MILTON MACIEL
Fim da 9a. parte:
– Português bandido, com tudo índio inimigo nosso, pegou Jamari e amigo. Levou Jamari pra ser
escravo, lugar muito, muito longe. Jamari escravo vinte luas, corta pau-brasil,
carrega pra navio, passa muita fome. Mas Jamari forte, aguenta, aprende idioma
de português e até de francês, navio que levava madeira era francês. Jamari
matou homem mau, libertou companheiro tudo, tudo fugiu. Jamari caminhou doze
lua e Jamari voltou pra casa. Muito feliz agora. Minha mãe muito feliz. Pai
muito feliz.
– Com a breca, este é mesmo o meu dia de sorte! Justo hoje me
chegas aqui, ó homem, justo hoje quando eu naufrago e
10a. parte:
quase morro e depois sou acolhido por este teu amicíssimo povo. Eu não entendo
nada do que dizem, nem me entendem eles
também. Tu caíste-me do céu, ó Jamari. Será que tu me podes ajudar?
– Jamari ajuda,
sim. Porque João pergunta isso?
– Porque meus
patrícios fizeram-te muito mal e acho justo que agora tenhas ódio aos
portugueses como eu.
Jamari soltou
uma sonora gargalhada e sacudiu a cabeça para os lados, admirado, dizendo:
– Homem
português mau que pegou e levou Jamari era só um. Jamari já fez justiça. Lá
Jamari encontrou mais de dez português homem bom, tudo obrigado a servir homem
mau. Tudo degredado. Os outro que mandava era seis homem francês, os que vendia
pau-brasil pra navio. Jamari amigo dos português bom, eles ajuda Jamari a matar
português ruim e todos fugir. Jamari gosta de português bom. Chefe Tibiriçá
garante João Ramalho português bom, João Ramalho abaíba Potira, noivo de filha do cacique, homem importante agora.
Se João Ramalho português bom, Jamari gosta João Ramalho. Jamari ajuda, ajuda
sim!
João sentiu-se
comover com a atitude do outro. Como é que as pessoas daquele povo podiam ser
tão puras e gentis? Não resistiu e deu um abraço apertado no índio, que
retribuiu o gesto à maneira que havia aprendido com seus amigos portugueses do
cativeiro.
– Jamari,
Jamari, tu és um anjo que Deus mandou para o meu caminho, homem. Eu juro que
vou saber retribuir-te tudo o que me deres de ajuda, juro que serei teu amigo para
todo o sempre.
– Ah, amigo é
bom! Muito bom. Amigo coisa bom. Jamari gosta. João amigo Jamari, Jamari amigo
João.
Potira chegou
sorridente e tomou a mão de João Ramalho e a mão de Jamari nas suas. E disse
algo que o rapaz tratou logo de traduzir para João:
– Potira parente
Jamari. Jamari filho de cacique Ajuricaba, desta aldeia. Ajuricaba meio-irmão
de cacique Tibiriçá. Nós é tudo parente. Se João Ramalho casa Potira, parente
nosso também.
– Ora, homem, o que eu mais quero hoje é casar com tua prima Potira. Mas
como e quando pode ser isso?
– Como, coisa
muito fácil. Quando, Tibiriçá resolve. Potira diz que quer casar João, João diz
que quer casar Potira. Diz na frente de todo a mundo da aldeia. Pronto, já tá
casado os dois.
– Só isso?! Mas
não tem que ter um sacerdote ou um cacique que dê permissão, uma cerimônia,
coisas assim?
Outra vez Jamari
sacudiu a cabeça rindo e falou:
– Isso coisa de
homem branco, João. Nós não tem isso. Como, permissão? Nem cacique, nem pajé,
nem ninguém é dono de vontade de pessoas. Pessoas quer casar, pronto, elas
casa. É só isso. E pra acabar casamento mesma coisa. Homem diz que não quer
mais. Ou mulher diz que não quer mais. Pronto. Elas não tá mais casado, pode
casar de novo.
João Ramalho
soltou um assobio de admiração e completou:
– Sim, senhor! E
meus patrícios a dizer que nós é que somos civilizados! Tu precisas ver que
enrosco complicado que é casar e divorciar em Portugal, Jamari, uma verdadeira
tragédia. Que lições temos nós a aprender com vosmicês, os verdadeiros
civilizados!
Ali fora onde
estavam todos, a festa continuou. E ampliou-se muito. Trouxeram as comidas e as bebidas, as frutas
espremidas e o cauim, que João Ramalho provou e achou muito bom.
– Arre, mas esta vossa bagaceira é muito boa! E bem, forte. De que é feita?
– Macaxera.
Abati também. Mandioca. Milho, E caldo de fruta. Nossa aldeia as mulher e
menina mastiga mandioca cozida, cospe no pote grande, espera um pouco, bota pra
ferver de novo com água. Então espera bastante tempo, que a mistura vira cauim.
– Jesuis! Então isso que eu bebi passou antes
pelas bocas das mulheres? Por que só das mulheres?
– Boca de homem
dá cauim muito ruim, azedo, porcaria! João acha ruim que passa nas boca das
mulher?
– Hom’essa, mas
claro que não! Muito pior é o vinho que nós bebemos na Europa, que, para
fazê-lo, homens e mulheres pisam as frutas, as uvas, em grandes tonéis
cortados, pisam com os pés sujos, cheios de frieiras e muitos até de botas.
Depois, bebe-se tudo com regalo.
– Pisa com os pé sujo? Nojento!
– O que ocorre,
ó Jamari, é que a fermentação limpa tudo depois. O mesmo deve acontecer com
essa bagaceira de vocês, que é um vinho de mandioca ou de milho, com suco de
frutas. Pois eu te digo, homem, que prefiro mil vezes uma boca de mulher a um
pé sujo de homem. Vou considerar teu cauim como um beijo de mulher.
– Beijo de
mulher! João Ramalho engraçado. Mas vem beber mais, pega mais cauim aqui.
Os grandes potes
de cauim foram colocados nas fogueiras para amornar e distribuída foi a bebida
para todos. As mulheres também bebiam, mas o faziam devagar, em pequenos goles.
Para os homens, a regra era outra e Jamari a explicou ao novo amigo:
– Nós homem bebe
toda a cuia de uma vez só, não pode parar. Só mulher que pára. Homem bebe tudo de uma vez.
E estendeu a
nova cuia cheia de bebida para o português, que entornou o conteúdo todo de uma
só vez. Ajuricaba sorriu-lhe com aprovação, Tibiriçá também. Todos esvaziaram
suas cuias e tornaram a tê-las enchidas pelas mulheres. João Ramalho
acompanhou-os como pôde, até que sentiu-se, subitamente, completamente bêbado.
Então chegaram
os músicos com os membis, as maracas e as grandes flautas. Muitos homens tinham
chocalhos amarrados nas pernas e nos braços. Quase todos começaram a dançar,
marcando o ritmo com batidas fortes dos pés nos chão. As mulheres integraram-se
à dança, começando a cantar, no que foram logo secundadas pelos homens. Corriam
pela ocara em filas de andamento lento e ritmado, o que contagiou o mais do que
alegre João Ramalho.
Potira puxou-o para
dentro do grupo e o português tratou de bater os pés descalços no chão, tanto
quanto faziam os outros homens. Não sabia o que cantar, mas estava de boca
aberta, aturdido pela bebida e encantado pelo rosto bonito de sua noiva, que
revoluteava a menos de um palmo de distância do seu. Tudo começou a girar e esta
foi sua última lembrança da festa do seu noivado, festa também do alegre
regresso de Jamari a sua tribo.
Despertou no
outro dia, chamado que foi por Jamari, que o cutucava com os dedos, sem muito resultado.
Então chegaram as moças e começaram a puxar sua barba e seu cabelo. Foi então que João
Ramalho descobriu que o cauim deixava uma tremenda de uma ressaca!
CONTINUA
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