quinta-feira, 17 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 9a. parte  
MILTON MACIEL 

Fim da 8a. parte:
Parecia mentira para ele que tudo aquilo tivesse acontecido num intervalo de tempo de apenas algumas horas. No início da tarde a despedida da vida, a certeza da morte, o despertar no Paraíso, o encontro com as índias adolescentes que o encantaram e depois tomaram conta dele como se ele lhes pertencesse. O medo ao encontrar os outros indígenas, principalmente os homens e, entre eles, os chefes. Depois a surpresa agradável de ser recebido com tanta alegria e cordialidade.

9a. parte:
E havia o inesquecível banho de rio, as meninas passando as mãos nele como bem entendiam, o seu ‘acidente’ embaixo d’água, de que todos tomaram conhecimento, para diversão e chacota geral.

E então, quase completamente nu, fora trazido para dentro daquela grande maloca e, surpresa das surpresas, o chefe e sua filha o convidaram para ir conhecer sua aldeia lá em cima da serra, Inhapuambuçu.

E, finalmente, pelo que começava a entender, o chefe havia lhe concedido sua bela filha como namorada. Ou talvez até algo mais sério, pelos cumprimentos e alegria de todos, talvez ele estivesse em vias de arrumar um casamento com uma nativa da terra dos papagaios. E que nativa!

Se fosse isso, mais do que nunca ele tinha que aceitar sua ideia de que tinha chegado ao Paraíso, porque aquela menina era como que um anjo de beleza e formosura. E, para chegar ao Paraíso, não precisara cumprir a praga de Catarina de Balbode sua mãe, não precisara morrer! João Balbode de Maldonado, o João Ramalho da portuguesa Vouzela, tinha realizado a incrível façanha de entrar no Paraíso sem precisar morrer.

Estava vivíssimo, tão vivo que sentia uma fome brutal roer-lhe as entranhas. Interessante como não havia sentido fome durante todas as horas em que estivera com as indiazinhas. Ou, por outra, sentira com elas fome por outra coisa, que uma das meninas soube saciar para ele dentro d’água. Mas agora tudo o que o moço queria era aplicar os dentes numa daquelas carnes assadas.

E foi exatamente isso que Potira colocou em suas mãos, um enorme naco de carne de algum animal que João não conseguia identificar, mas que atacou com sofreguidão e sem modos civilizados, provocando outra onda de gargalhadas nos índios. Porém, João viu que eles riam, mas aprovavam o que fazia, pois entendiam que ele, que quase tinha morrido afogado, e que fora depois disso brincar com as meninas no riacho, devia estar agora com uma fome de desespero.

A toda hora vinham lhe oferecer um cozido de raízes, carnes e peixes extremamente sumarentos e agradáveis ao paladar. E frutas deliciosas, que ele jamais havia visto ou provado. Para o esfaimado João, aquele era o melhor banquete de que se lembrava ter participado na vida.

Aos poucos, à medida que ia aplacando sua fome e a sofreguidão com que comia, começou a entender que aquele era mesmo uma espécie de banquete. E que ocorria por causa dele, João. Ou porque fosse homenageado, como um visitante ilustre, ou porque festejavam seu namoro com a filha da terra, a encantadora filha do chefe Tibiriçá de Inhapuambuçu.

O cacique conseguiu, aos trancos e barrancos, arranhando algumas palavras em português e caprichando na gesticulação, dar-lhe a entender que ele era muito bem vindo e que seria uma honra para Inhapuambuçu recebê-lo como morador e como MARIDO de sua filha Potira!

Sim, não havia mais dúvidas, aquela era a celebração de um autêntico noivado! Hom’essa, horas atrás era um cristão a afogar-se, a morrer e a entregar a alma a Deus; horas depois, um português quase pelado, no meio de uma gente toda pelada, se empanturrando da melhor comida que podia existir no mundo e pedido em casamento por uma moça e por seu pai – um chefe indígena, uma espécie de rei local.

João olhou com ternura para Potira e imaginou que, para todos os efeitos, sendo ela filha de um rei do Brasil, rei ao menos de sua tribo, ela era uma princesa. Sua princesa Potira!

Potira lhe retribuiu o olhar como carinho e, ao mesmo tempo, uma insinuação de sensualidade intensa nos olhos. João ficou felicíssimo que tivesse protegido sua vergonha com os fundilhos de suas calças molhadas, porque senão, nesse momento, a tal vergonha, que já estava agora muito da sem-vergonha, iria dar um espetáculo do qual ele, o homem, iria morrer de vergonha. Preferiu deixar de sustentar o olhar de Potira, senão não teria mais como disfarçar seu estado de excitação.

Aquele, que quase se tornara o dia de sua morte, estava sendo, de fato, o dia se sua grande SORTE! Sentia-se feliz como nunca. Lembrou-se com gratidão e carinho do velho Maldonado, o pai que lhe proporcionara as condições de sair de Vouzela e aventurar-se no rumo dos Brasis. Tinha só 19 anos. Era casado em Portugal e estava pedido em casamento no Brasil!

 Muito que bem! Ora, era certo que nestas plagas ignotas não havia lei e ele certamente, não seria condenado por bigamia. Aliás, se pudesse, apesar de estar muito entusiasmado com a bela Potira, ele casaria com todas aquelas lindas índias que o recolheram na praia, casaria com todas elas no mesmo dia. Riu-se intimamente de sua ideia, porque logo a seguir lembrou: Caso com todas e como é que vou dar conta da matilha faminta inteira, sozinho? É. É melhor como está, é muita índia para um português só!

A festa continuou até que foi interrompida pela chegada de alguém. Ouviu vozes gritarem lá fora, estridentes:

– Jamari! Jamari! – e outras vozes a fazer-lhes eco, ainda mais entusiasmadas:

– Jamari! Jamari! Jamari!

Todo mundo correu para fora da maloca, atabalhoadamente. João Ramalho também foi e viu que todos estavam cumprimentando, e até o que lhe pareceu abraçando, um jovem índio que havia chegado de surpresa. Uma índia mais velha gritava e chorava sem parar, erguia os braços para os céus, abraçava-se com força ao rapaz. João imaginou que poderia ser a mãe do moço.

O chefe da aldeia local abriu caminho entre as pessoas e abraçou-se também ao moço, falando palavras emocionadas sem parar. O cacique Tibiriçá e Potira o acompanharam e também receberam o jovem com grande alegria. O pai de Potira falou algumas palavras para o jovem índio, apontando para João Ramalho.

Tibiriçá veio então buscar o português e levou-o até o recém-chegado, que lhe abriu um sorriso acolhedor. O cacique falou algo para o jovem índio e este, dirigindo-se ao rapaz beirão, disse palavras que deixaram João em estado de choque:

– João Ramalho. Português. Quase morreu afogado! – e o jovem índio ria divertido.

– Hom’essa!!! Tu falas meu idioma?! Mas como...

– Português bandido, com tudo índio inimigo nosso,  pegou Jamari e amigo. Levou Jamari pra ser escravo, lugar muito, muito longe. Jamari escravo vinte luas, corta pau-brasil, carrega pra navio, passa muita fome. Mas Jamari forte, aguenta, aprende idioma de português e até de francês, navio que leva madeira era francês. Jamari matou homem mau, libertou companheiro tudo, tudo fugiu. Jamari caminhou doze lua e Jamari voltou pra casa. Muito feliz agora. Mãe muito feliz. Pai muito feliz.

– Com a breca, este é mesmo o meu dia de sorte! Justo hoje me chegas aqui, ó homem, justo hoje quando eu naufrago e 
CONTINUA

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