quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

NEM  SEMPRE O FIM É TEMIDO  
MILTON MACIEL

O médico tinha sido brutalmente objetivo:

– Seis meses é demais num caso como o seu. Desculpe lhe dizer assim, mas a senhora tem muito pouco tempo para se preparar e preparar os seus. Pouco tempo mais com sua família, depois a senhora vai ter que ser hospitalizada  e aí...

– E aí eu fico num hospital até o fim, é isso que o senhor quer dizer?

O oncologista confirmou. Em casa seria impossível tratá-la. Cirurgia nem pensar. As biópsias e as ressonâncias não deixavam qualquer dúvida: estado terminal avançado. Avançadíssimo. O médico ainda lhe disse que ela poderia, se quisesse, ouvir uma segunda opinião. Ora, a dele já era a segunda opinião! E igualzinha à primeira.

Rosana saiu do consultório apressada. O médico sacudiu a cabeça: Essa é das duronas, saiu quase correndo, não quis chorar na minha frente.

Do lado de fora, no corredor, Rosana explodiu numa sonora gargalhada. Os que passavam no corredor decodificaram: essa aí não tem nada; ou está curada. Deve estar no maior alívio!

Rosana não conseguia segurar o riso, por mais que se esforçasse. Estava no maior alívio! A segunda opinião confirmava a primeira. Que horror o que havia padecido nesses dias, antes da chegada dos novos exames e da consulta de agora. Como tinha temido que o primeiro médico estivesse errado e ela não fosse morrer em seguida. Mas ia. Graças a Deus!

No ônibus a caminho de casa, continuava a rir a todo instante. Que alívio! Que felicidade! Ia morrer e ia morrer em seguida. Pensou na cara do marido, quando soubesse. E dos filhos, então! Bando de sanguessugas!

Iam perder a cozinheira, a arrumadeira, a lavadeira, a faxineira. A escrava Isaura! Iam ter que fazer a comida, lavar a roupa, cuidar dos bichos, recolher os cocôs, tirar os matos, aguar as plantas, varrer toda a casa, passar a roupa, arrumar as camas, lavar os banheiros, os vasos sanitários, recolher papel higiênico sujo, levar o lixo, ir à feira, ir ao mercadão, carregar as sacolas pesadas. O GORDO IA PERDER A PUTA BARATA, A LATA DE DESPEJO DAS PORCARIAS DELE! Ah, e eles iam ter que cozinhar!!! Explodiu noutra gargalhada, os passageiros todos se voltaram outra vez para ela. Ainda bem que havia uma criatura feliz, sem problemas, neste mundo  pensaram.

Quando entrou em casa, a ladainha recomeçou, como sempre. O marido já tinha chegado, já estava estarrado no sofá vendo TV, os pés sobre a mesinha de centro, as meias e os sapatos espalhados pela sala, como sempre fazia. O chulé chegava até à porta da frente.

Rosana entrou, recolheu os sapatos e as meias, como sempre fazia também. O marido grunhiu, incomodado porque ela atrapalhava a TV:

– Você demorou, porra! Cadê minha cerveja?

Rosana depositou sapato e meias malcheirosos na área de serviço, lavou as mãos no tanque mesmo, entrou na cozinha, abriu a geladeira, pegou e abriu a primeira garrafa de cerveja, serviu a primeira dose no copo, levou copo e garrafa numa bandeja para a sala. Dentro de pouco tempo a voz gritaria de lá: Traz a outra!

No corredor cruzou com a filha:

– Pô, mãe, você tinha que sair justo hoje, é? Passa essa blusa pra mim, depressa. Agora, que eu já tô em cima da hora pra faculdade!

Rosana passou a blusa, levou ao quarto (Quarto??? Chiqueiro!) da filha e pendurou num cabide.

– E o seu irmão? Saiu?

– Ora, que pergunta? E aquele inútil fica em casa? Só quando chega muito alto ou muito chapado. Tá nas bocas, diz que achou boca de fumo nova, foi com o Tavito.

Rosana meneou a cabeça tristemente. Aquilo já era caso perdido. Ela tinha consumido todas as suas economias para tirar aquele filho das delegacias, onde os mesmos policiais de sempre esperavam pelas mesmas propinas de sempre. Agora ela não tinha mais nada. E o marido nunca quisera dar qualquer dinheiro para libertar ou tratar da dependência do filho. Os dois se odiavam desde sempre.

A dor de cabeça veio forte, como um puxão. Rosana sentiu-a como um alívio, começou a rir contente, porque a dor lembrou-a que o fim estava próximo. Aleluia! Faltava pouco tempo para se libertar daquela maldita prisão. Olhou para a filha que saía, a blusa toda nos trinques, e não pôde deixar de rir.

– Traz a outra! – a voz pastosa ordenou da sala.

Rosana repetiu o ritual: levou nova garrafa, novo copo, servidos em nova bandeja, para a sala. Recolheu os que estavam vazios, levou para a cozinha, lavou o copo, guardou a garrafa. Olhando dali o marido, que coçava o barrigão sem perder um detalhe da sua novela, não conseguiu se segurar. Caiu na gargalhada outra vez: Espere só, seu animal! Mais uns dois meses, se tanto, e a mordomia acabou. A minha cerveja! A outra! Filho da mãe! Grudado na novela, volume alto, o marido nada escutou.

Não contou nada a nenhum deles. Continuou firme, fazendo tudo o que fazia, dócil escrava Isaura. As dores na cabeça cada vez mais frequentes, cada vez mais insuportáveis, os desmaios mais frequentes também. Mas ela tinha uma incrível força de vontade, reagia, conseguia não desmaiar nem demonstrar o que padecia quando algum daqueles três estava por perto. Eles que esperassem, o dia deles chegaria!...

Chegou 46 dias depois daquela segunda consulta. O desmaio pegou-a em plena função da cerveja, rolou pelo chão, ficou imóvel, dura. Quando voltou a si, estava sendo enfiada na parte de trás de uma ambulância. Os três estavam do lado de fora, com mais vizinhos, olhando com cara de pateta. Eram os malditoos três patetas!

Antes que a porta fosse fechada, Rosana conseguiu se erguer um pouco e soltou uma solerte, uma inesperada, inexplicável, uma incrível gargalhada. Fez um gesto obsceno para eles com a mão direita e gritou, com um resto de voz ainda perfeitamente audível:

– Vão pro inferno, seus urubus! O inferno que é essa casa é todo de vocês agora. Todinho...

E desmaiou de novo, o esforço tinha sido grande demais. Nunca mais recuperou a consciência.

Um mês depois sobrou para os urubus o incômodo do que fazer com aquele corpo. E a despesa.

Do outro lado da vidraça etérea, Rosana novamente gargalhava. O alívio... era completo agora!



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