quinta-feira, 31 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 13a. Parte  
MILTON MACIEL  

Fim da 12a. parte:
Dizer que o marido veio me pedir isso só para agradar a mulher dele. Deve gostar muito dela. Na Europa isso jamais aconteceria. Os homens têm a mulher em muito pouca conta. Jesus, eu sou um bicho selvagem, selvagem como todos os europeus! Mas nunca mais que eu volto para aquele mundo mesquinho. Jamari tem razão: EU QUERO SER ÍNDIO!

A seu lado, os grandes seios espalhados generosamente sobre o peito e o ventre dele, a índia voltara a acarinhá-lo e a lhe sorrir, cantando suavemente. Sim, João Ramalho estava de fato no PARAÍSO! 

13.a parte: Piratininga é peixe seco. Estranhos costumes de estranhos povos
Muitos dias passou João Ramalho nesse paraíso do litoral, vivendo a boa vida, comendo do bom e do melhor, sendo o ai-Jesus das índias solteiras e casadas. Era respeitado e tratado com camaradagem evidente pelos outros homens, confirmando aquilo que Jamari lhe antecipara: “João é homem importante agora, vai ser da família de cacique Tibiriçá.” Era tratado por todos como se já fosse marido de Potira e, portanto, em termos portugueses, genro do grande chefe de Inhapuambuçu.

Durante todo esse tempo, quer com a ajuda direta e muito interessada de Jamari, quer com o seu mais do que agradável convívio com as índias, a preocupação maior de João Ramalho era aprender a falar o idioma dos indígenas. E, também, compreender um pouco da história e da geografia daquele lugar e daquelas pessoas.

Uma das primeiras coisas que aprendeu é que o grupo ou tribo de Jamari era conhecido por todos os demais indígenas da região como Guayanã.

– Os peró (que ele aprendeu que era um dos nomes dados aos portugueses como ele) nos chamam de guaianases. Guayanã quer dizer ‘manso mesmo’, quer dizer que nós não é índio selvagem que tá sempre brigando e atacando os peró. E nem os outros índio. Nós é parente dos carijó e dos Tuppin Ikin. E nós tudo é inimigo dos Tuppin Inbá. Os peró diz tupiniquim pra nós e diz tupinambá pros outro.

João Ramalho quis saber mais:

– Mas vocês são guaianases ou são tupiniquins, afinal?

– Guainás. Mas é quase que o mesmo, muito parecido, língua quase igual, corpo igual, muitos são misturado dos dois povo. Nós fica aqui e mais pra baixo, até as terra dos carijó. E nós fica também lá em cima da serra de Paranapiacaba, se espalha em terra alta e plana, até Piratininga e sobe pelo rio Paraíba.

– E o que é essa Piratininga?

– Essa é lugar de Inhapuambuçu. Pirá é peixe. Piratininga é peixe seco. Lá tem muitos rio, como Ipiranga, Tamanduateí, Tietê e eles inunda tudo, quando as água baixa, os peixe fica tudo preso, não consegue voltar pros rio. As pessoa pega os peixe tudo e põe pra secar no sol. Peixe seco. Piratininga. Lugar muito grande, muito bom de viver. Muita comida, muita caça.

– E por que você e seu pai têm aldeia aqui na praia, então?

– Aldeia na praia importante. Nós pega muito peixe que vem do mar, pega sal da água, salga peixe, seca; e depois leva tudo pra Piratininga. Muito importante. E também quando tempo de frio, aqui é mais bom, menos frio, gostoso de viver. E vem muito mais peixe e marisco do mar.

– Você quer dizer “no inverno”?

– Ah, isso aí, inverno! Esqueci o nome. É, no inverno nós pega muito mais peixe e marisco; no verão, como agora, pega menos. Mas tem muito peixe nos rio também; e tem muita caça. E as mulher planta roça de milho e de mandioca. Muita comida, muita! Muita fruta e tem mel das abelha também.  Aqui é bom lugar de se viver também. Eu gosto mais daqui do que de Piratininga. Fico muito mais tempo aqui.

– Mas você também mora lá em cima?

– Sim, todos nós. Uns fica aqui em baixo, outros vai lá pra cima. E depois troca. Vem quem quer, vai quem quer, e todo mundo vive feliz.

– Hom’essa, mas que vocês são mesmo uns folgazões, sabem viver muito bem! Que maravilha isso. Mas me diga, esse outro nome que você falou, o tal de tupinambá?

– É índio como nós, fala mesma língua, mas é nosso inimigo. E a terra deles é bem perto daqui, começa em Bertioga, passa por Iperoig, Paraty, Mancucaba, Ariró, tudo isso tem aldeia grande dos tupinambá.

– E vocês têm guerra com esses índios tupinambás?

– Sempre! A vida toda nós brigou com os tupinambá. Eles ataca nós de surpresa, nós ataca eles de surpresa. Quando tem colheita de mandioca, de milho, que é melhor pra fazer guerra.

– Mas por que razão, ora pois?

– Porque com muita mandioca e milho as mulher pode fazer muito, muito cauim. E aí nós pode beber muito, como na festa que você conheceu, pra comemorar que ganhou guerra, que fez bastante prisioneiro.

– Mas, quando vocês ganham a batalha, vocês não tomam as terras deles, as aldeias deles?

– Mas que ideia, João!!! Pra que nós quer as terra onde eles tá? Terra não é de ninguém. Hoje nós tá aqui, caça, pesca, planta. Daqui pouco tempo terra fica fraca, nós caçou muitos bicho, pescou muito peixe, ficou menos comida. Então o que nós faz? Vai-se embora, pega outra terra um pouco mais pra lá, onde tudo tá novo e abundante.

– Mas... E esta aldeia, por exemplo? Vocês abandonam tudo o que construíram?

– Claro que abandona, João. Não serve pra mais nada. Nós abandona e a aldeia vira tapera.

– Tapera?

– Sim, tapera quer dizer aldeia abandonada. João vai ver muita tapera lá em cima, de Paranapiacaba até Piratininga tem muita.
CONTINUA

segunda-feira, 28 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 12a. Parte  
MILTON MACIEL  

Fim da 11a. parte:
– Ai, Jesus! Tu me deixas tonto, ó Jamari, com tuas palavras. De fato, pelo que tenho visto, o mundo de vocês é tão melhor do que o nosso...

– É sim, João Ramalho. Deixa Jamari dar conselho pra João. Conselho de amigo. Jamari amigo de João. Potira não pode ser portuguesa como João. Mas João pode ser índio como Potira, como Jamari, como Tibiriçá.

– Que dizes tu, homem? Como assim, posso eu ser índio? Se sou branco como cera perto de vocês...

12a. parte: 
– Cera é aquela coisa de vela, não? Ora, João, não importa a cor de pele, João pode ser índio se aprende viver como índio, falar como índio, andar sem roupa como índio, caçar, pescar e lutar como índio. Isso é que importa. E a gostar da vida, gostar das pessoa, gostar de se divertir, de dançar, de brincar.

– Hom’essa, tu me deixas doidinho. Imagina-te eu um bugre! Ah, mas eu só queria ver a cara das Catarinas, se me vissem pelado como um de vocês e comendo como vocês comem. E bebendo como vocês bebem, que é um espanto!

– E quem é essa Catarinas, isso é uma mulher, não é?

– Sim, sim, ó Jamari, estás certo. Catarinas é o nome de minha mãe. Catarinas Balbode.

­Não havia porque falar da outra Catarina, de nada lhe valeria dizer que já era casado no outro lado do mundo. Ainda bem que Jamari fazia sempre uma salada dos diabos com singular e plural. Mas isso haveria de acabar. Se um amigo ia ensinar o outro a falar tupi, então a recíproca tinha que ser verdadeira: ele haveria de ensinar Jamari a falar um português muito melhor. E mais, estava decidido: ia ensinar Jamari a ler e escrever em português! Ele, João, podia não ser nenhum homem de letras, mas também não era nenhum analfabeto.

Quando falou dessa sua intenção, viu lágrimas subirem aos olhos do amigo indígena, que o abraçou da mesma forma que fora abraçado por João no dia anterior:

– Tibiriçá certo, muito certo: João Ramalho homem bom. Homem muito bom. João Ramalho amigo Jamari, Jamari amigo João Ramalho.

E os dois homens, dois jovens espécimes de dois mundos tão diferentes, deixaram-se ficar assim por um longo tempo, com os braços um sobre o ombro do outro, o que, João Ramalho aprendeu naquela hora, era um gesto universal, tão válido na Europa como nas Américas... Já tinha visto as moças abraçadas assim, tinha visto guerreiros adultos enlaçados assim. Mas raríssimas vezes tinha visto algo assim em sua terra natal.

Os dias que se seguiram forma de puro encantamento para o português. Brincou com um grande número de índias, convencendo-se enfim que não devia alimentar seus preconceitos europeus, já que nem elas, nem mesmo sua prometida Potira os tinham.

Pensou que nada mais o pudesse surpreender com aqueles gentios adoráveis, mas algo ainda mais chocante lhe aconteceu. Um dia um índio de meia idade veio lhe falar, ainda com Jamari como intérprete. João Ramalho mal pôde acreditar:

– Ele vem dizer que mulher dele quer brincar com João também.

– Com a breca! O que estás a dizer? Como é isso possível?

– O que tem de estranho, João? Ele quer agradar mulher dele. E mulher dele tem vontade de brincar com João, como as menina tudo faz. Qual é problema?

– Mas se ela é mulher casada, Jamari! Isso é adultério. É pecado!

– João segue com bobage de padre. Esse tal de adulte... essa coisa aí, não é não. Marido acha bom, mulher acha bom. Só se João não quer mulher porque acha feia, aí sim pode dizer não. Senão, ofende Pari, homem bom.

João Ramalho pensou e pensou. Enquanto isso, o índio, ouvindo uma recomendação de Jamari, saiu e foi buscar sua mulher. Ela chegou encabulada, mas foi logo passando a mão no braço e depois puxando a barba ramalhuda do rapaz. Este encarou a mulher com cuidado. Ela era mais corpulenta, um tanto barriguda, os seios grandes e caídos. Nem um pouco desejável, se comparada coma as meninas adolescentes que vinham buscá-lo todo dia para o riacho, para a rede, para o mato.

Jamari fez um sinal para João, dando a entender que ele devia dar uma resposta logo. Ramalho hesitou mais um pouco, mas achou que de fato deveria ser uma grande ofensa ao marido, além de o ser obviamente à mulher, se ele se recusasse a atender o pedido deles. Fez com a cabeça que sim e o índio deu-lhe um meio-abraço, com um sorriso de satisfação.

Então a índia se identificou como Ecira e tratou de levar João Ramalho para o mato imediatamente. O português, muito bem abastecido de mocinhas, ficou com medo de fracassar, o que lhe deu nos nervos. Imaginou que, se isso acontecesse, a ofensa poderia ser ainda mais grave, achou que sua vida corria perigo se não fosse capaz de levantar os ânimos com a índia de meia idade.

Mas, outra vez para sua surpresa, a mulher o fez deitar, puxou fora a tanga improvisada que ele usava e começou a falar e a cantar coisas muito delicadas e suaves, enquanto passava a mão suavemente pelas barbas, pelos cabelos, pelo peito e pela barriga de João Ramalho. Manteve-se assim por um longo tempo, o rapaz relaxou completamente e começou a gostar daquela mulher tão carinhosa e tão agradável. E viu que as índias tinham muito mais do que a beleza da mocidade, que eram gente de uma bondade enorme, coisa que ele nunca tinha conhecido antes.

A mulher continuava a acarinhá-lo e a acariciá-lo, era evidente que ela entendia a situação e a dificuldade de João. Não tinha pressa nenhuma, continuava com seu cantar suave e sussurrado. Então os hormônios falaram mais alto e, quando deu por si, já o beirão estava armado para a guerra e pronto para dar combate à nova companheira. E foi o combate mais suave e mais agradável de que participara naquelas terras americanas.

Findo o mesmo, durante o repouso do guerreiro, o rapaz ficou a cismar: Hom’essa! Como pode? Aos poucos ela deixou de ser feia, ficou desejável também. E me ensinou outra forma de fazer amor. Caramba, quanto ainda tenho que aprender com essa gente tão civilizada! Dizer que o marido veio me pedir isso só para agradar a mulher dele. Deve gostar muito dela. Na Europa isso jamais aconteceria. Os homens têm a mulher em muito pouca conta. Jesus, eu sou um bicho selvagem, selvagem como todos os europeus! Mas nunca mais que eu volto para aquele mundo mesquinho. Jamari tem razão: EU QUERO SER ÍNDIO!

A seu lado, os grandes seios espalhados generosamente sobre o peito e o ventre dele, a índia voltara a acarinhá-lo e a lhe sorrir, cantando suavemente. Sim, João Ramalho estava no PARAÍSO.
CONTINUA

quarta-feira, 23 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 11a. Parte    
MILTON MACIEL  

Fim da 10a. parte:
...aturdido pela bebida e encantado pelo rosto bonito de sua noiva, que revoluteava a menos de um palmo de distância do seu. Tudo começou a girar e esta foi sua última lembrança da festa do seu noivado, festa também do alegre regresso de Jamari a sua tribo.

Despertou no outro dia, chamado que foi por Jamari, que o cutucava com os dedos, sem muito resultado. Então chegaram as moças e começaram a puxar sua barba e seu cabelo. E João Ramalho descobriu que o cauim deixava uma tremenda de uma ressaca! 

11a. parte: 
Aos poucos ele foi recobrando a lucidez plena e a primeira coisa que lembrou foi que Jamari havia dito que ele, João Ramalho, era agora um homem importante, porque era o noivo de Potira. Ah, bendita indiazinha, anjo que o céu mandara para a sua vida! Bonita, sensual, corajosa, decidida... e filha do grande cacique Tibiriçá. Uma princesa!

As moças trouxeram-lhe uma cuia de mel, alguns beijus e dois tipos de frutas que ele não conhecia. Falavam muito, todas juntas, rindo e brincando entre si e com ele, puxando-lhe docemente as barbas ramalhudas. João entendeu que, se ingerisse aqueles alimentos, sua dor de cabeça iria melhorar, o que de fato aconteceu rapidamente.

Então ele, apesar de estar rodeado por mais de dez moças atraentes, sentiu falta de Potira. Falou o nome dela para as outras índias, com entonação de interrogação. Elas falaram alguma coisa que ele não entendia, mas todas apontaram lá para cima, para o que lhe pareceu o topo da serra.

– Sim eu sei que Potira é lá de cima, de Inhapuambuçu, ora. Mas eu quero saber onde ela está agora? Por que não está aqui também?

Jamari ouviu o que o português disse e explicou:

– Elas quer dizer que Potira já subiu para Inhapuambuçu, foi com pai e os outro. Todos volta pra casa hoje muito cedo, madrugada.

– O que?! – berrou João incrédulo. Então ela foi embora?! Sem se despedir de mim? Mas ela não é minha noiva?

Então uma dúvida atroz passou-lhe pela mente: Será que ela ou Tibiriçá tinham mudado de ideia? Ou então não teria sido tudo aquilo uma brincadeira somente? Não havia noivado nenhum? Perguntou isso a Jamari:

– Então ela não é mais minha noiva?

–Por que não é? Claro que é sim, João Ramalho. Ela disse, Tibiriçá disse, quando índio fala, índio cumpre.

– Mas... Mas ... ela foi embora sem me dizer uma palavra...

– João dormia mais que um tronco de jequitibá caído. Bebedeira. Nós tentou acordar João, depois Potira ficou com pena de João. Tinha que ir embora de madrugada.

– Mas por que tinha que ir embora? Justo hoje, não vai ter mais festa para Jamari?

– Sim, festa continua hoje e amanhã. Mas agora os homenm foi caçar e pescar, as mulher foi pra roça e vai preparar mais comida depois. Festa segue hoje, quando sol se põe.

– Mas, e eu?... quer dizer, como fico eu, sem Potira?

– Chefe Tibiriçá deixou recado pra João. Escuta bem: Cacique disse que espera João em Inhapuambuçu. Mas que João só pode subir serra e chegar em Piratininga quando pode falar língua de gente. Tibiriçá diz que Potira não tem que aprender falar português, mas que João Ramalho tem que aprender falar nossa língua.

– Hom’essa! Mas como é que eu vou aprender a vossa...

– Calma, João! Jamari ensina. Jamari ensina João falar tupi. E Jamari leva João pra Inhapuambuçu, pra casar com Potira, mas só quando João já sabe falar idioma de Potira e nosso.

– Com a breca, estou danado então! Vou levar anos para ver de novo minha noiva. Estou danado, estou desgraçado, ai de mim, meu Deus!

– Bobagem, João. Português homem bom, homem bom aprende depressa. Jamari bom pra ensinar, também.

– Nós podemos começar agora, então? Por favor, Jamari, tenha dó de um pobre português abandonado!

– Nós começa já, hoje mesmo. Mas João não tá abandonado. Tem amigo Jamari. Tem as menina todas.

– Mas Jamari, eu agora sou um homem comprometido, não posso mais continuar junto com as outras meninas.

– João perdeu juízo? Por que diz isso?!

– Ora, Jamari, eu sou um homem comprometido, Potira não iria gostar se eu ... ah... se eu...

– Brincasse com outras moça? Ora, mais foi Potira mesmo que mandou elas tomar conta de João. Falou com todas, uma por uma,

– Ela mandou?! Mas tomar conta como?

– Ora, cuidar de João, dar boa comida e bebida, dar pouco cauim que João é fraco, dar banho todo dia em João, brincar com João no rio, no chão, na rede, isso...

– Como dar-me-ão banho elas, criatura? Mas se elas tocam em mim, em tudo e...

– Mas como elas vai dar banho em João sem tocar tudo? E elas quer se divertir, brincar também, é direito.

– Mas não é direito que eu faça... essas coisas... com elas, no rio, no chão, na rede, se tenho minha noiva.

– João complicado. Português tudo complicado! Francês também. Branco tudo. Não toma banho, fede demais e não sabe viver. Parece que tem raiva da vida. Raiva ou medo.

– Mas, se eu tenho compromisso com uma moça, então eu não posso pegar as outras, nenhuma outra, aliás e...

– E pode não por quê? João não é casado com Potira ainda. Pode, sim.

– Mas, criatura, isso é contra os bons costumes, contra a Igreja...

– Hum, Igreja coisa muito ruim, João. No cativeiro tinha um padre que aparecia às vez. Amigo dos francês, vinha atrás de índia pra brincar com ele. As índia não queria, porque ele amigo também do português mau nosso dono. Então ele mandava segurar as índia moça e batia nelas, depois brincava. Mas brincava só ele, que elas não brincava, entende? Elas não queria, ele fazia à força. E depois vinha com as reza e queria convencer nós tudo a acreditar na Igreja dele. Meus amigo português bom tinha ódio dele, tinha um, Martim, que jurou, quando fugiu com nós tudo, que ia voltar escondido pra matar padre Alfonso.

– Céus, matar um padre! É um grande pecado. E ele fez isso?

– Acho que sim, ele voltou escondido, disse que padre fez coisa ruim com índia que ele gostava e levou ela embora com ele, pra escrava dele, comprou de português ruim. Mas eu não sei, não vi mais português bom. Sua Igreja coisa ruim também João. Padre só fala de diabo, de castigo, da tal danação, de inferno. Mas aquele padre é o próprio diabo, um Anhangá muito feio. Diz que brincar é feio, mas ele obriga índia a brincar com ele à força. Isso sim é feio. Vida assim é muito ruim, João, muito triste.

– Ai, Jesus! Tu me deixas tonto, ó Jamari, com tuas palavras. De fato, pelo que tenho visto, o mundo de vocês é tão melhor do que o nosso...

– É sim, João Ramalho. Deixa Jamari dar conselho pra João. Conselho de amigo. Jamari amigo de João. Potira não pode ser portuguesa como João. Mas João pode ser índio como Potira, como Jamari, como Tibiriçá.

– Que dizes tu, homem? Como assim, posso eu ser índio? Se sou branco como cera perto de vocês...
CONTINUA

terça-feira, 22 de julho de 2014

EL NENÚFAR BLANCO 
MILTON  MACIEL   (poesías en español)

Un día pasé por el lago…
Y me tuve que parar por un tiempo infinito.
El nenúfar se puso una flor blanca, diáfana
Que en el centro ardía como oro.
Alrededor las hojas verdes oscuras y brillantes.
Y abajo, en el agua calma y fría, el cielo en los reflejos.
Componiendo el sol el resto de un milagro de luces y colores.

Entonces me quede a mirar el nenúfar blanco
Y el, en su mudez, me habló de ti.
Y  me dijo como eras tú, tan bella y tan pura,
Tan superior, que hasta los nenúfares te amaban.
Me contó el que tu me amabas con pasión.
Me reveló que perderte fue el peor error de mi vida.

De mis ojos dos lágrimas cayeran al agua, que se crispó.
Me puse de rodillas y le respondí al nenúfar blanco:
Le dije lo grande que es mi arrepentimiento y mi dolor.
Que cuando me desperté de mi egoísmo… era tarde demás.
Que cuando te fui a buscar, te habías ido para siempre.
Que cuando me di cuenta, estaba irremediablemente solo.
Y que todo fue nada mas que culpa mía. Mea culpa

Se crispó el agua otra vez, mas lágrimas caían.
El nenúfar cerró sus pétalos, uniéndolos como en una oración.
Y entendí que oraba por mí y por my alma destrozada.
Lo hacia con la dulzura  y el puro amor de los nenúfares.
Y yo… Yo hice lo mismo con mis manos.
Las junté en oración y oré a ti.
Y te pedí perdón.
Y te dije como te amo.
Y te hable que sé que no vuelves más. Nunca más!
Y te confesé que, aún así, te voy a esperar para siempre. Todo el siempre…

El nenúfar blanco abrió entonces sus pétalos otra vez
Y de su centro de oro dos gotas se cayeron. El agua se crispó.
El nenúfar blanco lloraba mi dolor!...
Yo entonces me extendí en la orilla
Y le besé a sus pétalos uno a uno.
Y fue como si te besara!

Desde entonces vuelvo al lago todos los días.
Y los nenúfares me hablan de ti.
Y yo les hablo de ti a ellos.
Te recordamos con amor.
Te besamos en los pétalos.
Y sufrimos en paz,
En paz lloramos.
Y el agua se crispa…
Por que te amamos!

sábado, 19 de julho de 2014

DESERTOS  MEDONHOS 
MILTON MACIEL 

Os ventos alísios sopraram meus sonhos,
estéril deixaram-me a imaginação.
Tornaram só vácuo o meu coração
e meus sentimentos, desertos medonhos.

Nas trilhas de sonhos que se esboroaram,
sobraram só escolhos, retraços bisonhos
de seres vencidos de passos tristonhos,
espectros das almas que um dia se amaram.

Houve fel, deserção...
E - minha danação - 
os Numes traçaram
tal fim, pressuponho. 

sexta-feira, 18 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 10a. Parte  
MILTON MACIEL  

Fim da 9a. parte:
– Português bandido, com tudo índio inimigo nosso,  pegou Jamari e amigo. Levou Jamari pra ser escravo, lugar muito, muito longe. Jamari escravo vinte luas, corta pau-brasil, carrega pra navio, passa muita fome. Mas Jamari forte, aguenta, aprende idioma de português e até de francês, navio que levava madeira era francês. Jamari matou homem mau, libertou companheiro tudo, tudo fugiu. Jamari caminhou doze lua e Jamari voltou pra casa. Muito feliz agora. Minha mãe muito feliz. Pai muito feliz.

– Com a breca, este é mesmo o meu dia de sorte! Justo hoje me chegas aqui, ó homem, justo hoje quando eu naufrago e 

10a. parte:
quase morro e depois sou acolhido por este teu amicíssimo povo. Eu não entendo nada do que dizem, nem me  entendem eles também. Tu caíste-me do céu, ó Jamari. Será que tu me podes ajudar?

– Jamari ajuda, sim. Porque João pergunta isso?

– Porque meus patrícios fizeram-te muito mal e acho justo que agora tenhas ódio aos portugueses como eu.

Jamari soltou uma sonora gargalhada e sacudiu a cabeça para os lados, admirado, dizendo:

– Homem português mau que pegou e levou Jamari era só um. Jamari já fez justiça. Lá Jamari encontrou mais de dez português homem bom, tudo obrigado a servir homem mau. Tudo degredado. Os outro que mandava era seis homem francês, os que vendia pau-brasil pra navio. Jamari amigo dos português bom, eles ajuda Jamari a matar português ruim e todos fugir. Jamari gosta de português bom. Chefe Tibiriçá garante João Ramalho português bom, João Ramalho abaíba Potira, noivo de filha do cacique, homem importante agora. Se João Ramalho português bom, Jamari gosta João Ramalho. Jamari ajuda, ajuda sim!

João sentiu-se comover com a atitude do outro. Como é que as pessoas daquele povo podiam ser tão puras e gentis? Não resistiu e deu um abraço apertado no índio, que retribuiu o gesto à maneira que havia aprendido com seus amigos portugueses do cativeiro.

– Jamari, Jamari, tu és um anjo que Deus mandou para o meu caminho, homem. Eu juro que vou saber retribuir-te tudo o que me deres de ajuda, juro que serei teu amigo para todo o sempre.

– Ah, amigo é bom! Muito bom. Amigo coisa bom. Jamari gosta. João amigo Jamari, Jamari amigo João.

Potira chegou sorridente e tomou a mão de João Ramalho e a mão de Jamari nas suas. E disse algo que o rapaz tratou logo de traduzir para João:

– Potira parente Jamari. Jamari filho de cacique Ajuricaba, desta aldeia. Ajuricaba meio-irmão de cacique Tibiriçá. Nós é tudo parente. Se João Ramalho casa Potira, parente nosso também.

– Ora, homem, o que eu mais quero hoje é casar com tua prima Potira. Mas como e quando pode ser isso?

– Como, coisa muito fácil. Quando, Tibiriçá resolve. Potira diz que quer casar João, João diz que quer casar Potira. Diz na frente de todo a mundo da aldeia. Pronto, já tá casado os dois.

– Só isso?! Mas não tem que ter um sacerdote ou um cacique que dê permissão, uma cerimônia, coisas assim?

Outra vez Jamari sacudiu a cabeça rindo e falou:

– Isso coisa de homem branco, João. Nós não tem isso. Como, permissão? Nem cacique, nem pajé, nem ninguém é dono de vontade de pessoas. Pessoas quer casar, pronto, elas casa. É só isso. E pra acabar casamento mesma coisa. Homem diz que não quer mais. Ou mulher diz que não quer mais. Pronto. Elas não tá mais casado, pode casar de novo.

João Ramalho soltou um assobio de admiração e completou:

– Sim, senhor! E meus patrícios a dizer que nós é que somos civilizados! Tu precisas ver que enrosco complicado que é casar e divorciar em Portugal, Jamari, uma verdadeira tragédia. Que lições temos nós a aprender com vosmicês, os verdadeiros civilizados!

Ali fora onde estavam todos, a festa continuou. E ampliou-se muito. Trouxeram as comidas e as bebidas, as frutas espremidas e o cauim, que João Ramalho provou e achou muito bom.

– Arre, mas esta vossa bagaceira é muito boa! E bem, forte. De que é feita?

– Macaxera. Abati também. Mandioca. Milho, E caldo de fruta. Nossa aldeia as mulher e menina mastiga mandioca cozida, cospe no pote grande, espera um pouco, bota pra ferver de novo com água. Então espera bastante tempo, que a mistura vira cauim.

­–  Jesuis! Então isso que eu bebi passou antes pelas bocas das mulheres? Por que só das mulheres?

– Boca de homem dá cauim muito ruim, azedo, porcaria! João acha ruim que passa nas boca das mulher?

– Hom’essa, mas claro que não! Muito pior é o vinho que nós bebemos na Europa, que, para fazê-lo, homens e mulheres pisam as frutas, as uvas, em grandes tonéis cortados, pisam com os pés sujos, cheios de frieiras e muitos até de botas. Depois, bebe-se tudo com regalo.

–  Pisa com os pé sujo? Nojento!

– O que ocorre, ó Jamari, é que a fermentação limpa tudo depois. O mesmo deve acontecer com essa bagaceira de vocês, que é um vinho de mandioca ou de milho, com suco de frutas. Pois eu te digo, homem, que prefiro mil vezes uma boca de mulher a um pé sujo de homem. Vou considerar teu cauim como um beijo de mulher.

– Beijo de mulher! João Ramalho engraçado. Mas vem beber mais, pega mais cauim aqui.

Os grandes potes de cauim foram colocados nas fogueiras para amornar e distribuída foi a bebida para todos. As mulheres também bebiam, mas o faziam devagar, em pequenos goles. Para os homens, a regra era outra e Jamari a explicou ao novo amigo:

– Nós homem bebe toda a cuia de uma vez só, não pode parar. Só mulher que pára. Homem bebe tudo de uma vez.

E estendeu a nova cuia cheia de bebida para o português, que entornou o conteúdo todo de uma só vez. Ajuricaba sorriu-lhe com aprovação, Tibiriçá também. Todos esvaziaram suas cuias e tornaram a tê-las enchidas pelas mulheres. João Ramalho acompanhou-os como pôde, até que sentiu-se, subitamente, completamente bêbado.

Então chegaram os músicos com os membis, as maracas e as grandes flautas. Muitos homens tinham chocalhos amarrados nas pernas e nos braços. Quase todos começaram a dançar, marcando o ritmo com batidas fortes dos pés nos chão. As mulheres integraram-se à dança, começando a cantar, no que foram logo secundadas pelos homens. Corriam pela ocara em filas de andamento lento e ritmado, o que contagiou o mais do que alegre João Ramalho.

Potira puxou-o para dentro do grupo e o português tratou de bater os pés descalços no chão, tanto quanto faziam os outros homens. Não sabia o que cantar, mas estava de boca aberta, aturdido pela bebida e encantado pelo rosto bonito de sua noiva, que revoluteava a menos de um palmo de distância do seu. Tudo começou a girar e esta foi sua última lembrança da festa do seu noivado, festa também do alegre regresso de Jamari a sua tribo.


Despertou no outro dia, chamado que foi por Jamari, que o cutucava com os dedos, sem muito resultado. Então chegaram as moças e começaram a puxar sua barba e seu cabelo. Foi então que João Ramalho descobriu que o cauim deixava uma tremenda de uma ressaca!
CONTINUA

quinta-feira, 17 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 9a. parte  
MILTON MACIEL 

Fim da 8a. parte:
Parecia mentira para ele que tudo aquilo tivesse acontecido num intervalo de tempo de apenas algumas horas. No início da tarde a despedida da vida, a certeza da morte, o despertar no Paraíso, o encontro com as índias adolescentes que o encantaram e depois tomaram conta dele como se ele lhes pertencesse. O medo ao encontrar os outros indígenas, principalmente os homens e, entre eles, os chefes. Depois a surpresa agradável de ser recebido com tanta alegria e cordialidade.

9a. parte:
E havia o inesquecível banho de rio, as meninas passando as mãos nele como bem entendiam, o seu ‘acidente’ embaixo d’água, de que todos tomaram conhecimento, para diversão e chacota geral.

E então, quase completamente nu, fora trazido para dentro daquela grande maloca e, surpresa das surpresas, o chefe e sua filha o convidaram para ir conhecer sua aldeia lá em cima da serra, Inhapuambuçu.

E, finalmente, pelo que começava a entender, o chefe havia lhe concedido sua bela filha como namorada. Ou talvez até algo mais sério, pelos cumprimentos e alegria de todos, talvez ele estivesse em vias de arrumar um casamento com uma nativa da terra dos papagaios. E que nativa!

Se fosse isso, mais do que nunca ele tinha que aceitar sua ideia de que tinha chegado ao Paraíso, porque aquela menina era como que um anjo de beleza e formosura. E, para chegar ao Paraíso, não precisara cumprir a praga de Catarina de Balbode sua mãe, não precisara morrer! João Balbode de Maldonado, o João Ramalho da portuguesa Vouzela, tinha realizado a incrível façanha de entrar no Paraíso sem precisar morrer.

Estava vivíssimo, tão vivo que sentia uma fome brutal roer-lhe as entranhas. Interessante como não havia sentido fome durante todas as horas em que estivera com as indiazinhas. Ou, por outra, sentira com elas fome por outra coisa, que uma das meninas soube saciar para ele dentro d’água. Mas agora tudo o que o moço queria era aplicar os dentes numa daquelas carnes assadas.

E foi exatamente isso que Potira colocou em suas mãos, um enorme naco de carne de algum animal que João não conseguia identificar, mas que atacou com sofreguidão e sem modos civilizados, provocando outra onda de gargalhadas nos índios. Porém, João viu que eles riam, mas aprovavam o que fazia, pois entendiam que ele, que quase tinha morrido afogado, e que fora depois disso brincar com as meninas no riacho, devia estar agora com uma fome de desespero.

A toda hora vinham lhe oferecer um cozido de raízes, carnes e peixes extremamente sumarentos e agradáveis ao paladar. E frutas deliciosas, que ele jamais havia visto ou provado. Para o esfaimado João, aquele era o melhor banquete de que se lembrava ter participado na vida.

Aos poucos, à medida que ia aplacando sua fome e a sofreguidão com que comia, começou a entender que aquele era mesmo uma espécie de banquete. E que ocorria por causa dele, João. Ou porque fosse homenageado, como um visitante ilustre, ou porque festejavam seu namoro com a filha da terra, a encantadora filha do chefe Tibiriçá de Inhapuambuçu.

O cacique conseguiu, aos trancos e barrancos, arranhando algumas palavras em português e caprichando na gesticulação, dar-lhe a entender que ele era muito bem vindo e que seria uma honra para Inhapuambuçu recebê-lo como morador e como MARIDO de sua filha Potira!

Sim, não havia mais dúvidas, aquela era a celebração de um autêntico noivado! Hom’essa, horas atrás era um cristão a afogar-se, a morrer e a entregar a alma a Deus; horas depois, um português quase pelado, no meio de uma gente toda pelada, se empanturrando da melhor comida que podia existir no mundo e pedido em casamento por uma moça e por seu pai – um chefe indígena, uma espécie de rei local.

João olhou com ternura para Potira e imaginou que, para todos os efeitos, sendo ela filha de um rei do Brasil, rei ao menos de sua tribo, ela era uma princesa. Sua princesa Potira!

Potira lhe retribuiu o olhar como carinho e, ao mesmo tempo, uma insinuação de sensualidade intensa nos olhos. João ficou felicíssimo que tivesse protegido sua vergonha com os fundilhos de suas calças molhadas, porque senão, nesse momento, a tal vergonha, que já estava agora muito da sem-vergonha, iria dar um espetáculo do qual ele, o homem, iria morrer de vergonha. Preferiu deixar de sustentar o olhar de Potira, senão não teria mais como disfarçar seu estado de excitação.

Aquele, que quase se tornara o dia de sua morte, estava sendo, de fato, o dia se sua grande SORTE! Sentia-se feliz como nunca. Lembrou-se com gratidão e carinho do velho Maldonado, o pai que lhe proporcionara as condições de sair de Vouzela e aventurar-se no rumo dos Brasis. Tinha só 19 anos. Era casado em Portugal e estava pedido em casamento no Brasil!

 Muito que bem! Ora, era certo que nestas plagas ignotas não havia lei e ele certamente, não seria condenado por bigamia. Aliás, se pudesse, apesar de estar muito entusiasmado com a bela Potira, ele casaria com todas aquelas lindas índias que o recolheram na praia, casaria com todas elas no mesmo dia. Riu-se intimamente de sua ideia, porque logo a seguir lembrou: Caso com todas e como é que vou dar conta da matilha faminta inteira, sozinho? É. É melhor como está, é muita índia para um português só!

A festa continuou até que foi interrompida pela chegada de alguém. Ouviu vozes gritarem lá fora, estridentes:

– Jamari! Jamari! – e outras vozes a fazer-lhes eco, ainda mais entusiasmadas:

– Jamari! Jamari! Jamari!

Todo mundo correu para fora da maloca, atabalhoadamente. João Ramalho também foi e viu que todos estavam cumprimentando, e até o que lhe pareceu abraçando, um jovem índio que havia chegado de surpresa. Uma índia mais velha gritava e chorava sem parar, erguia os braços para os céus, abraçava-se com força ao rapaz. João imaginou que poderia ser a mãe do moço.

O chefe da aldeia local abriu caminho entre as pessoas e abraçou-se também ao moço, falando palavras emocionadas sem parar. O cacique Tibiriçá e Potira o acompanharam e também receberam o jovem com grande alegria. O pai de Potira falou algumas palavras para o jovem índio, apontando para João Ramalho.

Tibiriçá veio então buscar o português e levou-o até o recém-chegado, que lhe abriu um sorriso acolhedor. O cacique falou algo para o jovem índio e este, dirigindo-se ao rapaz beirão, disse palavras que deixaram João em estado de choque:

– João Ramalho. Português. Quase morreu afogado! – e o jovem índio ria divertido.

– Hom’essa!!! Tu falas meu idioma?! Mas como...

– Português bandido, com tudo índio inimigo nosso,  pegou Jamari e amigo. Levou Jamari pra ser escravo, lugar muito, muito longe. Jamari escravo vinte luas, corta pau-brasil, carrega pra navio, passa muita fome. Mas Jamari forte, aguenta, aprende idioma de português e até de francês, navio que leva madeira era francês. Jamari matou homem mau, libertou companheiro tudo, tudo fugiu. Jamari caminhou doze lua e Jamari voltou pra casa. Muito feliz agora. Mãe muito feliz. Pai muito feliz.

– Com a breca, este é mesmo o meu dia de sorte! Justo hoje me chegas aqui, ó homem, justo hoje quando eu naufrago e 
CONTINUA

terça-feira, 15 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 8a. parte
MILTON MACIEL

Fim da 7a. parte:
Potira fez a mesma coisa, apontando o dedo da mãozinha delicada para as montanhas:

– Potira Inhapuambuçu. Jaao Aramalho Inhapuambuçu?

Céus, será que ela estava perguntando se ele conhecia esse lugar lá em cima das montanhas? Impossível! Ou será – mais impossível ainda – que ela estava perguntando se ele queria ir até Inhapuambuçu?

8a. Parte:
Se dúvida havia, na mesma hora ela acabou. Pois a moça fez, com o dedo indicador e o médio da mão direita, a gesticulação típica de uma pessoa caminhando. Com o indicador da outra mão, apontou para João Ramalho. E começou a elevar a mão direita, mostrando que a pessoa agora subia e subia muito, numa longa escalada. Então os dedos retomaram o movimento na horizontal, bem acima da cabeça da moça, andaram mais um tempo e pararam. E Potira disse:

– Inhapuambuçu. Jaao Aramalho Inhapuambuçu.

Sim! Era isso, ela tinha sido muito clara: João Ramalho escalando a serra e andando lá em cima, andando bastante, num evidente planalto, até chegar ao lugar onde o chefe Tibiriçá era o cacique. E Potira, a filha do cacique, convidava João Ramalho para ir até esse lugar. Por que seria?

O coração do português disparou. Será que ela tinha gostado dele da mesma forma que ele tinha gostado dela? Será que uma coisa assim era possível entre duas criaturas tão diferentes, duas criaturas de dois mundos tão opostos? Precisava ser prudente, estava só e desarmado no meio de centenas de gentios selvagens.

Mas o que aquelas criaturas gentis e sorridentes, tão hospitaleiras, podiam ter de selvagens? Elas, que o tinham recebido com a maior simpatia e liberalidade, mostrando-se genuinamente contentes com sua presença, exceção feita, até agora, unicamente ao mau cheiro de suas roupas e botas. Mais selvagens seriam os seus patrícios das caravelas, que contavam apresar vários desses índios para fazê-los trabalhar como escravos!

Mas, ainda assim, precisava ser prudente, não conhecia nada sobre os costumes dessa gente e o pai da moça poderia proibir que ele subisse a serra como ela sugerira a João. E, se ele se mostrasse muito interessado em ir, o cacique poderia tomar aquilo como uma ousadia, uma afronta, sabe-se lá o que!

Mas a surpresa do rapaz tornou-se ainda maior quando o próprio chefe repetiu os gestos da filha e falou em seu limitado português:

– João vai Inhapuambuçu. Lá. Potira gosta João. João gosta Potira? Potira aisó. Potira formosa.

O português apressou-se a responder, tentando simplificar as palavras:

– João gosta Potira. Potira formosa. João vai Inhapuambuçu. Gosta de Potira. Gosta muito de Potira. Potira aisó! – e essa era a sua primeira palavra intencionalmente pronunciada em idioma tupi.

O chefe Tibiriçá sorriu, fez um gesto de assentimento com a cabeça, e falou bem alto, dirigindo-se agora a todos os presentes:

– João abaíba Potira. Abaíba.

A moça sorriu e movimentou a cabeça fazendo um sim mais do que entusiasmado. E todos os índios ali presentes se aproximaram imediatamente dela e de João Ramalho e passaram a tocar nos braços deles, sorridentes. Era evidente que os cumprimentavam. 

Abaíba? O que significaria aquela palavra? João Ramalho ainda não sabia, mas descobriria em seguida: abaíba queria dizer NOIVO, namorado prometido de casamento.

Enquanto ainda eram rodeados pelas pessoas que os cumprimentavam, o português viu que várias mulheres entravam na grande oca, trazendo diversos tipos diferentes de comidas, frutas, carnes e peixes assados. Na mesma hora sentiu-se explodir de júbilo e de fome. De fato, desde o almoço no navio, nada mais havia entrado em seu estômago, exceto uma quantidade imensa de água do mar, quando começou a se afogar.

Parecia mentira para ele que tudo aquilo tivesse acontecido num intervalo de tempo de apenas algumas horas. No início da tarde a despedida da vida, a certeza da morte, o despertar no Paraíso, o encontro com as índias adolescentes que o encantaram e depois tomaram conta dele como se ele lhes pertencesse. O medo ao encontrar os outros indígenas, principalmente os homens e, entre eles, os chefes. Depois a surpresa agradável de ser recebido com tanta alegria e cordialidade.
CONTINUA

segunda-feira, 14 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 7a. parte  
MILTON MACIEL  

Fim da 6a. parte:
Potira! Então esse era o nome daquela indiazinha tão linda, pensou João Ramalho. E perguntou, apontando o indicador para ela:

– Potira?

A menina apontou para o espaço entre seus belos seios e confirmou: Potira. E, apontando para o português, falou: Jaao Aramalho. E repetiu várias vezes:

– Potira, Jaao Aramalho. Potira, Jaao Aramalho.

7a. parte: 
João Ramalho sentia-se estranhamente perturbado na presença daquela moça, mais do que de qualquer uma das outras. Era como se ela fosse diferente das demais, houvesse nela algo que o rapaz não conseguia definir – a não ser com a palavra diferente.

Potira era diferente das outras. Não que fosse mais bonita, porque quase todas elas eram muito belas, para João Ramalho. Potira também o era. Mas havia algo nesse diferente... algo que se impunha de uma forma natural, espontânea. Impunha-se para ele e para as outras moças também, porque era evidente que as outras a consideravam uma espécie de líder.

A menina fez sinal para que ambos saíssem da água e João o fez em silêncio, nadando e depois andando atrás dela. Demorou-se um pouco a tentar colocar algum pano preso à cintura, de forma a cobrir suas vergonhas. Potira sacudiu a cabeça negativamente, levou os dedos às narinas, como quem diz: Não traga essas coisas fedorentas, jogue-as fora!

Mas João Ramalho ajeitou-se como pôde, amarrou as pernas da calça ao redor da cintura e deixou o resto dela cobrir-lhe o que queria esconder. O resto de suas roupas e as botas, levava-as apertadas contra o peito, como se estivesse apavorado de medo de perdê-las ou ter que abandoná-las.

Quando entraram de volta na taba, todos os índios e índias começaram a rir da estranha indumentária do português. Uma das moças contava algo para todos, algo que fazia com que todos explodissem em novas gargalhadas. João viu que era a moça do sinal de algo grande inicialmente e que havia diminuído rapidamente. Ela refazia os mesmos movimentos, primeiro como se apertasse algo numa mão e o movesse para a frente e para trás, depois colocava as mãos abertas a um palmo uma da outra e, morrendo de rir, aproximava-as rapidamente uma da outra, até à distância de um polegar estendido.

João Ramalho sentiu-se enrubescer mais do que nunca. Raios, era motivo de chacota geral! Como é que aquela menina não tinha vergonha de contar o que fizera e o que acontecera com ele a seguir? Procurou pelos olhos de Potira, como a dirigir-lhe um verdadeiro pedido de socorro. A moça pareceu ter entendido, pois fez-lhe sinal que se aproximasse dela e a seguisse. E levou-o para dentro de uma grande oca, onde estavam os homens de mais importância, inclusive os dois que o rapaz tinha percebido serem os chefes.

O cacique Tibiriçá, aquele que entendia e falava algumas palavras de português, passou o braço ao redor dos ombros de Potira e falou para Ramalho, todo contente:

– Potira aisó. Potira aiyra Tibiriçá. Aiyra.

O rapaz estremeceu. A moça devia ser mulher do cacique, precisava esquecer seu interesse por ela urgentemente! Mas Tibiriçá continuou falando e fazendo gestos. Apontou para a menina, levou a mão espalmada para baixo à altura do joelho e Ramalho entendeu que ele lhe falava de Potira criança. Depois fez um gesto de quem pega um bebê no colo e apontou novamente para a moça. E repetiu:

– Potira aiyra Tibiriçá. Aiyra. Aiyra.

João Ramalho teve um lampejo de esperança e arriscou uma palavra:

– Filha? Potira filha Tibiriçá?

Para sua surpresa o chefe fez que sim com a cabeça, reconheceu a palavra que não lembrava e falou em português:

– Sim, filha meu. Filha, aiyra. Filha Tibiriçá.

E, num gesto de evidente orgulho, acrescentou:

– Potira aisó. Aisó. Formosa. Potira, formosa.

– Sim, Potira muito formosa – concordou Ramalho.

A moça sorriu-lhe com evidente satisfação. O chefe continuou:

– Tibiriçá cacique Inhapuambuçu.

E, apontando para cima dos contrafortes das montanhas escassamente delineados na noite de lua crescente, disse em português:

– Lá. Inhapuambuçu, lá – e apontava para cima.

Potira fez a mesma coisa, apontando o dedo da mãozinha delicada para as montanhas:

– Potira Inhapuambuçu. Jaao Aramalho Inhapuambuçu?

Céus, será que ela estava perguntando se ele conhecia esse lugar lá em cima das montanhas? Impossível. Ou será – mais impossível ainda – que ela estava perguntando se ele queria ir até Inhapuambuçu?
CONTINUA

quinta-feira, 10 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 6a. parte  
MILTON MACIEL

Fim da 5a. parte:
Era evidente que aquelas moças queriam que ele tirasse a roupa e, como apontavam para a água, entendeu que elas queriam que ele tomasse banho. Tentou se esquivar, mas a moças eram muitas e, embora não entendo muito bem de roupas, coisa de brancos, acabaram por arrancar-lhe peça por peça, a começar pelas botas ainda encharcadas de água do mar.

Quando a última peça, a mais íntima, foi arrancada, João tentou esconder o que ele aprendera em Portugal a chamar de “suas vergonhas”. Mas as indiazinhas foram implacáveis. Puxaram-lhe as mãos e os braços e o português foi obrigado a exibir-se em estado de fogosa excitação sexual.

6a. parte:
As meninas caíram na gargalhada, achando muito engraçado que um homem tivesse vergonha de aparecer como a natureza manda. Esses brancos eram mesmo muito estranhos, além de muito sujos e mal-cheirosos!

A moça líder fez um novo sinal e todas as outras cercaram João e o empurraram para dentro do riacho, jogando-o do barranco na parte mais funda. Ele sentiu com agrado a água um pouco fria no corpo e começou a nadar, para exibir-se para as garotas. Mas quando olhou para elas na margem, viu que todas tinham pulado n’água também. E descobriu que o nado delas era muito melhor do que o dele!

Nadaram todas em sua direção, cercaram-no e começaram a passar a mão por todo o seu corpo, não se limitavam mais somente à barba e aos cabelos crespos e desgrenhados. Sentiu que várias delas o pegavam “lá” e riam, falavam algo umas para as outras, morriam de rir.

Ao mesmo tempo, elas o esfregavam com força, umas duas ou três tinham umas espécies de pedras lisas na mão e passavam as pedras pelo corpo dele, com se aquilo fosse um sabão. Não faziam cerimônia, mãos e pedras passavam por todo e qualquer ponto do seu corpo.

Então o estado de excitação do rapaz chegou ao máximo que ele podia aguentar e o inevitável aconteceu. Ainda bem que ele estava dentro d’água! Uma das índias que o manipulavam lá, percebeu o fato e relatou isso às outras, rindo à solta gargalhada. E fazendo um sinal, aproximando as mãos uma da outra, como a mostrar que algo maior de repente ficara pequeno. Todas riram muito e João Ramalho não sabia o que fazer, morto de vergonha.

Mas isso durou pouco, por que a mocinha líder nadou para fora d’água, e, pegando as roupas do rapaz, jogou-as todas dentro do rio. E correu para lavar bem as mãos. Era evidente o nojo que sentia daquelas peças mal-cheirosas.

João Ramalho entrou em pânico, aquelas eram as únicas roupas que ele tinha, se as perdesse, como iria cobrir suas vergonhas? E como iria se proteger do frio? Não era como aqueles bugres, não estava acostumado a andar pelado. Nadou espavorido em direção a elas, conseguindo pegá-las antes que afundassem. Mas um dos pés da bota encheu-se logo e afundou. Com a noite já caía, era-lhe impossível encontrá-lo. Se fosse mergulhar e tatear o fundo em busca da bota, perderia o resto de suas peças de roupa.

As indiazinhas continuavam a rir e caçoar dele. Que maçada! Agora aquilo não tinha mais graça, como é que iria caminhar com os pés desprotegidos sobre aqueles chãos de mato, certamente cheios de espinhos? Agarrou com força suas roupas e a bota que sobrou, apertando-as contra o peito, enquanto olhava com tristeza em direção ao fundo  do riacho e, ao mesmo tempo, manobrava o outro braço e as pernas para lograr manter-se flutuando.

Nesse momento a indiazinha que havia arremessado as roupas na água recuou alguns passos, correu e deu um salto verdadeiramente espetacular, caído ao lado dele, mergulhando e desaparecendo totalmente na água agora escura. Em menos de um minuto estava de volta, trazendo na mão a bota naufragada. Empurrou-a contra o peito de João, que a tomou agradecido. A mocinha tornou a levar várias vezes os dedos às narinas, deixando bem claro por que razão ela havia arremessado aquela tralha fedegosa ao rio. Certamente contava com livrar-se dela para sempre e não esperava que o português ficasse tão triste com a perda da bota.

Afinal, para que ele queria usar aquelas coisas que só faziam mal ao corpo e acumulavam sujeira e mau cheiro? Todos os brancos eram assim, usavam aqueles panos e couros dias e dias sem os tirar, eram imundos, não tomavam banho nem mesmo uma única vez por dia que fosse. Por isso todos eles cheiravam assim tão mal. Com o jovem de aramalho na cara era a mesma coisa. Tinha caído no mar, quase morrido afogado, e mesmo assim suas vestimentas e botas ainda tinham aquele cheiro horrível de inhaca.

Mas o que a deixava ainda mais admirada era que os brancos usassem aquelas coisas sobre o corpo para esconder uma parte dele, mesmo quando estavam passando o maior calor. Eles tinham vergonha de mostrar justo a parte mais gostosa, a parte de se divertir, de sentir coisa boa, de brincar na rede, no chão, dentro d’água, tão gostoso! Por que eles tinham vergonha disso? Gente esquisita, não sabiam brincar...

Todas as índias começaram a sair da água, só João Ramalho e aquela moça ainda estavam lá dentro, movimentando-se para flutuar. As meninas chamaram:

–Potira! Potira! – e fizeram-lhe sinal que deviam ir embora, a noite já estava ficando muito escura.

Potira! Então esse era o nome daquela indiazinha tão linda, pensou João Ramalho. E perguntou, apontando o indicador para ela:

– Potira?

A menina apontou para o espaço entre seus belos seios e confirmou: Potira. E, apontando para o português, falou: Jaao Aramalho. E repetiu várias vezes, alternando a indicação com o dedo:

Potira, Jaao Aramalho. Potira, Jaao Aramalho.
CONTINUA