segunda-feira, 16 de julho de 2012


A MENINA DA LADEIRA – 4ª. Parte (Final)    
MILTON  MACIEL

Quatro horas depois, duas da madrugada, duas viaturas estacionaram em frente à casinha da ladeira. O delegado Aldrovando desceu com seus homens e todos abraçaram efusivamente o ex-chefe.

Dentro de um dos carros, três homens algemados: o cafetão e seus capangas. Arregalaram os olhos ao reconhecerem o velho do trapiche; e os esbugalharam totalmente quando ouviram a despedida do Dr. Aldrovando: “Sabe, chefe, puxei a ficha dos três pelo rádio, isso aí não tem mais jeito, caso perdido. Não tenho lugar na delegacia pra eles, não. No caminho pra capital eles vão resistir à prisão, sabe como é, não é?”

O antigo chefe de polícia sacudiu a cabeça, pensando: “Esse Aldrovando! Continua o mesmo, com ele é sempre do velho jeito. Bem, deixa pra lá, eu estou mesmo aposentado, o que acontecer com os presos dele não é problema meu.”

Estava feliz agora, tinha enfim um novo propósito de vida. Cortar o mal pela raiz fora uma das partes dele. A outra seria devotar-se a resgatar aquela flor-menina do lodaçal a que a maldade humana a tinha arremessado.

E isso ele já tinha começado a fazer, quatro horas antes. Depois que ligou para seu ex-subordinado, deixou o trapiche enquanto as mocas ainda estavam lá se lamentando. E estugou o passo, usou outras ruas, chegou à ladeira antes que a garota, esperou por ela em frente à casinha de madeira. A menina apontou lá embaixo muitos minutos depois, andando devagar, mancando visivelmente. No percurso sua almazinha doía muito mais que os ferimentos, a revolta e a desesperança mais uma vez faziam o estrago costumeiro: lembranças horríveis a acossavam outra vez, outra vez ela tremia...

Fugindo da mãe que a vendera aos onze anos, de caminhão em caminhão chegara primeiro ao agreste, depois ao sertão. Lá aprendeu a sobreviver na mais difícil das condições para uma criança de onze anos, destroçada, totalmente sozinha: prostituta de estrada. Sempre em estradas secundárias, desimportantes, onde os caminhões eram poucos e as meninas eram muitas, porque muita era a miséria faminta que em derredor grassava.

Essas meninas da miséria eram as filhas da seca, formavam estranhos magotes de crianças com fome, que tinham que ganhar com seus corpos mirrados o alimento que faltava também para seus irmãos e irmãs menores, produzidos em séries ininterruptas por mães permanentemente grávidas.

Estas gestavam as futuras filhas da seca em seus ventres desnutridos – as novas crianças que manteriam as estradas poeirentas permanentemente abastecidas de novos corpos mirrados, repastos do machismo mais primitivo, precocemente negociados, precocemente engravidados e adoecidos, numa corrente macabra sem fim, num moto perpétuo que esmaga crianças e seus sonhos, como fossem rolos de brutais moendas.

E agora, aos quatorze anos recém–completados, ela estava de novo numa cidade. Não que tivesse mais esperanças. A lição de três anos de vida pelas estradas e postos de gasolina lhe ensinara que não havia amanhã para gente como ela. O amanhã trazia apenas uma única certeza: ele seria pior do que hoje. Aprendera, com a aniquilação de suas últimas ilusões ao longo desse tempo, a aceitar a vida como ela é: dura, cruel, sofrida, sem volta. Não tinha mais vontades. Sonhos? Besteira. A vida não permite sonhar, a vida é só realidade, realidade da pior, da mais brutal, sempre pior amanhã do que foi ontem.

Foi quando passou de novo em frente à casa de madeira que descobriu que estava errada. Deus estava à sua espera em frente à casa. E Deus tinha assumido a forma de um velho homem cínico e descrente, até aquela noite fechado totalmente em seu egoísmo.

Para o velho delegado Deus se manifestou também, chegou como uma prostituta de quatorze anos e estava ali para resgatar o velho do cinismo e do desamor a que vivia acorrentado. Então o Deus que estava dentro da menina libertou o Deus que estava dentro do homem e ele agiu. Levou-a para dentro de casa, cuidou de suas feridas, matou sua fome, colocou-a em sua cama de casal, cobriu-a cuidadosamente e a embalou presa entre seus braços, até que ela parasse de tremer e adormecesse.


Daquele dia em diante, ela passou a morar na casinha de madeira. E o velho não a desejava mais. Compreendeu perfeitamente qual seria o seu papel, quando a menina terminou de lhe contar toda sua longa e terrível história de abusos e sofrimentos. Não, não a faria sua amante, como a própria menina havia sugerdo, por dever de gratidão. Seria para ela muito mais do que isso, seria o seu redentor, o redentor de sua própria redentora. Começaria tudo de novo: dando a ela tudo o que precisasse, ela o redimiria do seu passado de frieza e violências.  De violências profissionais e de frieza sentimental., quando não soubera dar aos seus a atenção e o cuidado que eles mereciam.

Acabara de aprender, graças a ela, a diferença entre fazer 'amor' e DAR Amor. Cuidaria daquela menina, tinha tempo e recursos à vontade para isso. E resgataria para ela todos os seus direitos usurpados de criança e de mulher: alimento, segurança, respeito, educação, auto-estima. E amor. Verdadeiro. De PAI.

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