A MENINA DA LADEIRA –
3ª. Parte
MILTON MACIEL
Talvez os olhos da pequena explicassem tudo.
Quando olhou dentro deles, sua intuição lhe mostrou que era falso o convite que
eles sorriam. Olhando mais fundo, por trás da insinuação, o que viu foi desespero,
angústia, carência e muito, muito medo! Por isso teve receio instintivo da
garota. Não queria, de jeito algum, voltar a se envolver com qualquer pessoa.
Mas o grito de socorro dos olhos da menina continuou ecoando dentro de sua
mente, de suas entranhas, do seu sexo mesmo, a ponto de inibir completamente a
primeira onda de desejo de que fora acometido por força do cálido convite.
Fugiu da garota, refugiou-se em sua ilha,
trancou a porta. Mas os olhos castanhos claríssimos continuaram chamando por
ele, não saiam de sua mente, ocupavam todos os espaços da sala escura. Quando a
viu pelo vão da cortina, apoiada ao muro da casa em frente, assustou-se. A moça
chorava copiosamente, todo o seu corpo estremecia convulso, enquanto ela falava
palavras para ele ininteligíveis. Foi quando a certeza explodiu dentro dele:
danem-se as regras do exílio, tinha que decifrar aquele enigma, tinha que ajudar
aquela menina. Por isso a seguiu até o trapiche onde ela oficiava com suas
colegas.
Decidiu, ao chegar, que devia dar a si mesmo
uma última chance. Antes de mais nada, abordaria a menina como prostituta,
proporia o programa. Se esse acontecesse, livrar-se-ia em definitivo daquela
incômoda situação, que pressentia de alto risco. Nada poderia ser mais frio e
mais profissional. Só que o inesperado veio dar sua contribuição, complicando
as coisas ainda mais para o velho.
No exato momento em que ele começava a falar
com a moça, freios guincharam, portas bateram, três homens saíram de um
automóvel e tomaram o cais de assalto. O que parecia ser o chefe, o velho já o
tinha visto, sabia quem era: um cafetão e traficante de mulheres e drogas,
indivíduo perigoso, da pior espécie. Os outros dois, óbvios meganhas, armas
visíveis, formavam seu esquadrão de assalto.
Os capangas mandaram o velho sumir das vistas
deles, juntaram todas as moças no centro da plataforma. Então o chefe
explicou-lhes quem era e o que estava sendo ali disposto como nova lei para
elas. Dali em diante trabalhariam para o chefe, ele mandaria mais clientes, elas
pagariam uma taxa de proteção e mais uma comissão para ele. E, ainda mais
importante, passariam a funcionar como ‘mulas’ para o novo senhor delas:
entregariam pequenas doses de drogas para consumidores, pelo geral clientes dos
programas delas, e cuidariam de trazer o dinheiro muito certinho para o chefe e
seus portadores.
O novo dono deixou bem claro que elas não
tinham qualquer direito, qualquer possibilidade de recusa. Estariam sendo
observadas por outras mulheres, por dedos-duros, por policiais do bando, nada
podia ser escondido do chefe. E, para que não pairasse qualquer dúvida, para
que a primeira lição fosse muito bem aprendida pelas novas “protegidas”, os
três homens passaram a dar uma amostra grátis do tratamento dispensado às
insubordinadas. Ordenando que parassem de chorar e que não gritassem nem
pedissem socorro em hipótese alguma, começaram a distribuir pancadas em todas
as seis mulheres.
O cafetão arrastou a menina mais bonitinha, a
que estava conversando com o velho, para o trapiche e ali a forçou a servi-lo,
com evidentes requintes de sadismo. O mesmo aconteceu com as todas as outras
moças, usadas com violência pelos outros dois homens.
Quando os bandidos
foram embora, as moças ficaram juntando seus pedaços aos prantos, mais
desesperadas do que nunca. Mais uma vez tinham sido todas vilipendiadas,
espancadas, estupradas, reduzidas a nada. Aquela conjunção de dor, vergonha,
revolta e impotência, que todas elas conheciam tão bem, sempre e sempre
repetida, levou-as a dividir solidariamente aquele momento terrível – mais um,
sempre havia mais um! Consolaram-se
umas às outras, despediram-se com tristeza infinita, a noite tinha acabado para
elas, corpos e partes doloridos, almas esfrangalhadas. Tomou cada uma, silente,
o seu rumo. Para as moças, três das quais ainda menores de idade, aquela foi
uma noite de horror e de derrota. Para os três bandidos, uma noite de sadismo e
de sucesso.
A única coisa ruim para eles foi ter um certo
homem velho, a quem se ordenara que sumisse, desacatado a ordem. Escondendo-se,
assistiu às cenas de brutalidade, de selvageria covarde. E aquele velho ficou
terrivelmente indignado, completamente furioso. Pior: teve para si que
entendia, enfim, por que razão se preocupara com a menina da ladeira e a
seguira. E, ali mesmo, na sebe em que se ocultara, desfez seu primeiro voto e
proferiu um segundo: deixava de ser náufrago ermitão, estava aberto o caminho
para que seres humanos entrassem outra vez em sua vida.
E, azar extremo do cafetão e seus asseclas, o
homem velho jurou que iria liquidar com eles completamente, aniquilá-los em
definitivo. Alguém deveria ter-lhes ensinado que nunca se deve subestimar
totalmente um desconhecido, mesmo quando ele parece ser apenas um velho
inofensivo. Realmente muito azar dos criminosos, porque, dali mesmo onde
estava, o homem fez uma ligação do seu celular para a capital, a 200 km de
distância. Chamou um certo Aldrovando, que atendeu todo feliz:
– Sim, Delegado, quanta honra, diga o
que manda, o senhor não sabe a falta que faz aqui desde que se aposentou,
chefe.
(a concluir na próxima postagem)
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