MILTON MACIEL
Fim da primeira parte:
– Ah, com que
então estás de olho nas riquezas da nova colônia, hein, malandrote! Pois fazes
muito bem, tivesse eu tua idade e coragem, ia-me embora para essas terras de
futuro também. Mas dize-me, como te vais arranjar em Lisboa? Com que dinheiro
vais viver e comer, até que arranjes lugar num navio?
– Ah, meu pai, andei escondendo algumas moedas de Catarina,
vou vender meu cavalo e os arreios e me arranjo com isso. Não preciso comer
todos os dias, estou bem forte e lustroso, posso agüentar um pouco de fome, a
causa é nobre.
2a. parte:
– Não, não! Não
criei filho meu para passar fome. Fica tranquilo, teu pai te ajudará. Tenho
também muitas moedas e outros valores, que venho escondendo da Catarina tua mãe
também, desde muito tempo. Sabes, sempre alimentei a esperança de que um dia eu
teria coragem de dizer adeus a essa tua mãe e aventurar-me pelo mundo. Para
isso fui ocultando algumas posses. Mas o tempo pegou-me, a saúde das juntas
também, enferrujei de corpo e de alma. Mas agora, ao saber da tua aventura, tu
me enches de novo ânimo e entusiasmo. Já estou velho demais para escapar-me
daqui, mas viverei a tua empreitada como se fosse minha. E esse dinheiro que
guardei para minha fuga do cativeiro, dou-to todo a ti.
– Meu pai,
quanta generosidade! Vais me fazer um grande bem. Mas não é justo que gastes
todo teu patrimônio comigo. Dá-me menos, haverei eu de arranjar-me, já ia
fazê-lo com uns poucos trocados mesmo.
– És um bom
menino, meu João Ramalho. Sempre foste muito amigo de teu pai. Pois agora é a
hora de teu pai mostrar que é teu grande amigo. Vamo-nos à casa, enquanto
aquelas duas carolas bigodudas não chegam. Vou abrir um bom vinho, que tenho
escondido também, e vou mostrar-te – ou melhor, já vou dar-te – o dinheiro que
vai garantir o sucesso de tua aventura. Vem, vamo-nos já.
Dois meses
tinham-se passado desde aquele sábado memorável para João filho. Ou João
Ramalho, como o próprio pai passara a chamá-lo daquele dia em diante. Até que
era bom, se as pessoas se acostumassem com esse nome, nunca iriam confundi-lo
com o do pai. Gostava: João Ramalho, João barbudo, João da barba crespa e
arreganhada!
Pois agora
Catarina-mãe estava tendo um dos seus velhos ataques de pontada, entremeado de
terríveis momentos de falta de ar e dor de estômago. Com se tonta estivesse, a
gorda mulher se escorava nas paredes e gritava:
– Ah, mais tu
não vais, não, senhor João Ramalho! Então porque tens uma barba ramalhuda já te
consideras um homem capaz de desobedecer teu pai?
– Mas meu pai nunca que me disse para eu
não partir para Lisboa! Ele sabe que é uma oportunidade de ouro para mim.
– Ora, não disse
porque é um frouxo igual a ti! Vocês são dois gajos que não têm coragem de
nada. E, muito menos, terão coragem de me desobedecer. João, ó João, onde
estás, infeliz? Onde estás que não vens dar uns tabefes na cara desse teu
ramalhudo de meia-tigela. E olha que, se
tu não dás, acabo-os dando eu mesma, sim senhor!
E Catarina mãe
arrancou o avental da grossa cintura e ameaçou bater com ele, enrolado, na
cabeça do filho, que se retirou rindo. Passou por Catarina-esposa, que assistia
a tudo atentamente da entrada da casa. João encarou-a com um sorriso estranho e
ela o olhou com deboche, dando toda razão à sogra, evidentemente.
João voltou-se
para a casa e encarou as duas Catarinas. A moça, roliça e feia, do lado de
fora; a velha, feia e roliça, na soleira da porta. E João, o ramalhudo,
sentindo-se um grande homem, falou bem baixinho:
– Até nunca
mais, sua rolhas-de-poço de maus bofes! Quedem-se por aí a retorcer seus
bigodes!
Minutos depois
estava com o pai e com Pedro Farias na bodega de Aristides Manco. O pai já tinha
trazido mais cedo a pequena trouxa do filho, sem que as Catarinas o tivessem
percebido. Pedro Farias já estava com a sua também. A despedida foi rápida e
cheia de emoção, mas os dois Joãos souberam disfarçá-la. Dando um longo e
apertado abraço no filho, João Vieira de Maldonado despediu-se com lágrimas
fugazes nos olhos e falou-lhe, quase ao ouvido:
– Vai, meu
filho. Sei que nunca mais meus olhos haverão de te ver. Mas tu hás de desbravar
as novas terras para ti. Vai, cumpre teu destino, conquista esses Brasis e
faz-te um homem rico e importante. Eu sei que tu podes, tu hás de triunfar!
No minuto final,
ainda tirou do dedo seu anel de família e o colocou no dedo do filho. Depois, dando-lhe
um puxão na barba arrepiada, falou pela última vez:
– Vai-te, João
Ramalho, vai conquistar o Brasil!
E, dando as
costas aos dois rapazes, afundou-se para a parte de trás da bodega, onde podia
chorar sem ser percebido pelos outros homens.
João Maldonado
filho, o João Ramalho, e seu amigo Pedro Farias correram a encarapitar-se na
carroça de Antonio Tanoeiro, que partiu para dar início à etapa inicial da
viagem que levaria os dois rapazes para Lisboa. De trás de uma árvore próxima,
surgiu a filha do tanoeiro, que gritou uma despedida ao pai e cochichou depois
consigo mesma:
– Adeus, João
Ramalho, vai com Deus.
Tinha lágrimas
nos olhos e apoiava as duas mãos sobre o ventre. Ali dentro, em segredo,
começava a crescer o primeiro dos inúmeros descendentes de João Ramalho – o
único do Velho Mundo.
CONTINUA
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