MILTON MACIEL
Fim da 2a. parte:
João Maldonado
filho, o João Ramalho, e seu amigo Pedro Farias correram a encarapitar-se na
carroça de Antonio Tanoeiro, que partiu para dar início à etapa inicial da
viagem que levaria os dois rapazes para Lisboa. De trás de uma árvore próxima,
surgiu a filha do tanoeiro, que gritou uma despedida ao pai e cochichou depois
consigo mesma:
– Adeus, João
Ramalho, vai com Deus - tinha lágrimas
nos olhos e apoiava as duas mãos sobre o ventre. Ali dentro, em segredo,
começava a crescer o primeiro dos inúmeros descendentes de João Ramalho – o
único do Velho Mundo. Era o ano da
graça de 1512.
3a. parte:
RATINHAS!
Muito,
muitíssimo mais fácil do que imaginara! Como fora fácil engajar-se como grumete
numa caravela que fazia parte de um grupo a partir para o Brasil. No fim, não
havia passado nem um mês na boa hospitalidade de Tio Farias e já estava
cortando o Oceano Atlântico em rumo sudoeste.
Se fácil havia
sido engajar-se, difícil foi habituar-se à nova profissão de homem do mar. Isso
pela óbvia razão de que o mar nunca ficava quieto! Aquele balouçar ritmado
dava-lhe nas entranhas e João quase que as vomitava inteiras nos primeiros
dias, tão grande era o enjôo que o acometia. Aprender a escalar os mastros
fora-lhe agradável, até o dia em que o capitão mandou-o encarapitar-se no alto
do cesto da gávea.
Visto e sentido
dali, o balouçar das águas era muito mais intenso e o efeito sobre suas entranhas
o pior possível. E havia a cruel disposição do imediato de castigá-lo com 20
bastonadas caso vomitasse lá de cima sobre os marinheiros cá embaixo. O medo
das bastonadas fazia-o vomitar no balde que havia levado para lá escondido,
escalando o mastro da gávea na noite anterior a seu turno de vigia, que
começava no início da manhã.
Mas o homem
acaba se acostumando com tudo, basta que se lhe dê tempo ou que a isso obrigue
o destino. João Ramalho teve tempo para acostumar-se e depois de duas semanas
de embarcado já não tinha mais os mesmo enjôos colossais. Aos poucos foi-se
tornando senhor da situação e deixou de ser motivo de chacota dos outros marinheiros..
Até que veio
aquela terrível tormenta ao largo dos Açores, a primeira tempestade de João
Ramalho! O medo foi tanto que ele não parava de ouvir sem parar a praga de sua
mãe Catarina, quando, ainda muito antes de ser por ela forçado a casar-se com a
outra Catarina, manifestara todo entusiasmado seu desejo de ir-se para Lisboa e
engajar-se na tripulação de um barco que demandasse rumo dos Brasis.
Pois a mãe ficou
uma fera e, esgotado o recurso das célebres pontadas, ela o ameaçou com uma
terrível praga:
– Como
engajar-te, ó gajo sem juízo?! Tu nunca entraste numa barco grande, o dia que
fizeres isso, vais dar-te muito mal. Não foste talhado para ser homem do mar, criatura.
Tu és bicho da terra como teu pai e meu pai. E bichos da terra o mar não aceita
de bom alvitre. Eu t’o proíbo, ouviste bem? T’o proíbo! E, se um dia me
desobedeceres, então hás de encontrar que o mar vai engolir-te, perecerás numa
tempestade. É assim que o mar castiga filhos desobedientes e cabeçudos como tu.
Ser me desobedeceres, pereceras numa tempestade.
O efeito daquela
praga foi devastador para o jovem João. Ele ficou realmente com medo e esqueceu
a história de engajar-se, até o dia em que retomou o plano, quando teve certeza
que poderia fugir das Catarinas graças à ajuda do pai.
Por isso, quando
a tormenta colheu a pequena flotilha ao largo dos Açores, o João agora Ramalho
encheu-se de duplo medo e pavor. Pavor natural de morrer afogado e medo de que
isso fosse inevitável especificamente para ele, porque havia desobedecido sua
mãe e o mar o castigaria, tal qual ela havia prometido.
Mas a tempestade
acabou passando e nenhum navio foi a pique. E João perdeu o medo de que a praga
da mãe fosse um mal inevitável. E navegou sereno pelo resto dos dias de
navegação, subindo muitas vezes para seu turno no cesto da gávea, feliz da vida
e adorando a nova condição de marinheiro.
Então o momento
tão esperado chegou: sinais de terra começaram a aparecer: aves e sargaços,
detritos e galharias disseram a todos que logo veriam no horizonte os Brasis. E
de fato, no dia seguinte, do meio da névoa desse horizonte, surgiu uma elevação
de terra que deixou a todos na maior excitação. Mais algumas horas de navegação
e poderiam lançar ferros ao largo da costa da nova terra lusitana. Então
desceriam nos escaleres e João Ramalho cairia no mundo das terras dos brasis.
Desertaria da tripulação e haveria de começar a ganhar sua fortuna pessoal.
Mas ao invés de
navegarem placidamente rumo à costa já visível, o que aconteceu foi que os
navios foram recebidos por outra tremenda tempestade, muito mais forte do que a
que enfrentaram nos Açores. Os ventos chegaram rápidos e rápidos cresceram,
surpreendendo mesmo aos mais experientes marinheiros e comandantes. E com os
ventos vieram as nuvens carregadas e das nuvens carregadas desabou o dilúvio.
Relâmpagos e trovões iluminavam a escuridão que se fez em peno dia e as ondas
subiram agigantando-se muito mais altas que as caravelas. E justamente aquele
em que João Ramalho estava foi a única que não resistiu ao empuxo das ondas. A
caravela foi a pique e afundou às vistas da costa brasileira.
E João Ramalho
teve certeza que a praga de Catarina se cumpria. Filho desobediente e cabeçudo,
bicho da terra, o mar castiga! Ainda assim decidiu que não entregaria a carcaça
facilmente à morte. Agarrado a um pequeno pedaço de uma trave, conseguiu
manter-se boiando e foi nadando com um esforço sobre-humano em direção à costa
que avistava, iluminada pelos coriscos. Quando estava quase chegando, no
entanto, as forças se lhe esvaíram e João Ramalho aceitou o inevitável. Era o
fim. Não conseguia mais manter os olhos abertos, os músculos lhe doíam como se
tivessem agulhas por toda a extensão do corpo. João largou a trave e fez uma
última arremetida desesperada em direção à areia branca. Tarde demais, no
entanto: a exaustão dominou-o e ele começou a afundar, engolindo água e não
conseguindo mais respirar. Tudo ficou totalmente escuro.
CONTINUA
Nenhum comentário:
Postar um comentário