quarta-feira, 20 de abril de 2016

LUA  OCULTA – 89  
MILTON MACIEL 

89 - CELEIRO DE CRAQUES
Fim do cap. 88:  "...viram uma turma jogando uma movimentada pelada no Campo Um. Um ônibus estacionado quase à beira do campo não deixava dúvida: eram os paulistinhas! Deviam ter chegado há um  bom tempo."

Assim que Celso e Diego saíram do Corolla, Bentinho veio recebê-los todo feliz:

– Chegaram assim que vocês saíram para almoçar, alguém entendeu errado o telefonema deles aqui. E acho que fui eu, perdão, chefe.

– Beleza! E você levou os meninos pro alojamento? E pro refeitório?

– Levei, chefe. Eles jogaram as coisas deles de qualquer jeito, desceram pro refeitório, pegaram pão ou alguma coisa miúda e saíram mastigando. Ninguém sentou pra almoçar. Imagina só pra onde eles queriam ir: pro campo, é claro. Estão lá desde que chegaram, praticamente; faz mais de uma hora que estão jogando. Olhe, a única fome que esses malucos têm é fome de bola, chefe!

– E que tal, Bentinho? Tem gente boa de bola?

– Todos, chefe! Todos! Cada puta craque, vai ser um espetáculo trabalhar com eles. Imagine só o timaço que o senhor vai poder montar com essa gurizada. O mais piá ainda não fez 14 anos, é um puta dum cara driblador, parece uma enguia. É aquele magrinho alto lá na meia-lua, ó!  E olhe só aquele cara grandão na área, o zagueiro. O senhor precisa ver o censo de colocação do cara. Um marcador do cacete, chefe! Isso aí já chegou pronto pro senhor, cracasso!

– Oba! Don Diego, vamos ficar por aqui mesmo. Está perto o suficiente para ver os moleques e longe o suficiente para eles não se importarem com a gente.

Nesse instante um mulato liso bateu uma falta com precisão milimétrica. Pois o cara que estava no gol foi buscar lá no ângulo, era impossível acreditar que o sujeito pudesse subir tanto e se esticar daquele jeito! Jogou a bola por cima do travessão e ficou tirando sarro do batedor.

Celso e Diego sentiram que a coisa ali podia ser muito, mas muito melhor do que eles estavam esperando. Que olheiro do cacete aquele! Que leva de jogadorzinho novo de potencial essa que ele tinha juntado e mandado de São Paulo!

Alguém bateu o escanteio. O goleiro subiu como um avião lá no último andar, ficou com a bola. Aí correu para o bico da área, preparou o braço direito para arremessar a bola com a mão para o lateral esquerdo, ali do outro lado da intermediária. A molecada adversária correu em cima do lateral. Pois nesse exato instante, numa fração de segundo, o goleiro abaixou a mão com a bola e deu um tremendo de um chute para a ponta direita do seu time, usando o pé esquerdo. Um carinha baixo disparou atrás da bola como um legítimo foguete espacial, totalmente desmarcado. Foi um lance de dois jogadores só: o goleiro dando o passe, o ponteirinho correndo atrás, driblando o goleiro e fazendo o gol.

Aí Celso e Diego ouviram, incrédulos: sete a sete! Putz, os caras tinham feito quatorze gols em pouco mais de uma hora de rachão. E, em campo, só havia dezoito caras, dois times de nove jogadores! Ainda essa por cima!

Bentinho entrou em campo com um apito e parou o jogo. E avisou para todos que o chefe tinha chegado. A moçada toda correu para fora, em direção aos dois homens que estavam caminhando para o campo. Aquele grandão de bigode e de paletó devia ser o bambambam.

Quando o grupo de jogadores e os dois homens mais velhos se encontraram, um dos rapazes falou:

– Olha o patrão aí, gente. Muito prazer, chefe – e apertou entusiasticamente a mão de Don Diego Rivera, o homem alto de bigode, terno e gravata. Que respondeu:

– Mucho gusto, menino. Pero o chefe de vocês no soy yo, es o Celso aqui.

O rapaz levou uma ruidosa vaia geral dos outros, que se dobravam de rir. Celso então assumiu o comando:

– Bem-vindos, meninos. Eu sou Celso Teles, o presidente e técnico do Amarante Esporte Clube. E diretor do complexo esportivo aqui, que a gente chama de Teles Academia. Como todos vocês sabem muito bem, eu estou contratando vocês para passarem por um grande treinamento, um curso completo que quer formar jogadores e homens fora de série. Vocês foram selecionados por um parceiro nosso que entende tudo de futebol e de pessoas. Ele é o avalista de cada um de vocês, me garantiu que todos, sem exceção, têm tudo, se receberem uma boa oportunidade e um bom investimento, para se tornarem craques de verdade.

A moçada toda se agitou, mas ainda mantendo um silêncio algo intimidado. Celso continuou:

– Eu observei esse final de rachão de vocês e vi que, de fato, alguns de vocês já são craques em potencial. Pois nós vamos investir em tornar realidade esse potencial. Vamos investir em técnica, tática e formação física privilegiada. Só que isso é muito pouco. Vocês são jovens demais e, portanto, ainda acreditam que, para vencer nesta carreira basta jogar muito bem. Pois eu garanto a vocês que não. É preciso muitas outras coisas, coisas extracampo, extrafutebol, que nós vamos ensinar a vocês também. Caso contrário, vocês podem se dar mal, podem vir a ser explorados, assim como podem não conseguir resistir às armadilhas do dinheiro e da fama.

– Oba, grana! – alguém falou, com entusiasmo.

É muito importante, - seguiu Celso - vital mesmo, que vocês saibam como se faz isso e como se faz com a grana, depois que ela chega na nossa mão. Acreditem, eu já passei por tudo isso. Fui juvenil de um time de São Paulo, depois profissional de um de Alagoas. Aí fui vendido para o futebol espanhol e corri o mundo, jogando em diversos times grandes. Eu ganhei muito dinheiro, virei um cara muito rico graças ao futebol. E graças a uns sujeitos muito bons, competentes e honestos, que me ajudaram muito no início da minha carreira. O mais importante de todos eles foi um empresário internacional de jogadores, que me orientou e vendeu meu passe na Espanha. Um grande, o maior profissional do ramo, para mim. Esse que vocês pensaram que fosse eu, Don Diego Rivera aqui ao meu lado, a quem tenho a honra de chamar de amigo há mais de 20 anos.

– Porra, um empresário internacional, cara! A parada aqui é alta, meu!... – comentou um dos rapazes para outro, em voz baixa, mas não tão baixa que Celso não conseguisse ouvir:

– É isso mesmo que você falou, rapaz. A parada aqui é alta mesmo. Tão alta que, desde o primeiro momento da chegada de vocês ao Amarante, já está aqui um empresário internacional, o melhor de todos, de olho em vocês. Então deixem que eu explique uma coisa que tem que ficar bem clara para vocês:

E fez um gesto calmo, como todos os seus gestos, que impôs silêncio imediato ao zunzunzum que se alastrava entre os jovens. Então prosseguiu:

– Vocês estão aqui para serem preparados para jogar no exterior. No exterior, vejam bem! Nossa organização, que é novíssima, foi criada para revelar craques para os times da Europa, especificamente. É uma parceria entre o Celso Teles aqui, Don Diego na Europa e vários olheiros que a gente tem espalhados por todo o Brasil e até em outros países da América do Sul. Essa é a nossa diferença em relação aos grandes times de futebol do Brasil, que também caçam talentos jovens para jogar em suas equipes.

– Muy bien – apoiou Don Diego.

– Eles querem vocês para o Brasil e para os times deles – continuou Celso – Mas nós queremos vocês para a Europa e os times europeus. Os muito bons, os fora de série entre vocês, serão negociados com times europeus e vão ganhar muito mais dinheiro desde o começo. Mas aqueles que forem muito bons, sem serem fora de série, encontrarão oportunidade aqui no Brasil, sim. Começarão brilhando aqui no nosso time, o Amarante Esporte Clube, o AEC, que vai funcionar como uma verdadeira vitrine para o resto do país. Nós acabamos de inaugurar o time e já vamos disputar a série D estadual. É claro que vamos ganhar fácil e aí passamos para C estadual e para a D nacional no ano que vem.

– E vamos ganhar os dois, chefe! – bradou Bentinho erguendo os punhos.

Imediatamente a molecada explodiu em um aplauso e urro uníssono:

– Vamos ganhar! Vamos ganhar!

– Campeão! Campeão!

– Isso mesmo, turma! Isso mesmo. É assim que se fala. Nós vamos ganhar todos os torneios de que participarmos, até o Amarante ser campeão brasileiro. E aí os passes de vocês, os que não tiverem ido antes para a Europa, vão valer tanto, que os grandes – Internacional, Cruzeiro, Corinthians, Santos, Flamengo, Bahia, e todos os outros – vão oferecer uma baba de dinheiro por vocês. Sacaram qual é o negócio? Em vez de vender vocês novinhos por qualquer merreca para esses grandes, a gente torna vocês grandes aqui dentro do Amarante, que vai ser grande também. Aí nós vendemos vocês por uma tremenda duma grana preta, e os caras vão ter que entrar no maior leilão. E já sabem, 15% do passe é de vocês!

– Es eso, señor! – berrou o rapaz paraguaio. Todos os outros comemoraram juntos, os olhos revirando nas órbitas, cada um se sentindo já o craque do Barcelona ou do Vasco da Gama, do Manchester United ou do Grêmio.

– Muita fama, muito sucesso, muita grana! – falou o menino mais novo da turma, aquele de 14 anos apenas. Todos o secundaram entusiasmados, eufóricos:

– Muita fama, muito sucesso, muita grana! Muita fama, muito sucesso, muita grana! Muita fama, muito sucesso, muita grana!

Celso encerrou sua primeira preleção aos recém-chegados, então:

– Muita fama, muito sucesso, muita grana! Bom, turma, agora vocês vão pro vestiário, tomem seu banho e tratem de se alimentar muito bem. Aqui nós temos nutricionista e cozinheira especiais só pra vocês. Amanhã chega o Doutor Breno, de Blumenau, especialista em medicina esportiva, para examinar e avaliar cada um de vocês. E depois de manhã chega o homem mais importante de todos pra vocês, tratem de receber muito bem o cara que vai transformar vocês de moleques delgados em homens superfortes e mais velozes. É o preparador físico, um verdadeiro prodígio no ramo; vem do Internacional de Porto Alegre, o cara é fera mesmo.

– Mas, chefe – falou de novo o mascote da turma – o homem mais importante para nós vai ser sempre o treinador, chefe. O senhor!

– Depois, meu garoto, depois. Primeiro vocês têm que passar por um completo condicionamento físico e, para isso, além de um superpreparador, vocês vão contar com a estrutura de uma superacademia com duas piscinas e dois campos de futebol. Ah, por falar nisso, tem uma boa notícia a mais pra vocês.

E o treinador, chefe e diretor fez um momento de suspense, antes de soltar a bomba:

– Dois campos de futebol, duas piscinas, porque um par é para vocês e o time do Amarante Homem. Mas o outro par de campo e piscina é para o Amarante Mulher! Isso mesmo que vocês estão pensando, cambada. Já na semana que vem começam a chegar as meninas do nosso time FEMININO! E elas vão ficar morando aqui também, no predinho delas, quase ao lado do de vocês.

Oba! – explodiram os rapazes. Mulher!!!

Mulher, sim – reforçou Celso Teles – O que é do homem sem a mulher? Mas mulher que vocês vão ter que respeitar como iguais, como colegas com os mesmíssimos direitos. Podem namorar à vontade, isto aqui não é concentração. Só não me faltem com a respeito a nenhuma menina, senão é olho da rua na mesma hora. E aí, adeus Amarante, adeus Flamengo, adeus Europa!  E faltar com o respeito é dizer besteira ou fazer coisa que a menina não quer. O que ela quiser, seja o que for, tá liberado. Entendido?

Olhou com satisfação as caras de entusiasmo e de surpresa dos garotos. E sentiu-se de novo com 17 anos, nos seus primeiros dias de insegurança e encanto no Mogi Mirim. Que maravilha, molecada! E concluiu:

- Bem vocês vão ter muito estudo puxado, inclusive sobre essas coisas, além do trabalho físico e trabalho com bola. Agora eu deixo vocês entregues ao Bentinho, que é a autoridade maior aqui na coordenação da academia. Amanhã eu venho ver vocês jogando de novo. Tchau!

Quando Celso se afastou, ao lado de Don Diego, os rapazes já estavam completamente envolvidos pelo carisma do chefe.

– Que cara simples! – comentaram – Bela forma física, hein! Não tem jeito de durão, mas a gente sente que tem autoridade, cara. 

Bentinho achou que era a hora de botar as coisas no lugar:

– Isso não é nada. Esperem só até ver o chefe pegar numa bola e jogar com vocês. Aí vocês vão ver o que é um craque completo.

E escoltou os garotos até o vestiário, para o necessário banho, que o bodum estava brabo!

Para Celso Teles, a hora do encanto tinha chegado enfim. Mas para Diego de Rivera y Alarcón, a hora do espanto estava para chegar: uma filha desconhecida!

CONTINUA

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