MILTON MACIEL
(da trilogia "DE FRANÇA E BRASIL" - Vol. 1)
Comemorando o 2o. aniversário desde blog, completados neste 24 de junho último, começa-se a publicação em série deste primeiro volume da trilogia "De França e Brasil". 'João Ramalho no Paraíso' segue e tradição deste blog de publicar livros inteiros, que aqui mesmo nasceram, como os romances históricos gauleses O CERCO e ALINE DE TROYES; e como a novela nipo-brasileira Dra. FUMIKO, livros que foram sendo conhecidos do público leitor no exato momento em que nasciam, publicados capítulo a capítulo neste blog.
JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO
CAP 1 - VAI, JOÃO, VAI CONQUISTAR O
BRASIL!
VOUZELA,
Portugal, 1512
– Não vais, não
vais e não vais! Está decidido! Eu sou tua mãe e tu me deves obediência. Não
vais! Eu não to permitirei ou não me chamo Catarina Afonso de Balbode. E não se
fala mais nisso!
Catarina de
Balbode estava realmente furiosa. Ora, ir-se o seu filhote para Lisboa! Aquele
filho era mesmo cabeçudo como o pai. Na certa, se ela deixasse, iria meter os
pés pelas mãos. Ah, que dois gajos mais parecidos aqueles! Não havia dois mais
parecidos em Portugal, não podia haver! Tinha-se-lhes que trazer de rédea
curta.
O marido, o
velho João Vieira de Maldonado, até que tinha aprendido a se comportar, com o
passar dos anos. Dera-lhe muito trabalho, é verdade. Mais moço, era dado a
correr atrás das cachopas e a enrabichar-se por elas. Não que Catarina se
importasse, os homens eram todos iguais, conhecia-se um, conhecia-se todos.
João Maldonado não era nem um pouco diferente daquele bode velho sempre no cio
– seu pai, Joaquim Balbode, que tantos bastardos tinha espalhado pelos
arredores todos de Vouzela.
Já temendo por
isso num filho tão parecido com o pai – e que, ainda por cima, poderia sair ao
avô mulherengo – decidira casá-lo bem moço com uma rapariga séria e de boa
família. E, acima de tudo, de cuja virgindade ninguém duvidasse por ali. Ora,
essa Catarina Fernandes, baixota e gorducha, com um belo buço preto maior que o
da própria futura sogra, de respeitável cara feia também, não era exatamente o
sonho dos rapazes do lugar. Muito menos de João Maldonado Filho. A penúltima
coisa que um rapaz podia querer era casar aos dezoito anos. A última, é que
fosse com Catarina Fernandes.
Mas acabou tendo
que casar. Quando Catarina Afonso de Balbode botava uma coisa na cabeça, não
havia cristo que pudesse tirar. Pressionou o marido e o filho por mais de seis
meses. Por fim recorreu ao velho artifício de sempre: as pontadas! Caiu de cama
com as célebres pontadas no coração, tão fortes que, às vezes, ela chegava a se
enganar de lado, acusando-as do lado direito do peito. Queixava-se em altos
brados, para que toda a vizinhança pudesse ouvir:
– Ai, que me morro!
Que me morro! Mata-me este filho ingrato. Vou-me desta sem ter o gosto de
segurar um netinho ao colo. Ai, que morro de pesar!
E redobrava os
gritos, os ais, os gemidos. O velho Maldonado, por mais que soubesse que aquilo
era manha, era teatro, acabava cedendo. Uma, porque não suportava escândalos e
gritarias. Outra porque, por mais que desacreditasse das cenas de Catarina,
acabava sempre ficando na dúvida: E se dessa vez fosse verdade? E se a mulher
morresse mesmo, se o ataque desta vez fosse verdadeiro? Sempre havia uma
primeira vez. E o pobre João Maldonado acabava cedendo.
Quando a pressão
do pai veio somar-se à da mãe, já por si irresistível, João Maldonado Filho
capitulou. Estava bem, casava-se com aquela moça sem graça, pela qual não
sentia nada, absolutamente nada. Ao menos, também não lhe tinha antipatia. E
quando soube o valor do dote da moça, ficou entusiasmadíssimo. Valia a pena,
sem dúvida. Deitava-se com a rapariga, fazia-lhe o filho que a mãe tanto queria
para neto e ficava livre. Inventava uma viagem ou um trabalho bem longe, em
Lisboa, se conseguisse. E aí ia ficando por lá, gozando a vida.
A vida de casado
não caiu nada bem ao rapaz. Não só perdeu sua liberdade de ir e vir à hora que
quisesse, como também ganhou uma segunda Catarina em tudo igual à primeira. A
esposa era em tudo uma cópia de Catarina Balbode. Sempre de cara fechada,
sempre reclamando de algo, sempre achando defeitos para colocar em tudo e em
todos. E mandona! Mandona como a Catarina velha! Que desastre, onde fora
amarrar seu burro!
Na cama era uma
verdadeira negação. Não negação no sentido de que se negasse. Mas não
participava de nada. Era como um pedaço de pau. Logo o rapaz perdeu o pouco de
desejo que, nessa idade, um homem sente até por buraco de fechadura. Foi
parando de procurá-la e ela nunca se queixou disso. Talvez por isso, ou talvez
por outra causa, nunca tinha engravidado. A velha Catarina vivia atormentando o
filho por esse motivo:
– Me sais um
frouxo, nem trepar em cima de uma mulher sabes, para emprenhá-la. Que negação!
Me fazes morrer sem ter um neto. Me fazes morrer. Aí, as pontadas!
Num dia de
sábado, em que as duas mulheres foram cedo para a missa das seis, pai e filho
tiveram um conversa decisiva.
– Meu pai,
dize-me tu, como aguentas viver com uma esposa como essa, por todos esses anos?
Eu estou começando a ver as mesmas coisas na minha e já não suporto mais. Decidi:
vou-me embora de Vouzela!
– Ah, pois que
estás certo, meu filho. Teu pai te compreende e te diz: vai-te logo enquanto é
tempo. Se ficares tempo demais, como eu fiquei, acabas te acostumando e nunca
mais consegues te libertar.
– Ora, meu pai, cá
me vejo eu surpreso! Não pensei que me apoiasses nisso. Achei que considerarias
loucura minha.
– Loucura será
se, podendo partir, ficares. Aproveita que és jovem e forte, já vais fazer
dezenove anos e já tens essa barba ramalhuda, toda crespa e esparramada. Ela te faz parecer mais velho do que és, ajuda
a impor respeito à tua figura.
– Isso é verdade, meu pai. Há uns gajos, lá na
Quinta, que, para diferenciar-me de meu pai, porque somos os dois João Maldonado,
estão a chamar-me de João Ramalhudo. E uma cachopinha, filha do tanoeiro, a
quem ando dando uns apertos lá no meio das oliveiras, chama-me agora Joãozinho
Ramalho.
– Ora, ora, isso
é divertido, mas até que te vai bem. João Ramalhudo. Ou João Ramalho, fica até
melhor. Um nome novo para uma vida nova! Não está mal, não está mal. Mas
dize-me tu, como e quando pretendes partir?
– Espero meu
aniversário de dezenove anos, no mês que vem. E aí vou-me a pretexto de que
consegui um grande emprego em Lisboa. Meu amigo Pedro Farias irá apresentar uma
carta de um tio seu, que vive na capital, propondo-nos trabalho com uma paga
muito elevada. É mentira, é claro. Mas a carta é verdadeira, já a recebemos
pelo mensageiro. De qualquer forma, é na casa desse tio de Pedro Farias que
iremos ficar nos primeiros tempos. Até que eu possa embarcar como grumete num navio
que parta para as novas terras que Pedro Álvares Cabral descobriu para nós, as
terras onde há o pau vermelho que vale como ouro para os que tingem tecidos, o
pau-brasil.
– Ah, com que
então estás de olho nas riquezas da nova colônia, hein, malandrote! Pois fazes
muito bem, tivesse eu tua idade e coragem, ia-me embora para essas terras de
futuro também. Mas dize-me, como te vais arranjar em Lisboa? Com que dinheiro
vais viver e comer, até que arranjes lugar num navio?
– Ah, meu pai,
andei escondendo algumas moedas de Catarina, vou vender meu cavalo e os arreios
e me arranjo com isso. Não preciso comer todos os dias, estou bem forte e
lustroso, posso agüentar um pouco de fome, a causa é nobre.
CONTINUA
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