quarta-feira, 23 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 11a. Parte    
MILTON MACIEL  

Fim da 10a. parte:
...aturdido pela bebida e encantado pelo rosto bonito de sua noiva, que revoluteava a menos de um palmo de distância do seu. Tudo começou a girar e esta foi sua última lembrança da festa do seu noivado, festa também do alegre regresso de Jamari a sua tribo.

Despertou no outro dia, chamado que foi por Jamari, que o cutucava com os dedos, sem muito resultado. Então chegaram as moças e começaram a puxar sua barba e seu cabelo. E João Ramalho descobriu que o cauim deixava uma tremenda de uma ressaca! 

11a. parte: 
Aos poucos ele foi recobrando a lucidez plena e a primeira coisa que lembrou foi que Jamari havia dito que ele, João Ramalho, era agora um homem importante, porque era o noivo de Potira. Ah, bendita indiazinha, anjo que o céu mandara para a sua vida! Bonita, sensual, corajosa, decidida... e filha do grande cacique Tibiriçá. Uma princesa!

As moças trouxeram-lhe uma cuia de mel, alguns beijus e dois tipos de frutas que ele não conhecia. Falavam muito, todas juntas, rindo e brincando entre si e com ele, puxando-lhe docemente as barbas ramalhudas. João entendeu que, se ingerisse aqueles alimentos, sua dor de cabeça iria melhorar, o que de fato aconteceu rapidamente.

Então ele, apesar de estar rodeado por mais de dez moças atraentes, sentiu falta de Potira. Falou o nome dela para as outras índias, com entonação de interrogação. Elas falaram alguma coisa que ele não entendia, mas todas apontaram lá para cima, para o que lhe pareceu o topo da serra.

– Sim eu sei que Potira é lá de cima, de Inhapuambuçu, ora. Mas eu quero saber onde ela está agora? Por que não está aqui também?

Jamari ouviu o que o português disse e explicou:

– Elas quer dizer que Potira já subiu para Inhapuambuçu, foi com pai e os outro. Todos volta pra casa hoje muito cedo, madrugada.

– O que?! – berrou João incrédulo. Então ela foi embora?! Sem se despedir de mim? Mas ela não é minha noiva?

Então uma dúvida atroz passou-lhe pela mente: Será que ela ou Tibiriçá tinham mudado de ideia? Ou então não teria sido tudo aquilo uma brincadeira somente? Não havia noivado nenhum? Perguntou isso a Jamari:

– Então ela não é mais minha noiva?

–Por que não é? Claro que é sim, João Ramalho. Ela disse, Tibiriçá disse, quando índio fala, índio cumpre.

– Mas... Mas ... ela foi embora sem me dizer uma palavra...

– João dormia mais que um tronco de jequitibá caído. Bebedeira. Nós tentou acordar João, depois Potira ficou com pena de João. Tinha que ir embora de madrugada.

– Mas por que tinha que ir embora? Justo hoje, não vai ter mais festa para Jamari?

– Sim, festa continua hoje e amanhã. Mas agora os homenm foi caçar e pescar, as mulher foi pra roça e vai preparar mais comida depois. Festa segue hoje, quando sol se põe.

– Mas, e eu?... quer dizer, como fico eu, sem Potira?

– Chefe Tibiriçá deixou recado pra João. Escuta bem: Cacique disse que espera João em Inhapuambuçu. Mas que João só pode subir serra e chegar em Piratininga quando pode falar língua de gente. Tibiriçá diz que Potira não tem que aprender falar português, mas que João Ramalho tem que aprender falar nossa língua.

– Hom’essa! Mas como é que eu vou aprender a vossa...

– Calma, João! Jamari ensina. Jamari ensina João falar tupi. E Jamari leva João pra Inhapuambuçu, pra casar com Potira, mas só quando João já sabe falar idioma de Potira e nosso.

– Com a breca, estou danado então! Vou levar anos para ver de novo minha noiva. Estou danado, estou desgraçado, ai de mim, meu Deus!

– Bobagem, João. Português homem bom, homem bom aprende depressa. Jamari bom pra ensinar, também.

– Nós podemos começar agora, então? Por favor, Jamari, tenha dó de um pobre português abandonado!

– Nós começa já, hoje mesmo. Mas João não tá abandonado. Tem amigo Jamari. Tem as menina todas.

– Mas Jamari, eu agora sou um homem comprometido, não posso mais continuar junto com as outras meninas.

– João perdeu juízo? Por que diz isso?!

– Ora, Jamari, eu sou um homem comprometido, Potira não iria gostar se eu ... ah... se eu...

– Brincasse com outras moça? Ora, mais foi Potira mesmo que mandou elas tomar conta de João. Falou com todas, uma por uma,

– Ela mandou?! Mas tomar conta como?

– Ora, cuidar de João, dar boa comida e bebida, dar pouco cauim que João é fraco, dar banho todo dia em João, brincar com João no rio, no chão, na rede, isso...

– Como dar-me-ão banho elas, criatura? Mas se elas tocam em mim, em tudo e...

– Mas como elas vai dar banho em João sem tocar tudo? E elas quer se divertir, brincar também, é direito.

– Mas não é direito que eu faça... essas coisas... com elas, no rio, no chão, na rede, se tenho minha noiva.

– João complicado. Português tudo complicado! Francês também. Branco tudo. Não toma banho, fede demais e não sabe viver. Parece que tem raiva da vida. Raiva ou medo.

– Mas, se eu tenho compromisso com uma moça, então eu não posso pegar as outras, nenhuma outra, aliás e...

– E pode não por quê? João não é casado com Potira ainda. Pode, sim.

– Mas, criatura, isso é contra os bons costumes, contra a Igreja...

– Hum, Igreja coisa muito ruim, João. No cativeiro tinha um padre que aparecia às vez. Amigo dos francês, vinha atrás de índia pra brincar com ele. As índia não queria, porque ele amigo também do português mau nosso dono. Então ele mandava segurar as índia moça e batia nelas, depois brincava. Mas brincava só ele, que elas não brincava, entende? Elas não queria, ele fazia à força. E depois vinha com as reza e queria convencer nós tudo a acreditar na Igreja dele. Meus amigo português bom tinha ódio dele, tinha um, Martim, que jurou, quando fugiu com nós tudo, que ia voltar escondido pra matar padre Alfonso.

– Céus, matar um padre! É um grande pecado. E ele fez isso?

– Acho que sim, ele voltou escondido, disse que padre fez coisa ruim com índia que ele gostava e levou ela embora com ele, pra escrava dele, comprou de português ruim. Mas eu não sei, não vi mais português bom. Sua Igreja coisa ruim também João. Padre só fala de diabo, de castigo, da tal danação, de inferno. Mas aquele padre é o próprio diabo, um Anhangá muito feio. Diz que brincar é feio, mas ele obriga índia a brincar com ele à força. Isso sim é feio. Vida assim é muito ruim, João, muito triste.

– Ai, Jesus! Tu me deixas tonto, ó Jamari, com tuas palavras. De fato, pelo que tenho visto, o mundo de vocês é tão melhor do que o nosso...

– É sim, João Ramalho. Deixa Jamari dar conselho pra João. Conselho de amigo. Jamari amigo de João. Potira não pode ser portuguesa como João. Mas João pode ser índio como Potira, como Jamari, como Tibiriçá.

– Que dizes tu, homem? Como assim, posso eu ser índio? Se sou branco como cera perto de vocês...
CONTINUA

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