sábado, 27 de julho de 2013

OS DOIS GURIS

OS DOIS GURIS
MILTON MACIEL

Esta é a saga de dois piás heróicos e de um negro mui grande – de porte e de coração – que acontece dentro de um trem, puxado a maria-fumaça, lá pela fronteira do Rio Grande com o Uruguai. E que culmina em eventos tais na pequena estação, que encheram a memória do povo, a ponto de não serem esquecidos nunca mais. Tanto que aqui estou eu, contando o causo mais uma vez. Bueno, chega de prosa e vamos começar:

Na estação de trem da Santana do Livramento, uma cidade brasileira a bem dizer no Uruguai, a azáfama era intensa. Carregadores com malas e sacos enormes, passageiros retardatários, piás com recados, parentes apinhados nas portas de embarque, agarrados pelas mãos com os que já estavam sentados dentro dos vagões... uma balbúrdia! Corriam soltos os três idiomas oficiais locais: alguém falava em português, a resposta vinha em espanhol, os menos estudados hablavam o portunhol mesmo. E todo mudo entendia todo mundo.

A única coisa que incomodava os dois guris era a choradeira das mulheres.

– Mulher é bicho flocho! (= frouxo) – exclamou com desdém o Maiorzinho, que já tinha 10 anos.

– Home que é macho não chora! Mas mulher é bicho flocho mesmo – ressoou o Menorzinho, que ainda tinha que fazer 8 anos, mas já era aprendiz dedicado das lições do machismo álacre da fronteira.

Na verdade, o que os incomodava era a choradeira da mãe deles, lá do lado de fora do trem. Nem bem chegaram à estação e viram o trem parado, saíram correndo em carreira desabalada, deixando a mãe e as duas malinhas para trás. Pularam na plataforma do primeiro vagão onde viram gente embarcando e entraram igualmente correndo, esbarrando em meio mundo que atrapalhava seu caminho.

– Ô, guri infeliz, quase me derruba!

– Moleque é coisa do diabo mesmo!  Olha os pé dos otro, desgraçado!

Mas os dois guris não deram bola pra ninguém. Descobriram logo que podiam passar de um vagão para outro e estenderem incontinenti sua marcha exploratória pelos corredores dos vagões normais, pelos estreitos passadiços dos carros-dormitório, sempre aos encontrões com os passageiros cheios de bagagens, procurando aflitos seus lugares. O que os piás queriam era chegar na locomotiva, que os encantava e entusiasmava.

– Vamo, tchê, corre! A máquina é pra este lado, anda!

Mas não chegaram lá coisa nenhuma! De repente uma voz adulta e cheia de autoridade se fez ouvir. Vinha de um homem alto e magro, vestido de paletó e calça azul-marinhos e com um quepe especial da mesma cor na cabeça. Era o chefe de trem:

– Onde vocês pensam que vão, seus piás de bosta? Podem voltá, que o lugar de vocês é no vagão número três. E a pobre da Donha Maria tá correndo que nem loca lá fora, campeando vocês, seus porquera. Vamo, dá meia volta já.

Como notasse a imobilidade recalcitrante dos piás, o chefe usou de sua larga experiência para resolver casos assim, que podiam ser tudo, menos incomuns no seu trem. Catou cada moleque por uma orelha, que apertou forte entre o indicador e o polegar de cada uma de suas mãos ossudas, e começou a tangê-los através dos vagões. As antigas vítimas de esbarrões e pisoteadas nos pés, agora já calmamente sentadas em seus bancos, os viram passar pelos corredores e receberam-nos com uma acolhida a caráter, com xingamentos e um monte de “bem-feito!” e outros que tais.

– Isso, Seu Xavier, mostra pra esses piás o que é respeito!

Os guris, fulos de raiva e de vergonha, as orelhas ardendo, não tendo como se desvencilhar das tenazes de ferro do velho Xavier. Que só se afrouxaram quando ele os fez sentar à força no banco número 16 do vagão três. No caminho viram que a mãe os acompanhava do lado de fora, com as duas malinhas nas mãos. Quando foram obrigados a sentar, pela janela aberta tiveram que ouvir a ladainha de Donha (Doña = Dona) Maria:

– Por que que vocês fazem isso com a pobre da mãe de vocês? Vocês querem me matar do coração? Vocês não têm sentimento, não vêm que mãe tá chorando de saudade desde agora, que vocês vão ficar longe da mãe três meses lá na fazenda?

Os guris só se olhavam, impacientes com aquilo, mortos de vergonha de serem tratados como criancinhas, ele que já eram uns homens feitos de oito e dez anos, todo mundo dentro e fora do vagão vendo e ouvindo aquela barbaridade. E o diabo daquele trem que não saía do lugar, para livrar os dois daquela vergonheira!

De repente veio o apito salvador. A locomotiva resfolegou seu grito de guerra, o chefe de estação usou seu apito fininho em três longos silvos, logo secundados pelos do chefe de trem, que fez o mesmo.

– Desafasta, que o trem vai saí! ­– ralhou o chefe de estação com os que estavam do lado de fora, muito juntos dos vagões.

– Me solta, mãe, que o bicho já vai – reclamou o Menorzinho, puxando o braço de dentro das mãos aflitas da mãe chorosa.

O Maiorzinho, nessa hora, no auge da excitação, não se aguentou e começou a pular em cima do banco de madeira. A locomotiva deu o primeiro puxão para a frente, o vagão tremelicou e o Maiorzinho foi se estabacar de encontro ao encosto do banco da frente. Doeu, mas macho que é macho não chora! E, além do mais, tinha que fazer parar a risada impertinente do Menorzinho, que apontava para ele e ria. Soltou-lhe um tapa na orelha do puxão, que ficou mais avermelhada ainda.

Doeu, mas homem que é macho não chora! E, além do mais, tinha que aproveitar a maravilha daquele momento da partida. Continuou rindo do irmão que, dor já passada, caiu na gargalhada também. O trem começava a ganhar velocidade, as pessoas e a estação começaram a andar para trás. Os moleques ajoelharam no banco e viram, sobre o encosto, que a mãe ia ficando pequeninha, acenando com o lenço braço na mão. Pronto, estavam livres, a aventura ia começar!

Era a primeira viagem de trem da vida deles. Era também a primeira vez que se separavam da mãe. As duas coisas os deixavam quase loucos de tanto entusiasmo. Iam andar de trem e, ainda por cima, iam poder provar que eram homens feitos, machos de verdade, sem medo de largar das saias da mãe, capazes de sobreviver perfeitamente longe da proteção segura do pai.

Incharam de orgulho, olharam sorridentes para os outros passageiros nos bancos atrás do deles, deviam de estar todos admirados com a proeza daqueles dois guris valentes. Uns turunas! O Menorzinho não se aguentou e gritou para todos ouvirem:

– A gente tá acostumado a viajá sozinho, tchê!

Os passageiros de trás menearam a cabeça para os lados. Duas mulheres riram. Não acreditavam, os desgraçados!

Os dois piás, contrafeitos, sentaram no banco pela primeira vez. A viagem ia ser longa, coisa de três horas, lhes haviam falado em casa. Iriam no trem para Dom Pedrito, mas desceriam bem antes, na estação da Música, que ficava em Vacaiquá, por onde se espalhava a fazenda da tia Mimosa, irmã do pai e madrinha do Menorzinho, que já era viúva por esse tempo. Tocava a fazenda de criação de gado de corte com a ajuda dos quatro filhos rapazes.

Para dois guris afogueados nessa idade, três horas e uma era geológica inteira são a mesma coisa. O que iam fazer para passar essa eternidade de tempo? Inventaram de tudo um pouco. Começaram  por ajoelhar no assento de novo, voltados para os passageiros de trás e começaram a fazer caretas, usando as duas mãos sobre o rosto para ajudar, repuxando o nariz, os lábios, dobrando as orelhas, arregalando os olhos. E morrendo de rir da cara dos outros o tempo inteiro. Rendeu um bom tempo de distração para eles aquela legítima palhaçada, até que, de repente, um velho lá no fundo pareceu se encher com aquilo, levantou do banco, remexeu em algo que tinha ali embaixo e se ergueu com um enorme facão dentro da bainha. Olhou feio para os guris, agitou o facão em direção a eles e as caretas logo se fizeram reais, sem auxílio das mãos, eram caras de puro cagaço.

Os moleques sentaram no banco, de olhos arregalados, esperando para correr na hora que o velho do facão chegasse neles. Mas não aconteceu nada. Continuaram quietos, quase petrificados, por um longo tempo, tão longo que, quando o Maiorzinho teve coragem de espiar para trás outra vez, o velho já dormia a sono alto, roncando refestelado no seu banco. O facão dormia no colo dele, o que para os piás era aviso claro que a brincadeira das caretas e das gargalhadas tinha mesmo acabado de vez.

Passaram então a se ocupar com espiar e tentar adivinhar o que os passageiros do vagão traziam em suas canastras. Essas eram umas cestas de vime e palha típicas da região. Eram de secção retangular, tinham uns dois palmos de fundura e duas tampas inclinadas em cima, que se abriam para fora. Quase todos por ali viajavam com canastras, fora as malas; e as sacolas e sacos grandes de pano. As canastras deixavam antever, pela sua trama aberta, o que havia lá dentro. Então os piás levantaram do banco e passaram a inspecionar canastra por canastra que viam no chão, geralmente embaixo dos bancos. E faziam apostas:

– Eu digo que é goiabada. E aquilo pra mim é charque.

– Esse aqui tem uma garrafa, só pode sê de canha. (= cana = cachaça)

– Olha, umas gajetas das grandes (gajeta = galletas = bolachas grandes)

– Essa aqui tá tudo embrulhado, não dá pra sabê

– Vai vê é uns mijado de guri, ela tem um piá grudado nos peito, mamando nela.

E assim foram matando o tempo infinito da viagem, sem jamais pararem. Depois resolveram ousar de novo a incursão à frente do trem. Entravam no vagão seguinte, olhavam com cuidado se o chefe de trem não estava por ali e atravessavam o vagão rapidamente. No terceiro, encontraram algo que os fascinou e os fez esquecer da locomotiva: era o carro-restaurante!

Havia algumas mesinhas presas ao chão, cadeiras idem-idem, algumas poucas pessoas sentadas comendo e/ou bebendo. Havia um balcão cheio de guloseimas e os moleques ficaram ali namorando os bombons e balas. O rapaz que atendia piscou o olho e escorregou, escondido, duas balas de leite para eles, que agradeceram e foram sentar a uma das mesas, para abri-las e come-las bem devagar, para durar mais a sensação.

– Olha – disse o Menorzinho – esses vidrinho engraçado. Está escrito pimenta, sal e vinagre. Prá botá na comida.

O Maiorzinho apanhou um quarto vidrinho e experimentou a tampa, que se soltou. O conteúdo vazou um pouco sobre a toalha branca. Limpando os dedos na mesma, o menino falou:

– Xi, tchê, é azeite! Vamos s’imbora logo, antes que o moço veja o que eu fiz.

E correram de volta para o seu vagão, voltando a sentar no mesmo banco 16. Ficaram quietos outra vez.

O trem parou em outra  estação. Os moleques se assanharam de novo. Descia um ou outro passageiro, muitos mais subiam e aí os meninos voltavam às apostas:

– Eu digo que entra mais homem que mulher

– Pois eu digo que vai tê mais gente de alpargata do que de bota.

– Aposto que entra mais um desses remelento chorão no colo da mãe, pra enchê nosso ouvido!

– Pois eu digo que entram dois piás de bosta desses!

– Eu aposto que quem vai sentá no banco vazio bem da frente é mulher!

De repente a coisa mudou de novo. Um homem alto, de barba, bigode e cabelo preto desgrenhado, botas de cano alto e bombacha marrom, subiu no vagão carregando a pulso uma mocinha. A garota devia ter algo em torno de seus quinze anos ou pouco mais. Era loirinha, estatura média, delgada, rostinho bonito e carinha de assustada. Os olhos estavam vermelhos de chorar. Já o homem tinha uma expressão feroz e parecia estar visivelmente embriagado.

A menina entrou no banco atrás daquele dos garotos, que tinha ficado vago com o desembarque dos outros passageiros. Sentou-se à janela e escondeu o rosto, vermelha de vergonha com a situação. Mas o homem de barba e bigode deu-lhe um safanão, fazendo-a levantar-se:

– Chispa daí! Eu que vou na janela – e puxou-a com violência para fora do banco. Entrou, sentou-se à janela e sempre puxando a garota pelo pulso, forçou-a a desabar sentada sobre o banco, no lado do corredor. A menina escondeu o rosto ainda maie e voltou a chorar silenciosamente.

– Bah, tchê – disse o Menorzinho – o pai dessa aí é brabo demás!

– E tá borracho que dá pré sentí o cheiro daqui.

Ajoelharam outra vez no assento e começaram a olhar para o estranho casal do banco de trás. O homem dirigiu-lhes um olhar de tal ferocidade que os dois rolaram sobre seus joelhos imediatamente e sentaram outra vez. Falaram baixinho:

– Cuepuxa! O homem tem cara de furioso.

– Pois pra mim ele tem cara de bandido de filme. Acho que ele é um bandido, desse que assalta diligência – falou convicto o Maiorzinho.

–  Mas aqui não tem diligência, só nos filme de mocinho.

– Pois então ele assalta lá no lugar dos filme de mocinho e depois se escondê aqui na Campanha.

Minutos depois, ouviram o ronco do bêbado, alto como um motor de carro.

– Tá dormindo, o bandido – disse o Menorzinho – Vamo falá com a guria.

Saíram do banco, ajoelharam-se no corredor perto da menina. Puxaram conversa.

– É teu pai? – perguntou o Maiorzinho

– Não, é o Tonhão Dureza. Ele é um homem perigoso.

– E o que que ele é teu, então? – quis saber o Menorzinho.

– Ele me ganhou num carteado. Meu pai jogou baralho com esse desgraçado e me apostou. E aí me perdeu. E me entregou pra ele. E ele agora está me levando com ele, vou ter que ser mulher dele.

– Mulher dum borracho! Mas que barbaridade! – rosnou o Maiorzinho.

– Mas por que teu pai te entregou? Um pai não faz uma coisa dessas com uma filha.

A menina olhou para o Menorzinho e lhe respondeu:

– Meu pai também bebe demais. E ele até gostou de me entregar para um homem, porque assim não vou dar mais despesa para ele. Meu pai é um homem ruim, bate na minha mãe quando bebe. Só que esse homem que me ganhou é pior ainda, falam que ele tem crimes de morte pelas costas.

O Maiorzinho exultou:

– Um bandido! Eu não disse que ele era um bandido! E assalta diligência, tenho certeza.

A senhora grávida, do assento do outro lado do corredor, que havia ouvido toda a conversa, falou então:

– Mas bah, que cosa más horrível, guria! Que maldição a gente nascer mulher neste mundo! Os homes podem fazê tudo o que querem com a gente. Até um pai jogá uma filha num carteado...

– Mas pior ainda é ser obrigada a ser mulher de um estranho, um bandido, que a gente detesta só de olhar, que dá nojo. E eu vou ter que me entregar a esse monstro, vou deixar de ser moça, a senhora sabe como é...

– Pois é, minha filha, foi justo isso que eu pensei. Fico com tanto dó de você.

– Mas nós podemo te ajudá – falou, inchando peito o Maiorzinho. Deixa com a gente.


– Mas o que vocês, uns piá, podem fazê? – estranhou a mulher grávida.
CONTINUA

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