UM SANTO INACEITÁVEL (ou O Advogado do Diabo)
O processo de
canonização do primeiro santo negro brasileiro
MILTON MACIEL (ver notas explicativas no final)
Com um
repelão enérgico, o Dr. Massimo Francesco Merkel afastou os papéis de si e
levantou-se, irritado. Aquele Promotor
Causae o estava deixando maluco! Desde que o Cardeal Scherer havia manobrado
para que aquele seu conterrâneo mulato fosse aceito como Advocatus Dei, não lhe fora mais possível ter paz de espírito. Brandindo
o documento de prova número 43, fez sinal a seu assistente para que projetasse
as correspondentes imagens na tela.
– Prova 43: Vejam, senhores, se não é uma
evidência incontestável de deturpação da fé católica! O candidato é visto, num
dia 17 de Janeiro, acompanhando a procissão que saiu da Igreja da Conceição da
Praia e foi até a Igreja do Bonfim, em Salvador, Bahia. Seis quilômetros a pé,
ao lado de indivíduos de atitudes suspeitas, de prostitutas, de mulheres
vestidas com roupas brancas de candomblé, cheias de colares e pulseiras. E
praticamente todos negros, excelências!
Notou que seu oponente, o mulato brasileiro,
apenas exibiu o mesmo sorriso de mofa de sempre, enquanto erguia o braço e
esperava a autorização para apartear. Autorizado, falou sentado mesmo:
– E o que isso prova, senhores? Que Padre
Alberto era um praticante oculto da seita do candomblé? Não, já cansei de
demonstrar aqui que não existe um só documento que possa provar tal presunção,
a qual só existe na cabeça preconceituosa do Advocatus diaboli. Mas comprova que Padre Alberto era amigo de
todos, que não perdia oportunidade de estar com as ovelhas do seu rebanho, com
seus fiéis, fosse qual fosse a ocasião. E esta era a ocasião de uma procissão
de uma igreja católica até outra igreja católica. Já demonstrei aqui que essa
era a tática que nosso candidato usava para manter seu rebanho unido. Ele sabia
que, na cidade da Bahia, todos são católicos e todos são fetichistas. Se ele
fosse ostentar a intolerância empedernida de um homem como este à minha frente,
sua Igreja do Rosário dos Pretos ficaria permanentemente entregue às moscas.
Não, ele sabia proceder da melhor maneira: Seus fiéis eram todos bons
católicos, frequentadores assíduos das missas. Mas eram, também, praticantes do
candomblé e essa era uma realidade contra a qual ele não podia fazer nada. E, não
escondia, isso não o incomodava.
– Quem não é contra, é a favor! – rugiu,
tonitruante, o Promotor Fidei.
O cardeal Kazimierz Brzezinsky, que presidia
a reunião naquela tarde, fulminou-o com o olhar. Grande cabeça de asno! – pensou, irritado, o cardeal. O Advocatus Diaboli sentou, contrafeito.
No curto espaço de tempo que se seguiu, o Dr.
Massimo recuou no tempo. Sim, ele viera de uma origem muito humilde. Para lhe
garantir algum futuro, seu pai, o tanoeiro Vincenzo, o havia encaminhado ao seminário
dos beneditinos. Contudo, conforme cresceu, o menino não demonstrou qualquer
vocação para o sacerdócio. Já rapaz, deixou o seminário e foi enfrentar a nova
vida em Siena. Trabalhou, graduou-se e pós-graduou-se em Direito Civil. Casou,
constituiu família, advogou, chegou enfim à Promotoria Pública. Jamais perdeu
seu vínculo com a Igreja. Na primeira oportunidade que teve, batalhou até ser
aceito na Octopus Dei, onde subiu rapidamente
na hierarquia.
Foi a Octopus Dei que conseguiu colocá-lo na
posição estratégica de Advocatus diaboli. Agora, Massimo chegava ao topo de sua
carreira! Mas o que não lhe entrava na mente era a atitude do cardeal
brasileiro Scherer. Apoiar a indicação do padre Alberto de Souza para a
beatificação e a canonização era inaceitável, vindo de um homem que, apesar de
ter nascido naquele país de mestiços, era um ariano legítimo, um Scherer! Como
podia um cardeal branco, olhos azuis, apoiar à indicação de um... de um negro! Nem Massimo, nem o cardeal Mantovani,
nem o bispo Torrequemada, líderes da Octopus,
podiam aceitar essa degradação passivamente. Mais um santo negro! Onde iria
parar a Santa Madre Igreja assim?
No caso desse incômodo, desse inconveniente Padre
Alberto, a coisa toda era infinitamente pior. A documentação estava perfeita,
sem uma única falha. Havia dezenas de milagres devidamente comprovados. Era exatamente
na abundância deles que estava o ponto forte da argumentação do Advocatus Dei, o insuportável Dr.
Pasquim Barbosa, aquele insolente mulato brasileiro que ousava desafiar sua
autoridade com ironia e sarcasmo, falando fluentemente ora latim, ora italiano,
ora inglês, ora francês, um exibicionista! Alguns ali já o chamavam de “O Águia de Roma”, um disparate! Todos
os testemunhos contrários, que ele e a Octopus
haviam tentado impingir no processo, haviam sido inapelavelmente demolidos pelo
odioso brasileiro.
O tal defensor era um mulato escuro, calvo,
baixo, atarracado e... feio! Encará-lo no tribunal feria os delicados padrões estéticos
de ariano puro do Dr. Massimo, um racista convicto e confesso. A outra coisa
que enfurecia sobremaneira o Dr. Merkel e a ala azul da Octopus, eram as raízes do Padre Alberto. Sim, ali estava um negro,
filho de uma negra mandingueira, uma tal Josefa de Oxalá, e de um pai
desconhecido. Eram da cidade negra de Salvador, Bahia, o que, por si só, já era
uma péssima recomendação. Naquela cidade cheia de pecados, grassava a mais
desenfreada miscigenação, algo abominável! E isso tinha, evidentemente,
terríveis conseqüências para a fé. A miscigenação racial levava à miscigenação
cultural e religiosa. Legiões de pretos e mulatos, vestidos de branco, invadiam
as igrejas católicas e lá dentro, na maior desfaçatez, cultuavam suas
divindades bárbaras do candomblé, sincretizadas aos mais respeitáveis santos
católicos, até mesmo ao próprio Senhor Jesus, uma heresia inominável!
Padre Alberto era filho de uma mãe-de-santo,
provavam os documentos. Fora criado, a bem dizer, dentro de terreiros de
candomblé. Deus, felizmente, em sua infinita bondade, pensava o Dr. Massimo, se compadecera da pobre
criança e mandara a morte afastar dele a má influência da mãe, quando ele tinha
onze anos. Seu padrinho, que era sacristão da igreja do Rosário dos Pretos,
tomara a si o sustento e a educação do menino. O resultado foi que o garoto
tomou-se de amores pela Igreja, acabou indo para o seminário e foi ordenado
sacerdote.
E já a partir do
primeiro ano começou sua obra de abnegação. Trabalhou pelos miseráveis da
cidade até o último dia de sua vida. Pediu para ficar sempre em posições
subalternas, nunca aceitou ser pároco, porque isso iria atrapalhar sua obra
missionária. Percorria a pé gigantescas distâncias, sempre mendigando alimentos,
roupas e remédios para levar aos necessitados. Nos Alagados, dera, por anos, um
imenso apoio a Irmã Dulce. Nos mais distantes lugares de Salvador, sempre aparecia
o abnegado Padre Alberto a alimentar os famintos, a tratar os enfermos, a
consolar e evangelizar os adultos e as crianças. Por causa disso, ele era
venerado em vida como um santo por todas as pessoas pobres e desvalidas.
Estaria tudo em paz, sem perturbar o
Vaticano, não tivesse o infeliz morrido de repente, na flor da idade, 46 anos
apenas. Carregando um enorme saco de mantimentos às costas, nos Alagados, seu
frágil coração não resistiu, o padre tombou no mangue, teve morte instantânea. Logo
depois, começaram a ser propalados os seus milagres por toda Salvador e, depois,
por todo o Brasil. Santo Alberto, o primeiro santo brasileiro negro, assim
começou a ser chamado.
A coisa cresceu
de tal forma que alguns setores da Igreja no Brasil começaram a falar em
processo de beatificação e canonização, para esse Santo Alberto extra-oficial
do povo brasileiro. O próprio bispo de Aparecida fez uma recomendação que teve forte
repercussão: “É melhor a gente canonizar o homem e tê-lo com um santo nosso, porque santo dos outros ele já é.” Isso convenceu o
cardeal Scherer e ele colocou toda a força da igreja brasileira no processo a
favor do Padre Alberto.
Suando abundantemente, apesar do frio na
sala, o Advocatus Diaboli ergueu seu
corpanzil triunfante, para arrasar de vez com seu maldito oponente. Guardara o
melhor para o fim:
– Prova 44. Examinem, senhores, as pastas
azuis que meu auxiliar acaba de colocar em suas mesas. Aí temos as declarações
juramentadas de uma certa Isabel da Silva, prostituta em Salvador, que afirma
ter tido dois FILHOS – DOIS, excelências! – com o Padre Alberto, quando ainda
era menor de idade. UMA MENOR, uma ignomínia, senhores! Vejam as abundantes provas testemunhais,
inclusive das então crianças, hoje adultos, que se recordam de tratar o padre
como “Painho”. Uma afronta. Não
podemos beatificar um devasso como esse. Jamais!
Seguiu-se terrível burburinho, à medida que
os doutos magistrados examinavam e comentavam, aturdidos e horrorizados, as
provas apresentadas nas pastas. Até então eles estavam maciçamente inclinados a
aceitar a beatificação do padre. Mas agora... Foram mais de dez minutos,
durante os quais o Advocatus Diaboli
ficou antegozando sua vitória, observando o verme escuro que havia esmagado
inapelavelmente com sua inteligência. O Advocatus
Dei manteve-se o tempo todo de cabeça baixa, era evidente que estava
arrasado. Quando o cardeal Brzezinsky lhe fez um aceno de mão, como a pedir-lhe
que fizesse algo, o Dr. Pasquim Barbosa falou calmamente:
– Excelências, peço que
examinem os documentos que o Padre Marcelo está, neste momento, colocando em
suas mesas. Sim, Padre Alberto tratava as duas crianças como filhos. Assim como
tratava a própria mãe deles como filha, afinal também ela era uma criança
ainda, uma das milhares que Padre Alberto ajudou e acolheu durante sua longa
trajetória de modelo cristão, tratando a todas elas como seus filhos e filhas.
Os documentos, senhores, traduzidos e juramentados, são exames de laboratório.
Exames de DNA, excelências! Ambos comprovam cabalmente que as então crianças são
filhas de dois pais diferentes e que nenhum deles é geneticamente similar a
Padre Alberto!
Os magistrados prorromperam em aplausos, alguns
quebraram o protocolo, levantaram-se para abraçar e felicitar o Advocatus Dei brasileiro. Era evidente
que sua causa estava ganha. O Advocatus
Diaboli foi ficando cada vez mais vermelho, apoplético e, assim que o
mestiço odioso ficou sozinho, de um salto partiu para cima dele, aos berros,
procurando atingi-lo com um soco:
– Mascalzone! Schifoso! Figlio di putana!
Então, em questão de segundos, duas coisas
impressionantes aconteceram. Primeiro, o brasileiro, um sexagenário, antes que
o opositor o alcançasse, levou uma das mãos ao chão e, com uma agilidade nele
insuspeitável, girou no ar e elevou as duas pernas à altura da cabeça do enorme
italiano. O golpe colocou o Advocatus
Diaboli fora de combate, esparramado no chão. Erguido, foi expulso do salão
pelos cardeais indignados. Nunca, na história da Igreja, uma tentativa de
agressão acontecera naquele recinto sagrado, exigiriam a punição rigorosa do
destemperado perdedor.
A outra coisa, essa carente de explicação
até hoje, foi que, no exato instante em que o Advocatus diaboli se estatelava no chão, uma inexplicável explosão
aconteceu bem no meio da sala, produzindo uma luz brilhante e uma espécie de
tênue fumaça azulada, que se desfez rapidamente, deixando um perfume suave e
persistente pelo ar.
Fosse o que
fosse, todos foram unânimes em não relatar jamais esse episódio, já que não
havia como explicá-lo a ninguém.
Explicações importantes:
Em primeiro lugar, neste país de incontáveis santos
negros e mulatos sacrificados e não-reconhecidos, é preciso deixar bem claro: leitora,
leitor: Isto é FICÇÃO, é apenas um conto inocente.
Em segundo lugar, o direito canônico preconiza o
procedimento exatamente como aqui estamos descrevendo. Esta parte é REAL. O
processo de beatificação e canonização, na Igreja Católica Romana, exige sempre
a presença de um advogado do diabo (Advocatus Diaboli ou Promotor Fidae =
promotor da fé), uma espécie de advogado da acusação, que deve tentar provar
que os milagres e documentos comprobatórios não são verdadeiros. Para defender
o(a) postulante falecido(a), é constituído o Advogado de Deus (Advocatus Dei ou
Promotor Causae = promotor da causa).
Octopus (polvo em inglês) faz blague com Opus, de Opus
Dei, que não é aqui acusada de nada. E ao invés de Obra de Deus (Opus Dei),
temos o Polvo de Deus (Octopus Dei)
O Bispo Torrequemada (torre queimada em espanhol),
por sua vez faz blague com o religioso espanhol Tomás de Torquemada, o criador da
Inquisição.
Evidentemente, o Dr. Pasquim Barbosa faz-se cópia
carbono do Dr. Joaquim Barbosa, do STF, que vira capoeirista no conto. O "Águia de Roma" aqui é uma óbia alusão a Rui Barbosa, o "Águia de Haia".
Quanto à misteriosa explosão de luz no salão, ninguém
dentre os presentes à reunião jamais a referiu, portanto fica a critério do
leitor aceitar ou não sua autenticidade e explicação. Quanto a nós, que não
queremos complicação para o nosso lado, lavamos nossas mãos como Pôncio
Pilatos, apenas que usando um moderno álcool gel, para maior segurança e
esterilização.
(A foto é do padre Augustine Tolton, de quem iremos falar em breve)
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