CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM NO ROMANCE - 2ª. parte
(do Curso de
Formação de Escritores Auto-editores O ESCRITOR PUBLICÁVEL)
MILTON MACIEL
MILTON MACIEL
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Personagem - IV
IV – O PERSONAGEM E O INCONSCIENTE DO AUTOR – 1
Na parte III, usando
afirmações de Jorge Amado e minhas, mostrei como o PERSONAGEM é capaz de
dominar o autor e capaz de forçá-lo a dar novo rumo à historia. Evidentemente,
o que nós quisemos dizer é que, no processo de criação, uma grande parte é
conduzida pelo inconsciente do autor e, não , pelo seu consciente.
Isso é uma
realidade não só na criação literária, mas em todas as artes. Como quando a
gente acorda com uma melodia tocando insistentemente na cabeça e tem que correr
para o instrumento em desespero e tratar de trazê-la para o consciente, ainda
que esteja apertado para fazer xixi. Caso contrário, a gente esquece,
exatamente como o sonho que a gente não conta para alguém assim acorda e isso for possível.
Johann Strauss
Pai (foto) sempre usava longas camisolas para dormir. Isso porque ele acordava no meio
da noite com um tema musical martelando em sua mente. Sem abrir os olhos, ele
passava a mão no escuro sobre o criado mudo, apanhava a pena de dentro do
tinteiro e anotava na camisola mesmo, sobre o peito, as notas do novo tema. Depois,
voltava a dormir instantaneamente. No outro dia, era só estender a camisola ao
lado do piano e copiar o tema, aprofundando-o a seguir. A empregada,
acostumada, sabia quando já podia retirar dali a camisola e levá-la para lavar.
Na urdidura de
um romance, no interagir incessante de narração,
descrição, cenário, enredo,
personagem, diálogo,vocabulário, é evidente que o personagem é o ator
principal em cena, girando tudo o mais ao seu redor. E é exatamente a partir
dele que as outras partes de redefinem e se transformam.
Por exemplo,
quando minha protagonista sacana começa a ter percepções extra-sensoriais não
cogitadas inicialmente em meu enredo original, a personagem se transforma e,
como conseqüência, muda o teor dos seus diálogos e as pessoas com quem ela vai
preferir dialogar. A transformação se torna irreversível e o romance toma um
rumo inesperado, surpreendente para o próprio autor – como contou Jorge Amado,
a respeito do desfecho final em Dona Flor e Seus Dois Maridos.
Em resumo,
trata-se da interferência do inconsciente do autor, fazendo-se manifesta e
concreta para sua própria surpresa. Evidentemente, ainda é o autor que está no
comando, mas ele está dando passagem a uma parte muito mais profunda e sábia de
si mesmo, que pelo geral, aprimora muito o processo criativo.
ENTÃO, PARA QUE
ESTUDAR TEORIA DA ESCRITA???
Essa é a reação
normal de todo estudante a esta altura do curso. Já que o personagem, como diz Jorge Amado, é que faz o romance, para que estudar sobre a construção do
personagem?
Ora, a resposta
me parece evidente por si mesma. Para que estudar piano ou violão? Ora, para
poder desenvolver a TÉCNICA com que os dedos e o ouvido vão aprender a dominar
o instrumento, de forma a fazê-lo dócil intérprete do que flui da inspiração do
compositor.
É óbvio que, se
nós aprendermos a desenvolver a técnica por trás da arte de escrever,
nós vamos poder dar muito melhor provimento àquilo que flui da nossa mente
consciente e inconsciente, da nossa ideia, da imaginação e da inspiração.
Inclusive, eu
creio que é fundamental conhecer as regras para poder desrespeitá-las com
autoridade, para não deixar que elas nos engessem. E, ao mesmo tempo, para não
deixar que nossa criação liberta se perca num vácuo de inadequações concretas,
que farão o nosso livro, a nossa querida criação, NÃO-PUBLICÁVEL.
O que recomendo
– e pratico, obviamente – é estabelecer um diálogo constante e muito aberto
entre técnica e inspiração. No meu caso, como já sou conhecedor das técnicas e
suas regras, depois das dezenas de cursos que fiz e dei, essas duas caturritas
ficam o tempo inteiro grasnando como se fossem gralhas, num conversê sem fim na
minha mente.
Mas a
inspiração, a tal que faz os personagens mudarem o tomarem o roteiro em suas
mãos, acaba predominando. O que faço, então, é deixá-la assumir o leme e ver
para onde ela nos conduz, a mim e todos os outros partícipes do romance. Mas
tem uma hora em que a inspiração já deu o que tinha que dar. Então eu volto e
passo a criticá-la com as armas da técnica. É a famosa REVISÃO.
Então é corta
daqui, corta dali, reescreve, reescreve, escreve de novo, corta de novo,
refunde, reorganiza – enfim, é quando uso o meu conhecimento prático e minha
destreza ao teclado do piano para poder melhorar a melodia que veio crua, como
um simples assobio. E, com mais conhecimentos técnicos ainda, digamos de outros
instrumentos, eu posso refinar a melodia original do meu assobio e convertê-la
em uma peça sinfônica, para uma orquestra de 80 músicos ou mais.
Acho que esta analogia com a composição e execução musicais é perfeita. Aprender sobre
enredo, personagem, diálogo, cenário, descrição, narração, ritmo, aceleração,
fechamento, leitura e gramática é o mesmo que aprender a tocar piano. Leva-se
um certo tempo, tem-se que fazer muitos exercícios, até que a gente seja capaz
de sentar ao instrumento e não dar vexame, até que a gente possa ter o enorme
prazer de saber que, qualquer melodia que venha, ela vai fluir perfeita e
inalterada pela fluidez e perícia dos nossos dedos ao teclado.
Portanto, a inspiração,
que vem do inconsciente, e a boa técnica de escrever, que a gente instala
solidamente no consciente, não são excludentes, porém complementares. E é
exatamente esta complementaridade, corretamente exercida, que faz o grande
escritor.
(continua)
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