NEM SEMPRE O FIM É TEMIDO
O médico tinha sido brutalmente objetivo:
– Seis meses é demais num caso como o seu. Desculpe
lhe dizer assim, mas a senhora tem muito pouco tempo para se preparar e preparar
os seus. Pouco tempo mais com sua família, depois a senhora vai ter que ser
hospitalizada e aí...
– E aí eu fico num hospital até o fim, é
isso que o senhor quer dizer?
O oncologista confirmou. Em casa seria
impossível tratá-la. Cirurgia nem pensar. As biópsias e as ressonâncias não deixavam
qualquer dúvida: estado terminal avançado. Avançadíssimo. O médico ainda lhe
disse que ela poderia, se quisesse, ouvir uma segunda opinião. Ora, a dele já
era a segunda opinião! E igualzinha à primeira.
Rosana saiu do consultório apressada. O médico
sacudiu a cabeça: Essa é das duronas, saiu
quase correndo, não quis chorar na minha frente.
Do lado de fora, no corredor, Rosana
explodiu numa sonora gargalhada. Os que passavam no corredor decodificaram: essa aí não tem nada; ou está curada. Deve
estar no maior alívio!
Rosana não conseguia segurar o riso, por
mais que se esforçasse. Estava no maior alívio! A segunda opinião confirmava a primeira.
Que horror o que havia padecido nesses dias, antes da chegada dos novos exames
e da consulta de agora. Como tinha temido que o primeiro médico estivesse
errado e ela não fosse morrer em seguida. Mas ia. Graças a Deus!
No ônibus a caminho de casa, continuava a
rir a todo instante. Que alívio! Que felicidade! Ia morrer e ia morrer em
seguida. Pensou na cara do marido, quando soubesse. E dos filhos, então! Bando
de sanguessugas!
Iam perder a cozinheira, a arrumadeira, a lavadeira,
a faxineira. A escrava Isaura! Iam ter que fazer a comida, lavar a roupa,
cuidar dos bichos, recolher os cocôs, tirar os matos, aguar as plantas, varrer
toda a casa, passar a roupa, arrumar as camas, lavar os banheiros, os vasos sanitários, recolher papel higiênico sujo, levar o
lixo, ir à feira, ir ao mercadão, carregar as sacolas pesadas. O GORDO IA PERDER A PUTA BARATA, A LATA DE DESPEJO DAS PORCARIAS DELE! Ah, e eles iam ter
que cozinhar!!! Explodiu noutra gargalhada, os passageiros todos se voltaram
outra vez para ela. Ainda bem que havia uma
criatura feliz, sem problemas, neste mundo – pensaram.
Quando entrou em casa, a ladainha
recomeçou, como sempre. O marido já tinha chegado, já estava estarrado no sofá
vendo TV, os pés sobre a mesinha de centro, as meias e os sapatos espalhados
pela sala, como sempre fazia. O chulé chegava até à porta da frente.
Rosana entrou, recolheu os sapatos e as
meias, como sempre fazia também. O marido grunhiu, incomodado porque ela
atrapalhava a TV:
– Você demorou, porra! Cadê minha cerveja?
Rosana depositou sapato e meias malcheirosos
na área de serviço, lavou as mãos no tanque mesmo, entrou na cozinha, abriu a geladeira,
pegou e abriu a primeira garrafa de cerveja, serviu a primeira dose no copo,
levou copo e garrafa numa bandeja para a sala. Dentro de pouco tempo a voz
gritaria de lá: Traz a outra!
No corredor cruzou com a filha:
– Pô, mãe, você tinha que sair justo hoje, é?
Passa essa blusa pra mim, depressa. Agora, que eu já tô em cima da hora pra
faculdade!
Rosana passou a blusa, levou ao quarto
(Quarto??? Chiqueiro!) da filha e pendurou num cabide.
– E o seu irmão? Saiu?
– Ora, que pergunta? E aquele inútil fica
em casa? Só quando chega muito alto ou muito chapado. Tá nas bocas, diz que
achou boca de fumo nova, foi com o Tavito.
Rosana meneou a cabeça tristemente. Aquilo
já era caso perdido. Ela tinha consumido todas as suas economias para tirar
aquele filho das delegacias, onde os mesmos policiais de sempre esperavam pelas mesmas propinas de sempre. Agora ela não tinha mais nada. E o marido nunca quisera
dar qualquer dinheiro para libertar ou tratar da dependência do filho. Os dois
se odiavam desde sempre.
A dor de cabeça veio forte, como um puxão. Rosana
sentiu-a como um alívio, começou a rir contente, porque a dor lembrou-a que o fim estava próximo.
Aleluia! Faltava pouco tempo para se libertar daquela maldita prisão. Olhou para a filha
que saía, a blusa toda nos trinques, e não pôde deixar de rir.
– Traz a outra! – a voz pastosa ordenou da
sala.
Rosana repetiu o ritual: levou nova
garrafa, novo copo, servidos em nova bandeja, para a sala. Recolheu os que
estavam vazios, levou para a cozinha, lavou o copo, guardou a garrafa. Olhando dali o marido, que
coçava o barrigão sem perder um detalhe da sua novela, não conseguiu se
segurar. Caiu na gargalhada outra vez: Espere
só, seu animal! Mais uns dois meses, se tanto, e a mordomia acabou. A minha
cerveja! A outra! Filho da mãe! Grudado na novela, volume alto, o marido
nada escutou.
Não contou nada a nenhum deles. Continuou
firme, fazendo tudo o que fazia, dócil escrava Isaura. As dores na cabeça cada vez mais frequentes,
cada vez mais insuportáveis, os desmaios mais frequentes também. Mas ela tinha
uma incrível força de vontade, reagia, conseguia não desmaiar nem demonstrar o
que padecia quando algum daqueles três estava por perto. Eles que esperassem, o
dia deles chegaria!...
Chegou 46 dias depois daquela segunda
consulta. O desmaio pegou-a em plena função da cerveja, rolou pelo chão, ficou imóvel,
dura. Quando voltou a si, estava sendo enfiada na parte de trás de uma ambulância.
Os três estavam do lado de fora, com mais vizinhos, olhando com cara de
pateta. Eram os malditoos três patetas!
Antes que a porta fosse fechada, Rosana
conseguiu se erguer um pouco e soltou uma solerte, uma inesperada, inexplicável, uma incrível gargalhada.
Fez um gesto obsceno para eles com a mão direita e gritou, com um resto de voz ainda perfeitamente audível:
– Vão pro inferno, seus urubus! O inferno
que é essa casa é todo de vocês agora. Todinho...
E desmaiou de novo, o esforço tinha sido grande
demais. Nunca mais recuperou a consciência.
Um mês depois sobrou para os urubus o incômodo
do que fazer com aquele corpo. E a despesa.
Do outro lado da vidraça etérea, Rosana
novamente gargalhava. O alívio... era completo agora!
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