha que dar. Então eu volto e passo a criticá-la com as armas da técnica. É a famosa REVISÃO.

Então é corta daqui, corta dali, reescreve, reescreve, escreve de novo, corta de novo, refunde, reorganiza – enfim, é quando uso o meu conhecimento prático e minha destreza ao teclado do piano para poder melhorar a melodia que veio crua, como um simples assobio. E, com mais conhecimentos técnicos ainda, digamos de outros instrumentos, eu posso refinar a melodia original do meu assobio e convertê-la em uma peça sinfônica, para uma orquestra de 80 músicos ou mais.

Acho que esta analogia com a composição e execução musicais é perfeita. Aprender sobre enredo, personagem, diálogo, cenário, descrição, narração, ritmo, aceleração, fechamento, leitura e gramática é o mesmo que aprender a tocar piano. Leva-se um certo tempo, tem-se que fazer muitos exercícios, até que a gente seja capaz de sentar ao instrumento e não dar vexame, até que a gente possa ter o enorme prazer de saber que, qualquer melodia que venha, ela vai fluir perfeita e inalterada pela fluidez e perícia dos nossos dedos ao teclado.

Portanto, a inspiração, que vem do inconsciente, e a boa técnica de escrever, que a gente instala solidamente no consciente, não são excludentes, porém complementares. E é exatamente esta complementaridade, corretamente exercida, que faz o grande escritor.
(continua)

Nenhum comentário:

Postar um comentário