quarta-feira, 26 de junho de 2013

A BALA PERDIDA    
MILTON  MACIEL

Era um menino alegre, puro e inocente, na plenitude dos seus oito aninhos recém-completados. Era uma família que tinha nesse garotinho toda a sua felicidade e encantamento. Era uma escola particular, situada em um bairro de classe média alta, onde mães e pais formavam sempre irregularíssimas filas triplas com seus carrões, na hora da saída.

A vida corria tranquila e sem transtornos para todos. Aquela parte da cidade grande parecia não ter nada a ver com a atmosfera tensa e angustiada daqueles bairros onde a falta de segurança é absoluta. Como um verdadeiro oásis, o ambiente urbano onde a Escola Nova Esperança se esparramava preguiçosamente por quase um quarteirão, vivia em paz há mais de dez anos.

Mas aquela era a cidade grande. E a realidade, a dura realidade, que não poupa nem mesmo as casas dos banqueiros e dos senadores, mais dia, menos dia haveria de bafejar com seu hálito mefítico a paz da Nova Esperança. E a realidade chegou. E foi trazida por uma bala perdida.

Não faz sentido comentar o que é uma bala perdida, não a esta altura da existência em uma cidade permanentemente conturbada pela violência dos embates entre polícia e bandidos; e entre bandidos e bandidos. Hoje todos sabem muito bem o que é uma bala perdida na cidade grande.

Pois vou contar como uma bala perdida destroçou a vida tranquila de um menininho de oito anos e como veio a cobrir de revolta e opróbrio toda a sua família.

Um dia o menininho caminhava contente pelo corredor da escola, sozinho, depois que quase todos os coleguinhas tinham corrido para fora, ao final do horário de aulas. E foi ali, dentro da escola – e, não, no seu exterior, na calcada em frente, que a bala perdida veio estraçalhar sua jovem existência e, por extensão, a de sua família inteira.

O menininho já estava quase na porta de saída quando viu aquela coisa brilhante no chão do corredor. Era a bala perdida! Pudesse ele adivinhar o que viria, jamais teria se aproximado daquele brilho enganador. Mas não podia, era só uma criança inocente. Então o menininho abaixou-se e apanhou a bala.

Em sua embalagem prateada estava escrito: Bala de Hortelã Domênico. Huum, uma bala Domênico! E, ainda por cima, de hortelã, sua favorita. O menininho ficou feliz e começou a girar o papel prateado na mão, para abri-lo. Quando finalmente o conseguiu e ia colocar na boca o testemunho de sua boa sorte, ouviu uma voz estridente:

– Ladrão! Ele roubou a minha bala, mãe. Ele é um ladrão, mãe! Castiga ele!

Em vão o menininho gritou sua inocência. O outro garoto, um chato terrível e mimado, vinha pela mão da mãe. E a mãe era simplesmente a dona e diretora da escola. E essa mulher, de olhos de coruja sob os grossos aros redondos e nariz de gavião, apanhou imediatamente o menininho pela orelha, arrastando-o até sua sala, cuja porta fechou. Vinte minutos depois a porta era aberta. Lá estavam o moleque acusador, sua mãe cara de coruja nariguda e ... a mãe do menininho!

Que ouviu, mortificada, a história do roubo da bala de hortelã. Que na verdade não era roubada, era somente uma bala perdida. Mas nem mesmo sua mãe lhe deu crédito. Chorou e pediu perdão à diretora e seu filho, prometeu dar castigo exemplar ao ladrão e mentiroso quando chegasse em casa. E o fez com todo o rigor que o caso exigia. Ladrão? Pois lugar de ladrão era na cadeia. E colocou o menininho de castigo no quartinho dos fundos, a pão e água, por todo o fim-de-semana. E para cada pessoa que chegava, ela desfiava sempre a mesma história, da vergonha que havia passado na escola, por causa daquele filho tão pequeno e já tão ladrão. Doeu demais no menininho.

Pior ainda foi na escola. A diretora e o filho se encarregaram de espalhar a notícia. Logo, logo, o menininho passou a ser vítima de bullying generalizado. Ganhou de todos o apelido de Ladrãozinho. Que mudou para Ladrão assim que ele se fez maior. E Ladrãozão, depois resumido para Drãzão, pelo resto de sua vida.

O trauma foi absurdamente grande, naturalmente alguma consequência ele traria. E trouxe. Assim que chegou à idade adulta, o ex-menininho entrou para a política. Se a infelicidade o quis fazer conhecido como Drãozão, ele iria fazer por merecer o apelido. Elegeu-se vereador, depois deputado estadual, depois deputado federal. Está lá em Brasília pelo terceiro mandato consecutivo. É venal como poucos, rouba descaradamente, mete a mão no dinheiro público, faz juz ao nome Drão. Sim, conseguiu, a custa de bom investimento, mudar a maneira como era chamado por todos, eleitores inclusive: Drão. Que dizia ser homenagem ao nome de um benemérito avô inventado, Alessandro, conhecido pela alcunha de Drão.

E lá está ele ainda hoje, fazendo a vergonha de toda sua família. Todos os parentes negam que o conhecem. Sua mãe jura que nunca teve esse filho, mandou certa vez dar surra de criar bicho num jornalista, que andou investigando a fundo as origens do nobre deputado Drão. Todos os membros da família gritam a plenos pulmões que não são portadores da suprema vergonha de terem nela um deputado federal: “Eu não sou parente de deputado federal, não sou, não sou!!!” E dizer que tudo isso aconteceu por causa de um trauma de infância, uma injustiça  cruel.
MALDITA BALA PERDIDA!

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