A MENINA DA LADEIRA – 4ª.
Parte (Final)
MILTON MACIEL
Quatro horas depois, duas da madrugada, duas viaturas
estacionaram em frente à casinha da ladeira. O delegado Aldrovando desceu com
seus homens e todos abraçaram efusivamente o ex-chefe.
Dentro de um dos carros, três homens algemados: o
cafetão e seus capangas. Arregalaram os olhos ao reconhecerem o velho do
trapiche; e os esbugalharam totalmente quando ouviram a despedida do Dr.
Aldrovando: “Sabe, chefe, puxei a ficha
dos três pelo rádio, isso aí não tem mais jeito, caso perdido. Não tenho lugar
na delegacia pra eles, não. No caminho pra capital eles vão resistir à prisão,
sabe como é, não é?”
O antigo chefe de polícia sacudiu a cabeça, pensando:
“Esse Aldrovando! Continua o mesmo, com
ele é sempre do velho jeito. Bem, deixa pra lá, eu estou mesmo aposentado, o
que acontecer com os presos dele não é problema meu.”
Estava feliz agora, tinha enfim um novo propósito de
vida. Cortar o mal pela raiz fora uma das partes dele. A outra seria devotar-se
a resgatar aquela flor-menina do lodaçal a que a maldade humana a tinha
arremessado.
E isso ele já tinha começado a fazer, quatro horas antes. Depois que ligou para seu ex-subordinado, deixou o trapiche enquanto as mocas ainda estavam lá se lamentando. E estugou o passo, usou outras ruas, chegou à ladeira
antes que a garota, esperou por ela em frente à casinha de madeira. A menina
apontou lá embaixo muitos minutos depois, andando devagar, mancando visivelmente. No
percurso sua almazinha doía muito mais que os ferimentos, a revolta e a desesperança
mais uma vez faziam o estrago costumeiro: lembranças horríveis a acossavam
outra vez, outra vez ela tremia...
Fugindo da mãe que a vendera aos onze anos, de
caminhão em caminhão chegara primeiro ao agreste, depois ao sertão. Lá aprendeu
a sobreviver na mais difícil das condições para uma criança de onze anos, destroçada,
totalmente sozinha: prostituta de estrada. Sempre em estradas secundárias,
desimportantes, onde os caminhões eram poucos e as meninas eram muitas, porque
muita era a miséria faminta que em derredor grassava.
Essas meninas da miséria eram as filhas da seca,
formavam estranhos magotes de crianças com fome, que tinham que ganhar com seus
corpos mirrados o alimento que faltava também para seus irmãos e irmãs menores,
produzidos em séries ininterruptas por mães permanentemente grávidas.
Estas gestavam as futuras filhas da seca em seus
ventres desnutridos – as novas crianças que manteriam as estradas poeirentas
permanentemente abastecidas de novos corpos mirrados, repastos do machismo mais
primitivo, precocemente negociados, precocemente engravidados e adoecidos, numa
corrente macabra sem fim, num moto perpétuo que esmaga crianças e seus sonhos,
como fossem rolos de brutais moendas.
E agora, aos quatorze anos recém–completados, ela
estava de novo numa cidade. Não que tivesse mais esperanças. A lição de três
anos de vida pelas estradas e postos de gasolina lhe ensinara que não havia
amanhã para gente como ela. O amanhã trazia apenas uma única certeza: ele seria
pior do que hoje. Aprendera, com a aniquilação de suas últimas ilusões ao longo
desse tempo, a aceitar a vida como ela é: dura, cruel, sofrida, sem volta. Não
tinha mais vontades. Sonhos? Besteira. A vida não permite sonhar, a vida é só realidade,
realidade da pior, da mais brutal, sempre pior amanhã do que foi ontem.
Foi quando passou de novo em frente à casa de madeira
que descobriu que estava errada. Deus estava à sua espera em frente à casa. E
Deus tinha assumido a forma de um velho homem cínico e descrente, até aquela
noite fechado totalmente em seu egoísmo.
Para o velho delegado Deus se manifestou também,
chegou como uma prostituta de quatorze anos e estava ali para resgatar o velho
do cinismo e do desamor a que vivia acorrentado. Então o Deus que estava dentro
da menina libertou o Deus que estava dentro do homem e ele agiu. Levou-a para
dentro de casa, cuidou de suas feridas, matou sua fome, colocou-a em sua cama
de casal, cobriu-a cuidadosamente e a embalou presa entre seus braços, até que
ela parasse de tremer e adormecesse.
Daquele dia em diante, ela passou a morar na casinha de madeira. E o velho não a desejava mais. Compreendeu perfeitamente qual seria o seu papel, quando a menina terminou de lhe contar toda sua longa e terrível história de abusos e sofrimentos. Não, não a faria sua amante, como a própria menina havia sugerdo, por dever de gratidão. Seria para ela muito mais do que isso, seria o seu redentor, o redentor de sua própria redentora. Começaria tudo de novo: dando a ela tudo o que precisasse, ela o redimiria do seu passado de frieza e violências. D
Acabara de aprender, graças a ela, a diferença entre fazer
'amor' e DAR Amor. Cuidaria daquela menina, tinha tempo e recursos à vontade para
isso. E resgataria para ela todos os seus direitos usurpados de criança e de
mulher: alimento, segurança, respeito, educação, auto-estima. E amor. Verdadeiro.
De PAI.
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