segunda-feira, 7 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 3a. parte  
MILTON MACIEL

Fim da 2a. parte:
João Maldonado filho, o João Ramalho, e seu amigo Pedro Farias correram a encarapitar-se na carroça de Antonio Tanoeiro, que partiu para dar início à etapa inicial da viagem que levaria os dois rapazes para Lisboa. De trás de uma árvore próxima, surgiu a filha do tanoeiro, que gritou uma despedida ao pai e cochichou depois consigo mesma:

– Adeus, João Ramalho, vai com Deus - tinha lágrimas nos olhos e apoiava as duas mãos sobre o ventre. Ali dentro, em segredo, começava a crescer o primeiro dos inúmeros descendentes de João Ramalho – o único do Velho Mundo. Era o ano da graça de 1512.

3a. parte:
RATINHAS!

Muito, muitíssimo mais fácil do que imaginara! Como fora fácil engajar-se como grumete numa caravela que fazia parte de um grupo a partir para o Brasil. No fim, não havia passado nem um mês na boa hospitalidade de Tio Farias e já estava cortando o Oceano Atlântico em rumo sudoeste.

Se fácil havia sido engajar-se, difícil foi habituar-se à nova profissão de homem do mar. Isso pela óbvia razão de que o mar nunca ficava quieto! Aquele balouçar ritmado dava-lhe nas entranhas e João quase que as vomitava inteiras nos primeiros dias, tão grande era o enjôo que o acometia. Aprender a escalar os mastros fora-lhe agradável, até o dia em que o capitão mandou-o encarapitar-se no alto do cesto da gávea.

Visto e sentido dali, o balouçar das águas era muito mais intenso e o efeito sobre suas entranhas o pior possível. E havia a cruel disposição do imediato de castigá-lo com 20 bastonadas caso vomitasse lá de cima sobre os marinheiros cá embaixo. O medo das bastonadas fazia-o vomitar no balde que havia levado para lá escondido, escalando o mastro da gávea na noite anterior a seu turno de vigia, que começava no início da manhã.

Mas o homem acaba se acostumando com tudo, basta que se lhe dê tempo ou que a isso obrigue o destino. João Ramalho teve tempo para acostumar-se e depois de duas semanas de embarcado já não tinha mais os mesmo enjôos colossais. Aos poucos foi-se tornando senhor da situação e deixou de ser motivo de chacota dos outros marinheiros..

Até que veio aquela terrível tormenta ao largo dos Açores, a primeira tempestade de João Ramalho! O medo foi tanto que ele não parava de ouvir sem parar a praga de sua mãe Catarina, quando, ainda muito antes de ser por ela forçado a casar-se com a outra Catarina, manifestara todo entusiasmado seu desejo de ir-se para Lisboa e engajar-se na tripulação de um barco que demandasse rumo dos Brasis.

Pois a mãe ficou uma fera e, esgotado o recurso das célebres pontadas, ela o ameaçou com uma terrível praga:

– Como engajar-te, ó gajo sem juízo?! Tu nunca entraste numa barco grande, o dia que fizeres isso, vais dar-te muito mal. Não foste talhado para ser homem do mar, criatura. Tu és bicho da terra como teu pai e meu pai. E bichos da terra o mar não aceita de bom alvitre. Eu t’o proíbo, ouviste bem? T’o proíbo! E, se um dia me desobedeceres, então hás de encontrar que o mar vai engolir-te, perecerás numa tempestade. É assim que o mar castiga filhos desobedientes e cabeçudos como tu. Ser me desobedeceres, pereceras numa tempestade.

O efeito daquela praga foi devastador para o jovem João. Ele ficou realmente com medo e esqueceu a história de engajar-se, até o dia em que retomou o plano, quando teve certeza que poderia fugir das Catarinas graças à ajuda do pai.

Por isso, quando a tormenta colheu a pequena flotilha ao largo dos Açores, o João agora Ramalho encheu-se de duplo medo e pavor. Pavor natural de morrer afogado e medo de que isso fosse inevitável especificamente para ele, porque havia desobedecido sua mãe e o mar o castigaria, tal qual ela havia prometido.

Mas a tempestade acabou passando e nenhum navio foi a pique. E João perdeu o medo de que a praga da mãe fosse um mal inevitável. E navegou sereno pelo resto dos dias de navegação, subindo muitas vezes para seu turno no cesto da gávea, feliz da vida e adorando a nova condição de marinheiro.

Então o momento tão esperado chegou: sinais de terra começaram a aparecer: aves e sargaços, detritos e galharias disseram a todos que logo veriam no horizonte os Brasis. E de fato, no dia seguinte, do meio da névoa desse horizonte, surgiu uma elevação de terra que deixou a todos na maior excitação. Mais algumas horas de navegação e poderiam lançar ferros ao largo da costa da nova terra lusitana. Então desceriam nos escaleres e João Ramalho cairia no mundo das terras dos brasis. Desertaria da tripulação e haveria de começar a ganhar sua fortuna pessoal.

Mas ao invés de navegarem placidamente rumo à costa já visível, o que aconteceu foi que os navios foram recebidos por outra tremenda tempestade, muito mais forte do que a que enfrentaram nos Açores. Os ventos chegaram rápidos e rápidos cresceram, surpreendendo mesmo aos mais experientes marinheiros e comandantes. E com os ventos vieram as nuvens carregadas e das nuvens carregadas desabou o dilúvio. Relâmpagos e trovões iluminavam a escuridão que se fez em peno dia e as ondas subiram agigantando-se muito mais altas que as caravelas. E justamente aquele em que João Ramalho estava foi a única que não resistiu ao empuxo das ondas. A caravela foi a pique e afundou às vistas da costa brasileira.


E João Ramalho teve certeza que a praga de Catarina se cumpria. Filho desobediente e cabeçudo, bicho da terra, o mar castiga! Ainda assim decidiu que não entregaria a carcaça facilmente à morte. Agarrado a um pequeno pedaço de uma trave, conseguiu manter-se boiando e foi nadando com um esforço sobre-humano em direção à costa que avistava, iluminada pelos coriscos. Quando estava quase chegando, no entanto, as forças se lhe esvaíram e João Ramalho aceitou o inevitável. Era o fim. Não conseguia mais manter os olhos abertos, os músculos lhe doíam como se tivessem agulhas por toda a extensão do corpo. João largou a trave e fez uma última arremetida desesperada em direção à areia branca. Tarde demais, no entanto: a exaustão dominou-o e ele começou a afundar, engolindo água e não conseguindo mais respirar. Tudo ficou totalmente escuro.
CONTINUA

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