A
BALA PERDIDA
MILTON
MACIEL
Era um menino alegre, puro e inocente, na
plenitude dos seus oito aninhos recém-completados. Era uma família que tinha
nesse garotinho toda a sua felicidade e encantamento. Era uma escola
particular, situada em um bairro de classe média alta, onde mães e pais
formavam sempre irregularíssimas filas triplas com seus carrões, na hora da
saída.
A vida corria tranquila e sem transtornos
para todos. Aquela parte da cidade grande parecia não ter nada a ver com a atmosfera
tensa e angustiada daqueles bairros onde a falta de segurança é absoluta. Como
um verdadeiro oásis, o ambiente urbano onde a Escola Nova Esperança se
esparramava preguiçosamente por quase um quarteirão, vivia em paz há mais de
dez anos.
Mas aquela era a cidade grande. E a
realidade, a dura realidade, que não poupa nem mesmo as casas dos banqueiros e
dos senadores, mais dia, menos dia haveria de bafejar com seu hálito mefítico a
paz da Nova Esperança. E a realidade chegou. E foi trazida por uma bala
perdida.
Não faz sentido comentar o que é uma bala
perdida, não a esta altura da existência em uma cidade permanentemente
conturbada pela violência dos embates entre polícia e bandidos; e entre
bandidos e bandidos. Hoje todos sabem muito bem o que é uma bala perdida na
cidade grande.
Pois vou contar como uma bala perdida
destroçou a vida tranquila de um menininho de oito anos e como veio a cobrir de
revolta e opróbrio toda a sua família.
Um dia o menininho caminhava contente pelo
corredor da escola, sozinho, depois que quase todos os coleguinhas tinham
corrido para fora, ao final do horário de aulas. E foi ali, dentro da escola –
e, não, no seu exterior, na calcada em frente, que a bala perdida veio
estraçalhar sua jovem existência e, por extensão, a de sua família inteira.
O menininho já estava quase na porta de saída
quando viu aquela coisa brilhante no chão do corredor. Era a bala perdida! Pudesse
ele adivinhar o que viria, jamais teria se aproximado daquele brilho enganador.
Mas não podia, era só uma criança inocente. Então o menininho abaixou-se e
apanhou a bala.
Em sua embalagem prateada estava escrito:
Bala de Hortelã Domênico. Huum, uma bala Domênico! E, ainda por cima, de
hortelã, sua favorita. O menininho ficou feliz e começou a girar o papel
prateado na mão, para abri-lo. Quando finalmente o conseguiu e ia colocar na
boca o testemunho de sua boa sorte, ouviu uma voz estridente:
– Ladrão! Ele roubou a minha bala, mãe. Ele
é um ladrão, mãe! Castiga ele!
Em vão o menininho gritou sua inocência. O
outro garoto, um chato terrível e mimado, vinha pela mão da mãe. E a mãe era
simplesmente a dona e diretora da escola. E essa mulher, de olhos de coruja sob
os grossos aros redondos e nariz de gavião, apanhou imediatamente o menininho
pela orelha, arrastando-o até sua sala, cuja porta fechou. Vinte minutos depois
a porta era aberta. Lá estavam o moleque acusador, sua mãe cara de coruja
nariguda e ... a mãe do menininho!
Que ouviu, mortificada, a história do roubo
da bala de hortelã. Que na verdade não era roubada, era somente uma bala perdida. Mas nem mesmo sua mãe lhe
deu crédito. Chorou e pediu perdão à diretora e seu filho, prometeu dar castigo
exemplar ao ladrão e mentiroso quando chegasse em casa. E o fez com todo o
rigor que o caso exigia. Ladrão? Pois lugar de ladrão era na cadeia. E colocou
o menininho de castigo no quartinho dos fundos, a pão e água, por todo o
fim-de-semana. E para cada pessoa que chegava, ela desfiava sempre a mesma
história, da vergonha que havia passado na escola, por causa daquele filho tão
pequeno e já tão ladrão. Doeu demais no menininho.
Pior ainda foi na escola. A diretora e o
filho se encarregaram de espalhar a notícia. Logo, logo, o menininho passou a ser
vítima de bullying generalizado. Ganhou de todos o apelido de Ladrãozinho. Que mudou
para Ladrão assim que ele se fez maior. E Ladrãozão, depois resumido para
Drãzão, pelo resto de sua vida.
O trauma foi absurdamente grande,
naturalmente alguma consequência ele traria. E trouxe. Assim que chegou à idade
adulta, o ex-menininho entrou para a política. Se a infelicidade o quis fazer
conhecido como Drãozão, ele iria fazer por merecer o apelido. Elegeu-se
vereador, depois deputado estadual, depois deputado federal. Está lá em
Brasília pelo terceiro mandato consecutivo. É venal como poucos, rouba
descaradamente, mete a mão no dinheiro público, faz juz ao nome Drão. Sim,
conseguiu, a custa de bom investimento, mudar a maneira como era chamado por
todos, eleitores inclusive: Drão. Que dizia ser homenagem ao nome de um
benemérito avô inventado, Alessandro, conhecido pela alcunha de Drão.
E lá está ele ainda hoje, fazendo a
vergonha de toda sua família. Todos os parentes negam que o conhecem. Sua mãe
jura que nunca teve esse filho, mandou certa vez dar surra de criar bicho num jornalista,
que andou investigando a fundo as origens do nobre deputado Drão. Todos os
membros da família gritam a plenos pulmões que não são portadores da suprema
vergonha de terem nela um deputado federal: “Eu não sou parente de deputado
federal, não sou, não sou!!!” E dizer que tudo isso aconteceu por causa
de um trauma de infância, uma injustiça
cruel.
MALDITA BALA PERDIDA!
MALDITA BALA PERDIDA!
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