MILTON MACIEL
Esta é a saga de dois piás heróicos e de um negro mui
grande – de porte e de coração – que acontece dentro de um trem, puxado a
maria-fumaça, lá pela fronteira do Rio Grande com o Uruguai. E que culmina em
eventos tais na pequena estação, que encheram a memória do povo, a ponto de não
serem esquecidos nunca mais. Tanto que aqui estou eu, contando o causo mais uma
vez. Bueno, chega de prosa e vamos começar:
Na estação de
trem da Santana do Livramento, uma cidade brasileira a bem dizer no Uruguai, a
azáfama era intensa. Carregadores com malas e sacos enormes, passageiros
retardatários, piás com recados, parentes apinhados nas portas de embarque,
agarrados pelas mãos com os que já estavam sentados dentro dos vagões... uma
balbúrdia! Corriam soltos os três idiomas oficiais locais: alguém falava em
português, a resposta vinha em espanhol, os menos estudados hablavam o
portunhol mesmo. E todo mudo entendia todo mundo.
A única coisa
que incomodava os dois guris era a choradeira das mulheres.
– Mulher é bicho
flocho! (= frouxo) – exclamou com
desdém o Maiorzinho, que já tinha 10 anos.
– Home que é
macho não chora! Mas mulher é bicho flocho
mesmo – ressoou o Menorzinho, que ainda tinha que fazer 8 anos, mas já era
aprendiz dedicado das lições do machismo álacre da fronteira.
Na verdade, o
que os incomodava era a choradeira da mãe deles, lá do lado de fora do trem.
Nem bem chegaram à estação e viram o trem parado, saíram correndo em carreira
desabalada, deixando a mãe e as duas malinhas para trás. Pularam na plataforma
do primeiro vagão onde viram gente embarcando e entraram igualmente correndo,
esbarrando em meio mundo que atrapalhava seu caminho.
– Ô, guri
infeliz, quase me derruba!
– Moleque é
coisa do diabo mesmo! Olha os pé dos otro,
desgraçado!
Mas os dois
guris não deram bola pra ninguém. Descobriram logo que podiam passar de um
vagão para outro e estenderem incontinenti sua marcha exploratória pelos
corredores dos vagões normais, pelos estreitos passadiços dos carros-dormitório,
sempre aos encontrões com os passageiros cheios de bagagens, procurando aflitos
seus lugares. O que os piás queriam era chegar na locomotiva, que os encantava
e entusiasmava.
– Vamo, tchê,
corre! A máquina é pra este lado, anda!
Mas não chegaram
lá coisa nenhuma! De repente uma voz adulta e cheia de autoridade se fez ouvir.
Vinha de um homem alto e magro, vestido de paletó e calça azul-marinhos e com
um quepe especial da mesma cor na cabeça. Era o chefe de trem:
– Onde vocês
pensam que vão, seus piás de bosta? Podem voltá, que o lugar de vocês é no
vagão número três. E a pobre da Donha Maria tá correndo que nem loca lá fora,
campeando vocês, seus porquera. Vamo, dá meia volta já.
Como notasse a
imobilidade recalcitrante dos piás, o chefe usou de sua larga experiência para
resolver casos assim, que podiam ser tudo, menos incomuns no seu trem. Catou
cada moleque por uma orelha, que apertou forte entre o indicador e o polegar de
cada uma de suas mãos ossudas, e começou a tangê-los através dos vagões. As antigas
vítimas de esbarrões e pisoteadas nos pés, agora já calmamente sentadas em seus
bancos, os viram passar pelos corredores e receberam-nos com uma acolhida a
caráter, com xingamentos e um monte de “bem-feito!” e outros que tais.
– Isso, Seu
Xavier, mostra pra esses piás o que é respeito!
Os guris, fulos
de raiva e de vergonha, as orelhas ardendo, não tendo como se desvencilhar das
tenazes de ferro do velho Xavier. Que só se afrouxaram quando ele os fez sentar
à força no banco número 16 do vagão três. No caminho viram que a mãe os acompanhava
do lado de fora, com as duas malinhas nas mãos. Quando foram obrigados a
sentar, pela janela aberta tiveram que ouvir a ladainha de Donha (Doña = Dona)
Maria:
– Por que que
vocês fazem isso com a pobre da mãe de vocês? Vocês querem me matar do coração?
Vocês não têm sentimento, não vêm que mãe tá chorando de saudade desde agora,
que vocês vão ficar longe da mãe três meses lá na fazenda?
Os guris só se
olhavam, impacientes com aquilo, mortos de vergonha de serem tratados como
criancinhas, ele que já eram uns homens feitos de oito e dez anos, todo mundo
dentro e fora do vagão vendo e ouvindo aquela barbaridade. E o diabo daquele
trem que não saía do lugar, para livrar os dois daquela vergonheira!
De repente veio
o apito salvador. A locomotiva resfolegou seu grito de guerra, o chefe de
estação usou seu apito fininho em três longos silvos, logo secundados pelos do
chefe de trem, que fez o mesmo.
– Desafasta, que
o trem vai saí! – ralhou o chefe de estação com os que estavam do lado de
fora, muito juntos dos vagões.
– Me solta, mãe,
que o bicho já vai – reclamou o Menorzinho, puxando o braço de dentro das mãos
aflitas da mãe chorosa.
O Maiorzinho,
nessa hora, no auge da excitação, não se aguentou e começou a pular em cima do
banco de madeira. A locomotiva deu o primeiro puxão para a frente, o vagão
tremelicou e o Maiorzinho foi se estabacar de encontro ao encosto do banco da
frente. Doeu, mas macho que é macho não chora! E, além do mais, tinha que fazer
parar a risada impertinente do Menorzinho, que apontava para ele e ria.
Soltou-lhe um tapa na orelha do puxão, que ficou mais avermelhada ainda.
Doeu, mas homem
que é macho não chora! E, além do mais, tinha que aproveitar a maravilha
daquele momento da partida. Continuou rindo do irmão que, dor já passada, caiu
na gargalhada também. O trem começava a ganhar velocidade, as pessoas e a estação
começaram a andar para trás. Os moleques ajoelharam no banco e viram, sobre o
encosto, que a mãe ia ficando pequeninha, acenando com o lenço braço na mão.
Pronto, estavam livres, a aventura ia começar!
Era a primeira
viagem de trem da vida deles. Era também a primeira vez que se separavam da
mãe. As duas coisas os deixavam quase loucos de tanto entusiasmo. Iam andar de
trem e, ainda por cima, iam poder provar que eram homens feitos, machos de
verdade, sem medo de largar das saias da mãe, capazes de sobreviver
perfeitamente longe da proteção segura do pai.
Incharam de
orgulho, olharam sorridentes para os outros passageiros nos bancos atrás do deles,
deviam de estar todos admirados com a proeza daqueles dois guris valentes. Uns
turunas! O Menorzinho não se aguentou e gritou para todos ouvirem:
– A gente tá
acostumado a viajá sozinho, tchê!
Os passageiros
de trás menearam a cabeça para os lados. Duas mulheres riram. Não acreditavam,
os desgraçados!
Os dois piás,
contrafeitos, sentaram no banco pela primeira vez. A viagem ia ser longa, coisa
de três horas, lhes haviam falado em casa. Iriam no trem para Dom Pedrito, mas
desceriam bem antes, na estação da Música, que ficava em Vacaiquá, por onde se
espalhava a fazenda da tia Mimosa, irmã do pai e madrinha do Menorzinho, que já
era viúva por esse tempo. Tocava a fazenda de criação de gado de corte com a
ajuda dos quatro filhos rapazes.
Para dois guris
afogueados nessa idade, três horas e uma era geológica inteira são a mesma
coisa. O que iam fazer para passar essa eternidade de tempo? Inventaram de tudo
um pouco. Começaram por ajoelhar no
assento de novo, voltados para os passageiros de trás e começaram a fazer
caretas, usando as duas mãos sobre o rosto para ajudar, repuxando o nariz, os
lábios, dobrando as orelhas, arregalando os olhos. E morrendo de rir da cara
dos outros o tempo inteiro. Rendeu um bom tempo de distração para eles aquela
legítima palhaçada, até que, de repente, um velho lá no fundo pareceu se encher
com aquilo, levantou do banco, remexeu em algo que tinha ali embaixo e se
ergueu com um enorme facão dentro da bainha. Olhou feio para os guris, agitou o
facão em direção a eles e as caretas logo se fizeram reais, sem auxílio das
mãos, eram caras de puro cagaço.
Os moleques
sentaram no banco, de olhos arregalados, esperando para correr na hora que o
velho do facão chegasse neles. Mas não aconteceu nada. Continuaram quietos,
quase petrificados, por um longo tempo, tão longo que, quando o Maiorzinho teve
coragem de espiar para trás outra vez, o velho já dormia a sono alto, roncando
refestelado no seu banco. O facão dormia no colo dele, o que para os piás era
aviso claro que a brincadeira das caretas e das gargalhadas tinha mesmo acabado
de vez.
Passaram então a
se ocupar com espiar e tentar adivinhar o que os passageiros do vagão traziam
em suas canastras. Essas eram umas cestas de vime e palha típicas da região.
Eram de secção retangular, tinham uns dois palmos de fundura e duas tampas
inclinadas em cima, que se abriam para fora. Quase todos por ali viajavam com
canastras, fora as malas; e as sacolas e sacos grandes de pano. As canastras
deixavam antever, pela sua trama aberta, o que havia lá dentro. Então os piás
levantaram do banco e passaram a inspecionar canastra por canastra que viam no
chão, geralmente embaixo dos bancos. E faziam apostas:
– Eu digo que é
goiabada. E aquilo pra mim é charque.
– Esse aqui tem
uma garrafa, só pode sê de canha. (= cana =
cachaça)
– Olha, umas
gajetas das grandes (gajeta = galletas
= bolachas grandes)
– Essa aqui tá
tudo embrulhado, não dá pra sabê
– Vai vê é uns
mijado de guri, ela tem um piá grudado nos peito, mamando nela.
E assim foram
matando o tempo infinito da viagem, sem jamais pararem. Depois resolveram ousar
de novo a incursão à frente do trem. Entravam no vagão seguinte, olhavam com
cuidado se o chefe de trem não estava por ali e atravessavam o vagão
rapidamente. No terceiro, encontraram algo que os fascinou e os fez esquecer da
locomotiva: era o carro-restaurante!
Havia algumas
mesinhas presas ao chão, cadeiras idem-idem, algumas poucas pessoas sentadas
comendo e/ou bebendo. Havia um balcão cheio de guloseimas e os moleques ficaram
ali namorando os bombons e balas. O rapaz que atendia piscou o olho e
escorregou, escondido, duas balas de leite para eles, que agradeceram e foram
sentar a uma das mesas, para abri-las e come-las bem devagar, para durar mais a
sensação.
– Olha – disse o
Menorzinho – esses vidrinho engraçado. Está escrito pimenta, sal e vinagre. Prá
botá na comida.
O Maiorzinho
apanhou um quarto vidrinho e experimentou a tampa, que se soltou. O conteúdo
vazou um pouco sobre a toalha branca. Limpando os dedos na mesma, o menino
falou:
– Xi, tchê, é
azeite! Vamos s’imbora logo, antes que o moço veja o que eu fiz.
E correram de
volta para o seu vagão, voltando a sentar no mesmo banco 16. Ficaram quietos
outra vez.
O trem parou em
outra estação. Os moleques se assanharam
de novo. Descia um ou outro passageiro, muitos mais subiam e aí os meninos
voltavam às apostas:
– Eu digo que
entra mais homem que mulher
– Pois eu digo
que vai tê mais gente de alpargata do que de bota.
– Aposto que
entra mais um desses remelento chorão no colo da mãe, pra enchê nosso ouvido!
– Pois eu digo
que entram dois piás de bosta desses!
– Eu aposto que
quem vai sentá no banco vazio bem da frente é mulher!
De repente a
coisa mudou de novo. Um homem alto, de barba, bigode e cabelo preto desgrenhado,
botas de cano alto e bombacha marrom, subiu no vagão carregando a pulso uma
mocinha. A garota devia ter algo em torno de seus quinze anos ou pouco mais. Era
loirinha, estatura média, delgada, rostinho bonito e carinha de assustada. Os
olhos estavam vermelhos de chorar. Já o homem tinha uma expressão feroz e
parecia estar visivelmente embriagado.
A menina entrou
no banco atrás daquele dos garotos, que tinha ficado vago com o desembarque dos
outros passageiros. Sentou-se à janela e escondeu o rosto, vermelha de vergonha
com a situação. Mas o homem de barba e bigode deu-lhe um safanão, fazendo-a
levantar-se:
– Chispa daí! Eu
que vou na janela – e puxou-a com violência para fora do banco. Entrou,
sentou-se à janela e sempre puxando a garota pelo pulso, forçou-a a desabar
sentada sobre o banco, no lado do corredor. A menina escondeu o rosto ainda
maie e voltou a chorar silenciosamente.
– Bah, tchê –
disse o Menorzinho – o pai dessa aí é brabo demás!
– E tá borracho
que dá pré sentí o cheiro daqui.
Ajoelharam outra
vez no assento e começaram a olhar para o estranho casal do banco de trás. O
homem dirigiu-lhes um olhar de tal ferocidade que os dois rolaram sobre seus
joelhos imediatamente e sentaram outra vez. Falaram baixinho:
– Cuepuxa! O
homem tem cara de furioso.
– Pois pra mim
ele tem cara de bandido de filme. Acho que ele é um bandido, desse que assalta
diligência – falou convicto o Maiorzinho.
– Mas aqui não tem diligência, só nos filme de
mocinho.
– Pois então ele
assalta lá no lugar dos filme de mocinho e depois se escondê aqui na Campanha.
Minutos depois,
ouviram o ronco do bêbado, alto como um motor de carro.
– Tá dormindo, o
bandido – disse o Menorzinho – Vamo falá com a guria.
Saíram do banco,
ajoelharam-se no corredor perto da menina. Puxaram conversa.
– É teu pai? –
perguntou o Maiorzinho
– Não, é o Tonhão Dureza. Ele é um homem perigoso.
– E o que que
ele é teu, então? – quis saber o Menorzinho.
– Ele me ganhou
num carteado. Meu pai jogou baralho com esse desgraçado e me apostou. E aí me perdeu.
E me entregou pra ele. E ele agora está me levando com ele, vou ter que ser
mulher dele.
– Mulher dum
borracho! Mas que barbaridade! – rosnou o Maiorzinho.
– Mas por que
teu pai te entregou? Um pai não faz uma coisa dessas com uma filha.
A menina olhou
para o Menorzinho e lhe respondeu:
– Meu pai também
bebe demais. E ele até gostou de me entregar para um homem, porque assim não
vou dar mais despesa para ele. Meu pai é um homem ruim, bate na minha mãe
quando bebe. Só que esse homem que me ganhou é pior ainda, falam que ele tem
crimes de morte pelas costas.
O Maiorzinho
exultou:
– Um bandido! Eu
não disse que ele era um bandido! E assalta diligência, tenho certeza.
A senhora grávida, do assento do outro lado do corredor, que havia ouvido
toda a conversa, falou então:
– Mas bah, que cosa más horrível, guria! Que
maldição a gente nascer mulher neste mundo! Os homes podem fazê tudo o que
querem com a gente. Até um pai jogá uma filha num carteado...
– Mas pior ainda
é ser obrigada a ser mulher de um estranho, um bandido, que a gente detesta só
de olhar, que dá nojo. E eu vou ter que me entregar a esse monstro, vou deixar
de ser moça, a senhora sabe como é...
– Pois é, minha
filha, foi justo isso que eu pensei. Fico com tanto dó de você.
– Mas nós podemo
te ajudá – falou, inchando peito o Maiorzinho. Deixa com a gente.
– Mas o que
vocês, uns piá, podem fazê? – estranhou a mulher grávida.
CONTINUA
CONTINUA
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