quarta-feira, 31 de julho de 2013

Os Dois Guris - 4a. parte - FINAL

OS DOIS GURIS - 4a. parte - FINAL
MILTON MACIEL

O facão de Tonhão desceu com velocidade impressionante em direção ao pescoço do negro. E o atacante gritou, triunfante:

– Lo dególo!

Mas o facão passou pelo nada, o negro grande e barrigudo, no último momento, tinha pulado para direita, já abaixado. Tonhão golpeou com tanta força, da direita e do alto, para a esquerda e para baixo, que se desequilibrou, fazendo um giro de meia-volta. No mesmo instante sentiu o primeiro planchaço.

O negro batia nas costas dele com a facão de chapa, um, dois, três golpes, sem usar a ponta da arma. Era a desmoralização total: ele atacava de ponta e de corte, para matar e degolar, o outro contra-atacava de planchaço, para não matar, só debochando dele. De costas como ele tinha ficado, era só o negro enfiar-lhe o facão entre as costelas e ele era um homem morto. Bueno, sorte dele e azar do negro que o desgraçado fosse se meter a debochado. Pois agora ele ia ver.

Virou-se rapidamente e viu que o negro estava de novo parado, imóvel, com o facão na mão abaixada ao lado do corpo. Mas desta vez o bandido olhou por um momento nos olhos do negro. E o que ele viu não era deboche. Os olhos do outro homem eram agora de uma frieza mortal. E ele falou:

– Vem, seu porquera. Vem de novo, que eu vô te ensiná a última lição!

Tonhão compreendeu que agora era tudo ou nada. Aquele negro não era um qualquer. Dava para ver agora que também ele sabia muito bem como pelear de facão. Por isso não podia errar o seu bote. Desistiu de atacar no pescoço e visou a barriga grande e estufada do negro alto. O diabo era mais alto que ele pra mais de palmo. Por isso mesmo, calculou num segundo onde tinha que enfiar a ponta do facão na barriga e atacou de repente, dando um único grito:

– Morre!

Mas o negro veio do nada com aquele facão de baixo para cima e aparou o golpe, lâmina com lâmina, fazendo saltar chispas pelo ar. E o homem tinha tanta força, que, ao erguer o facão de Tonhão para cima, ergueu junto o braço e os pés do bandido, que chegaram a desgrudar um pouco do chão.

Qualquer outro homem menos forte teria largado o facão, que seria arremessado metros de distancia para cima e para o lado. Mas Tonhão segurou firme o cabo. Foi seu erro.

Seu braço subiu com o facão e ele apresentou o peito para o negro. Que, num gesto inacreditavelmente rápido, baixou e recuou o braço e, a seguir, levou-o para frente como uma mola, bem à altura do peito do outro. Todos viram quando a ponta do facão apareceu, um pouco avermelhada, nas costas de Tonhão Dureza.

O melhor facão do Rio Grande caiu de joelhos, com os olhos arregalados, as duas mãos pegando o facão do negro pelo cabo, que sobressaía de seu peito. Tentou puxá-lo para fora, mas não teve forças para tanto. Quis falar um desaforo para o negro, que estava de pé em frente a ele, de braços cruzados, mas alguma coisa líquida encheu a sua garganta e a voz não saiu mais.

Fazendo força, o bandido conseguiu se firmar sobre os pés e começou a levantar. Era impressionante ver aquele homem grande, todo ele um lanho só avermelhado, com aquele facão enorme atravessado no corpo. Mas ele não terminou de levantar. Caiu desequilibrado para trás e ficou deitado no chão. Todos viram que o facão oscilava para cima e para baixo, cada vez mais devagar. Depois parou completamente. Tonhão ficou imóvel, de olhos arregalados olhando a nuvens. O chefe de estação decretou:

– Tá morto o infeliz. O diabo veio buscá mais uma alma. E agora, o que vamo fazê com ele?

– Ora, dá parte pra polícia é que nós não vamo – falou, experiente, o chefe de trem – É melhor vocês levarem esse maldito pro mato, enterrem bem fundo pra não aparecê de novo como assombração. Você não concordam?

Todo mundo falou que sim. Dali a pouco todos começaram a aplaudir Seu Artur. É que os dois piás tinham pulado da charrete em cima do negro e ele agora segurava cada um sentado em um de seus braços enormes, no colo. Na charrete, a menina chorava de susto, de medo de sangue e de alívio. Parecia milagre de Deus, estava livre, não ia ter que se abrir para aquele monstro!

O Menorzinho passou os dois braços ao redor do pescoço largo e suado do negro e começou a beijar as gordas bochechas bonachonas. Seu Artur era de novo a figura tranqüila, quase maternal, de sempre, o ídolo da molecada da fazenda e do Vacaiquá inteiro.

O chefe de estação mandou dois funcionários pegarem o carrinho de mão, amontoarem ali dentro Tonhão Dureza – com facão e tudo, que o negro não quis mais saber dele. Levaram duas pás e tomaram o rumo do capão de sina-sinas, ao redor da Sanga Funda.

– Não deixem marca, espalhem terra e pasto por cima de tudo, não quero sabê onde botaram esse monte de estrume. E depois vocês me voltem aqui, pra lavá toda essa sangüera aqui da frente.

O chefe de trem apertou a mão de Seu Artur, depois que os moleques correram para cima da charrete, para confortar a menina.

– Sim senhor, Seu Artur. Bem que corria um zum-zum por aqui que o senhor tinha sido soldado na revolução de 23. Pois agora todo mundo viu que é verdade. 

O negro soltou sua risada bonachona:

– Que soldado, que nada, seu Xavier! Um peleei em duas revolução, mas sempre contra o governo, contra os soldado. Muito deles acabaram que nem esse maula aí, na ponta do meu facão ou da minha lança. Mas isso é cosa passada, é cosa feia, eu nunca mais quis sabê de violência e de morte. Mas esse bandido, dizendo que ia fazê mal pras minhas criança, não me deixô outra saída. Olhe, vô le dizê, Seu Xavier, faz para mais de trinta ano que não sei o que é matá um homem. Mas, se Deus quis assim... Bueno, paciência. Se tive que respondê inquérito...

– Que inquérito, que nada, homem! Se tivesse, tu tem aqui mais de 30 testemunha pronta pra jurá que o bandido te atacô pelas costa e que tu só te defendeste. A começá por mim. Mas fica sossegado, tchê. Chegando a Dom Pedrito, vou procurá o sargento Melcíades, que acontece de ser meu cunhado. Conto tudo pra ele e ele providencia que a polícia civil nem se meta no caso. Pode considerá o teu caso mais arquivado que o corpo daquele desgraçado.

– Bueno, Seu Xavier, sendo assim eu le sô mui grato. E agora preciso ir andando, que a gurizada deve de tá loca pra chegá na fazenda e se retoçá com os petiço deles e com as brincadera toda. Isso sem falá que a dona Mimosa tá esperando eles com tudo que é tipo de doce que ela sabe fazê. Entonces vô saindo, buenas, até mais ver, E, otra vez, grácias por tudo.

O chefe de estação interveio:

– Mas bah, tchê, tu não tem que agradecê nada. Nós é que temo que te dizê obrigado porque tu nos livrô desse encrequero. E tu é um herói, tchê, tu salvô solito três criança. Tu vai é entrá pra história de Vacaiquá, de Dom Pedrito.

E, ante essas palavras do chefe de estação, ouvidas por todo mundo, uma nova onda de aplausos partiu dos passageiros ali reunidos.

O negro subiu na charrete, fez sinal com a boca para os cavalos e estes começaram a trotar suavemente pela estrada de terra. Ali em cima uma Angélica finalmente alegre ria e conversava com os dois guris. E se desmanchava em agradecimentos a eles, chamando os dois de grandes heróis, contando para Seu Artur tudo o que os dois endiabrados tinham craneado e feito contra o bandido que a levava à força para ser mulher dele.

Os dois guris não podiam estar mais orgulhosos. Alguma dúvida de que eram machos gaúchos? Alguma dúvida de que tinham coragem pra dar e vender, pra enfrentar criminoso ladrão de diligência? Dez e oito anos! Não eram mais crianças, era homens feitos, machos barbaridade!

Quando a charrete chegou à fazenda, já havia um ajuntamento de gente esperando por ela na porteira. É que Lair Vesgo, um peão da fazenda vizinha, tinha assistido tudo, estava na estação esperando por uma carta que não veio. E antes que Artur tocasse a charrete da frente da estação, já o vesgo tinha partido a todo galope e chegara à fazenda dos vizinhos mais de dez minutos antes da chegada da charrete. Todos já sabiam da briga, do feito de Artur, todos por ali já conheciam de nome o tal bandido Dureza. Estavam orgulhosíssimos de seu peão, o heróico Artur Coelho.

Dona Mimosa, feliz demais com o relato que seus sobrinhos estavam chegando e que não precisaria temer pela segurança deles. Por que seria, no entanto, que o bandido quis matar as crianças? E quem era a tal mocinha que vinha com eles na charrete?

Quando chegaram, os três homens foram recebidos com efusão. Artur, cumprimentado por todos como herói, foi logo contando que heróis mesmo eram os meninos de Livramento, eles é que tinham enfrentado o bandido sozinhos, eles é que tinham resgatado a menina que o safado levava a pulso para ser mulher dele.

Os quatro filhos de Doma Mimosa, que tinham de 18 a 25 anos, estavam interessados era na loirinha bonita. Quando todos souberam da história da garota, se assanharam ainda mais. Mas a mãe deles foi calmamente até à charrete e pegou o chicote de ponta avermelhada de Seu Artur. Brandiu-o uma vez no ar com destreza e falou:

– Olha aqui o que espera qualquer um, filho meu ou não, que se meter a desrespeitar essa menina. Entra no chicote! E vou ser eu mesma a dar surra primeiro. Depois ainda peço pro Artur terminar de sovar o desgraçado. Tudo mundo entendeu bem? 

Ô, se tinham entendido! E a madrinha do Menorzinho continuou:

– Venha, minha filha, esta casa é sua. Eu não vou consentir que você volte para um pai monstruoso, que jogou você num carteado e entregou você para um bandido. Você fica aqui comigo até o dia que não quiser mais. Eu vou tratar você como uma filha e os meus filhos vão ter que tratar você como uma irmã.

 F I M 

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