O AMOR VERDADEIRO É MUITO DIFERENTE!
MILTON MACIEL
Em cena estão Ataliba, o paulistano feliz,
o homem mais alegre de São Paulo, o filósofo das ruas da Paulicéia desvairada –
Ataliba, o sábio. Com ele está Célia, a vendedora, Celinha para os amigos,
olhando a vida agora com outros olhos, do alto de sua maturidade incipiente de
40 anos, depois de sua malograda tentativa de suicídio. E também a escultural
Tainá, loira alta de olhos verdes, rosto perfeito, sexualidade transbordante,
juventude a exultar pela vida, explodindo de dentro de seus 27 aninhos. Faz jus a Vinícius de Moraes: “Tão linda, que
só espalha sofrimento!” Entre Célia e Tainá, uma tumultuada relação de paixão,
uma incipiente relação de amor.
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“Então Ataliba falou a Tainá:
– Há muitas pessoas assim, Tainá, essa é a
normalidade delas. Eu sou heterossexual, você é homossexual e Celinha é
bissexual. A coisa toda é simples assim. As pessoas, por preconceito,
ignorância ou obscurantismo religioso é que complicam tudo, que não conseguem
aceitar uma realidade tão evidente. Criam tabus, castigos, autopunições, e
movem perseguições aos outros. É tudo ignorância, Tainá, ignorância que faz
sofrer, que gera dor, que cria solidão, que machuca o corpo, que fere a alma,
que hostiliza, ridiculariza, açoita e mata. O marido covarde que assassina a
esposa adúltera, à qual ele mesmo não foi fiel; o mulah monstruoso, que manda decapitar a esposa adúltera e faz
vistas grossas ao comportamento adúltero de todos os maridos; o pai animalesco
que expulsa de casa a filha solteira grávida; o debilóide que discrimina
pessoas homossexuais, o canalha que estupra uma mulher...
Mestre Ataliba fez um silêncio mais longo,
como a deixar tempo para que as interlocutoras elaborassem melhor o que
dissera. E prosseguiu:
– Todos eles são excrecências degeneradas
de uma sociedade podre e machista. Eles têm a mente mergulhada em trevas e o
coração cheio de ódio, estão muito longe ainda de poderem se abrir para o amor
verdadeiro. São infelizes que se arrastam em seu sombrio mundo interior, infelicitando
todos a seu redor. Muitos tentam fazer crer, inclusive e principalmente a si
próprios, que falam em nome de Jesus, Maomé ou Moisés, escudando-se e
escondendo-se atrás de pretensos livros sagrados, aos quais transferem a
responsabilidade de pensar por eles, já que, na sua ignorância, são incapazes
de fazê-lo por si próprios. Esses são os que seguem guias fanáticos ou
exploradores, são os que alimentam o perigosíssimo efeito manada, os que odeiam
em nome do Deus de Amor, os que discriminam, perseguem e matam. São
preconceituosos intransigentes, fadados a encontrar, mais dia, menos dia, em sua
própria família, em suas relações ou em seu próprio corpo, aquela sombra de
destruição que teimam em ver somente nos outros.
– Ataliba! – exclamou a belíssima Tainá,
com os grandes olhos verdes faiscando entusiasmo – você é um sábio! Você fala como se
fosse um iluminado, um religioso. Qual é a sua religião?
– Nenhuma, Tainá. Ou, por outra, a minha é
a religião do Amor. Ela é simples demais, não tem livros da Lei, padres, imans
ou pastores, não tem templos externos – igrejas, mesquitas, sinagogas. Só
existe nas mentes e corações das pessoas que são capazes de amar. Como Célia,
que ama você de fato, de uma forma que você ainda não é capaz de atingir. Que
ama você, apesar de suas infidelidades a ela.
– Mas eu lhe suplico, Ataliba: me ajude a
mudar! A superar isso, eu não quero mais ser infiel a Célia.
– Mas, Tainá, essa não é a condição de amar
Célia de verdade! Pois você só atingiria essa condição por medo: medo de que
ela deixe você de novo, medo de perdê-la. No entanto isso não tem sido
suficiente para você deixar de ter interesse sexual por outras mulheres. Quem é
fiel por medo, seja da outra pessoa, seja da sociedade, seja de um Deus
primitivo e castigador, não é fiel de verdade. A única fidelidade possível é a
que existe na alma apaixonada. E as pessoas desaprenderam a arte de manterem-se
apaixonadas por anos a fio. Célia é apaixonada na alma, aprendeu a amá-la
incondicionalmente, sem esperar que você possa retribuir no mesmo nível. Há
muito tempo que ela compreendeu que você é vítima de sua própria beleza
extrema, de sua força de sedução, do seu sex
appeal que destempera outras pessoas, sejam elas mulheres ou homens. Em
última análise, você ainda é bastante imatura para poder escapar da armadilha
psicológica do seu próprio narcisismo.
Célia interveio nesse instante, falando com
enorme calma e doçura na voz:
– Meu amor, muitas vezes eu fiz vistas
grossas aos seus casos, por saber tudo isso, exatamente porque Ataliba já me
havia ensinado a grande lição do amor verdadeiro. Na primeira vez em que
vivemos juntas, eu era um poço de ciúmes e você uma sedutora incorrigível,
colecionando casos e mais casos. Eu não aguentei e deixei você. E isso foi a
gota d’água para mim, tentei me matar dias depois. Mas Ataliba me salvou no
último momento. O que não teria tido maior valor para mim, se não tivesse ele,
logo a seguir, se dedicado a salvar minha alma ignorante e incapaz de Amor. Foi
ele que me fez ver que eu deveria, sim, aceitar a mim própria, com minha
bissexualidade. E aceitar que, dentro dela, eu sentia um enorme amor era por
uma mulher, por você Tainá. E por causa dele, eu voltei a procurar você e nós
voltamos a viver juntas agora.
– Mas você ficou sabendo das minhas novas
escapadas, não é? Agora eu percebo isso.
– Sim, querida, mas agora eu estava madura o
suficiente para amar você. Agora eu
não precisava me amar através de você,
como antes. Ataliba me mostrou a enorme diferença que existe nisso. Agora eu me
comprazo e sou feliz com esse amor que devoto a você. E isso foi a melhor coisa
que me aconteceu, depois que eu aprendi a viver. Ataliba, como um mestre
bendito, me encontrou, me resgatou da morte, me fez renascer, me ensinou a amar.
E me ensinou a conhecer e amar você do jeito que você é. Como eu amo você!
Ataliba acrescentou:
– Amar é isso, Tainá. É se dar e é aceitar. Ou, para ser mais simples: Amar
é DAR. E isso Célia aprendeu finalmente.
– Tem uma coisa, Tainá, que eu quero que
você entenda de uma vez por todas, meu amor. O bom da nossa relação, para mim,
é que eu tenho você para amar. Para EU amar você! Você fica comigo e eu tenho a
pessoa que eu adoro para cobrir de amor, de cuidados, de proteção, de aceitação
e de compreensão. E eu sou sumamente grata a você porque você fica comigo. E
sou grata a Deus porque você existe. Existe e está aqui comigo, com todas as
suas qualidades e defeitos. Eu amo você e isso é o que me faz feliz,
independente de você me amar, me compreender, me aceitar. Não se trata de um
negócio de toma lá, dá cá. Entenda,
meu amor, para mim é uma coisa de toma lá
somente
Ataliba reforçou:
– Eu lhe digo, Tainá, que Célia já consegue
compreender e vivenciar isso, Célia já sabe amar. Um dia você poderá aprender
também. Mas, entenda, ninguém aqui está dizendo que amar Célia é ser fiel a ela
sexualmente. Esta não é a condição, se você tentar atingi-la por medo
unicamente. Repito: você só não se interessa por outras pessoas fora de sua
relação, sem que isso seja provocado por um medo que as pessoas chamam de
caráter, quando você está completamente apaixonada. Então você fica totalmente
cega, nem sequer percebe as outras pessoas. Mas o grande mal atual é que as
pessoas não sabem se conservar apaixonadas.
E, com um suspiro, completou:
– Eu falei que Célia é bissexual. Ela já
teve dois casamentos e um outro homem a quem amou depois disso. Então entenda,
menina, que ela ama você porque você é Tainá,
não porque você é mulher! Ela é
perfeitamente capaz de amor um homem da mesma forma, basta que encontre um à
altura dela. Portanto, Célia ama Tainá independente do sexo dela, compreendeu?
Ou seja, o ser espiritual que é Célia ama o ser espiritual que é Tainá. E isso
está muito acima dos corpos e do tesão. Este, o desejo, é tributário, afluente,
não é o rio principal, que é um caudal de amor espiritual. O corpo que tem hoje a exuberância da
juventude, amanhã ostentará as marcas do tempo e do desgaste. Não será mais
exteriormente tão belo, não será mais atraente. E, se a essência espiritual não
for amável, então o que sobrará para amar?”
Cabeça baixa, Tainá de olhos verdes
cintilantes apenas chorava mansamente, abundantemente, sentidamente. Sim, era
verdade – ela ainda não sabia amar... Mas cresceria um dia, um dia haveria de
aprender. Será que Célia poderia esperar por ela?...
Extraído de: “ATALIBA, UM PAULISTANO FELIZ” – Milton
Maciel – IDEL - 2010
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