A MENINA DA LADEIRA –
2ª. Parte
MILTON MACIEL
(continuação)
... Aos poucos as palavras,
repetidas em voz alta sem parar, começam a fazer o
costumeiro exorcismo. Os espectros acabam por se dissolver, a
realidade da ladeira se restabelece à vista embaçada, a crueldade do frio chama
para o agora, o estômago se retorce ao aguilhão da mesma fome, à náusea da mesma
memória.
Instantes depois a moça está pronta para retomar a caminhada. Limpa
como pode o rosto, retocará a pintura borrada quando chegar ao trapiche. A fome
é cruel, lembra-se do último chiclete, mas reconhece que tem que guardá-lo para
o primeiro cliente, se cliente algum tiver nesta noite. Minutos depois já caminha
pelas ruas mais iluminadas e planas, onde passa gente e onde vai ter a recepção
costumeira: há homens que a comem com os olhos, outros que se aproximam
agressivos, com palavras chulas que lhe trazem sempre mal-estar, por mais que
esteja acostumada a recebê-las.
As mulheres lhe lançam os mesmos olhares de sempre, com os quais lhe
dizem que sentem por ela desprezo, nojo, asco, que ela é lixo, puta indecente,
vagabunda, piranha, vadia. Muitas não se contentam apenas em falar impropérios
com os olhos, preferem fazê-lo em voz alta, o que a fere ainda mais fundo. A
menina detesta fazer esta parte da caminhada, baixa os olhos para não ver as
pessoas, mas os ouvidos teimam em continuar ouvindo palavras ofensivas,
cortantes.
Faz tão pouco tempo que chegou nesta cidade e também ali já está
marcada para sempre! Há homens com interesse no caminho, mas ela sabe que tem
que seguir as normas ou será expelida desse lugar. Nada de aceitar abordagens
fora do seu ‘ponto’, nada de se prostituir em ruas de gente “decente’”, de
pessoas “de bem”, de lojas comerciais. Não, puta tem que saber qual é o seu
lugar. Essa é a lei tácita que ela tem que obedecer. Ah,
Deus, medo é muito pior que fome, fome passa,
medo não passa nunca!...
Finalmente ultrapassa as ruas, chega ao ponto: uma
plataforma de uns cem metros quadrados, com balaustradas encimadas por
luminárias verdes, de ferro, antiqüíssimas. A plataforma se projeta rio adentro
como um trapiche velho de madeira carcomida. É só nela que as moças têm
permissão para ofertar seus corpos como mercadoria e fechar seus negócios,
sempre difíceis, sempre de alto risco.
A moça chega, reconhece e cumprimenta as colegas e concorrentes, estão
as cinco ali, indício de que a noite não vai ser das mais auspiciosas, ninguém
conseguiu sair até aquele momento, mau sinal. Francelina, que oficia como
Cigana, se chega à menina, faz-lhe festa nos cabelos longos, sente o hálito que
conhece tão bem. Então abre sua bolsa e divide, feliz, sua escassez: coloca na
boca de garota faminta um sanduíche de queijo e presunto que trouxe para comer
mais tarde.
A criança morde, mal mastiga, engole com sofreguidão, olha comovida
para a colega, não pode falar de boca cheia, os olhos lacrimam gratidão. Cigana
sorri para ela, dá-lhe um beijo estalado na bochecha e se afasta, lutando para encurtar
mais a sainha plissada.
Mal a mocinha termina de mastigar a última porção quando vê, para sua
grande
surpresa, que o homem da casinha do penhasco vem andando em sua
direção. O que significaria aquilo? Será que ele a tinha seguido?
O Velho
De fato o homem a havia seguido. Logo após o encontro na ladeira, em
frente a sua casa, ele ficara observando a menina através da cortina
entreaberta, invisível no escuro da sala. Viu que ela tinha parado, começado a
chorar, apoiara-se a um muro, dissera palavras em voz alta por um longo tempo –
muito estranho.
Entendeu que a moça passava mal. Preparava-se para ir em seu socorro
quando ela se recompôs e reencetou a marcha ladeira abaixo. Aí não teve mais
dúvidas: deu à jovem uma boa vantagem de distância e saiu no seu encalço. Não
podia explicar porque, mas sentia que era o que devia, o que precisava
fazer. Algo naquela garota clamava por ele.
De fato, por ocasião do primeiro encontro, entendera de imediato o
convite que os olhos e o sorriso da moça lhe faziam. Sem dúvida alguma, uma
jovem prostituta. Mas muito diferente das outras que vira por ali: mais jovem,
muito mais bonita, estranhamente atraente. Viu-lhe as pernas e coxas
magníficas, o quadril alto, a cintura delicada, o busto perfeito, o rosto
bonito, os cabelos esvoaçantes. Desejou-a de imediato e teria partido para
realizar seu desejo ali mesmo, dentro de sua casa de homem solitário, se não
tivesse cometido o erro de olhar por um tempo excessivo dentro daqueles olhos
castanhos claríssimos. Olhou. Abismou-se. E perdeu-se.
Tinha setenta anos e uma forma física exuberante para a idade. Há
vários anos havia se afastado da família: ex-esposas, filhos, netos: recíproca
ojeriza. Vivia sozinho na cidade grande. Um dia, já retirado de sua estressante
profissão, vendeu tudo o que tinha, gerou um pequeno pecúlio e mudou-se para
aquela casa rústica na cidade litorânea. Há muito tempo comprara aquele terreno
no impulso, com uma pequena construção de madeira que era um primor de
despojamento. Acabou por escolher aquele lugar e aquela casa para ali viver a
fase final de sua vida. Deixou tudo e todos na capital e trouxe
consigo apenas sua aposentadoria, um radinho, um mínimo de roupas, um telefone
celular pré-pago e toneladas de livros. Não deu seu novo endereço a ninguém. Ali
passou a viver na maior frugalidade, com ínfimas despesas, seu único “luxo” resumindo-se
a comprar sempre mais e mais livros.
Rompeu com seu passado e com todas as relações que nele orbitaram.
Estava definitivamente farto de tudo e de todos. E totalmente convencido que
sua vida desembocara numa encruzilhada sem jeito, numa passagem sem rumo, num
vazio sem futuro. Por isso baniu-se para o exílio naquela cidade, isolou-se
naquela casa da qual fez sua ilha de náufrago, tão infenso a qualquer contato humano
que nem mesmo uma bola de voleibol que atendesse por Wilson seria aceita ali.
Definitivamente em sua nova vida de velho, de senhor total e absoluto
do seu tempo, não havia lugar para outra pessoa, qualquer pessoa. Era isso o
que lembrava enquanto caminhava no encalço da jovem prostituta. Estava em plena
lua-de-mel com sua nova vida, feliz com seu isolamento, vivendo o êxtase da
casa-ilha, Crusoé redivivo. Por que, então, ia agora em busca de outra pessoa?
Por que estava agindo desse modo tão incoerente? Sim, porque, por mais atraente
que fosse a garota, ele podia reconhecer que não ia em busca da prostituta, mas
do ser humano diferente que adivinhara dentro dela. Como explicar a si mesmo
tal incongruência? ( a
continuar)
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