segunda-feira, 11 de abril de 2016

LUA  OCULTA – 86  
MILTON MACIEL 

86 – INVESTIGAÇÃO NA FEIRA DA SULANCA
Fim do cap. 84:  "Vinham buscar roupas para revender em suas cidades, que iam de Recife, Maceió, João Pessoa e outras capitais, até lugares menores e distantes, como Barbalha no Ceará, Caicó no Rio Grande do Norte, Itabaiana em Sergipe, Alagoinhas na Bahia, Montes Claros em Minas Gerais." 

E o investigador seguiu tranquilamente feira afora, prestando atenção em tudo agora, com outros olhos. Acabou-se a má-vontade, o preconceito, talvez, de ser mais um no meio daquela multidão agitada e frenética.

— Ói a calça di criança. Dois real cada uma!

A toda hora vozes estridentes espocavam em seus ouvidos. Eram vendedores e vendedoras fazendo seus pregões infindáveis, mães aflitas atrás de filhos levados:

— Larga essa coisa, sua mulesta, ti quebro no pau! Cadê Filipinho, sua muleca inresponsávi?
Alguém reclamava com o seu carroceiro:

— Anda logo, meu fio. Si mexe, meu ônibus já vai zarpá!

Sobre uma mesa larga, uma moça alta e esguia, belas feições de índia, desfilava um conjunto de saia e bustiê estampado de cinza e ocre, indo e voltando entre pilhas de roupas desordenadas, em seu exíguo espaço de 2 metros de passarela. Em resposta àquele único manequim vivo, mulheres aflitas mergulhavam as mãos nas pilhas, em busca dos números que lhes servissem:

— Ei, mulé! Mi vê mais déis tamanho P, quinze tamanho M.

— O meu troco, senhora! O meu troco, sobrou 22 reais...

A mão da vendedora passou tocando o nariz do policial, entregando o dinheiro da senhora distinta de óculos, com as três notas do troco reclamado. Eurico compreendeu que ali não era lugar para se ficar exigindo ou pedindo desculpas. O contato físico era apenas inevitável. A condição de alimária humana também ficava inevitável para alguns, sobrecarregados com enormes sacos de sacolas, com fardos desproporcionais às suas aparentes forças e tamanhos. Reparou em uma mulher de meia idade, curvada sobre uma dessas cargas desproporcionais, que avançava, toda suada, no meio do rio de gente e de carrinhos. Impulso automático, ofereceu ajuda:

— Posso lhe ajudar, moça? Quer que eu carregue um pouco?

A mulher olhou para aquele rapaz tão moço e tão branquelo, com um sotaque diferente, viu que era turista, aceitou:

— Ôxe, que maravilha, moço! Tá pesado demais mesmo. Mas tô correndo porque preciso me aliviar, tenho que chegar no banheiro do Bar do Tinoco, logo ali. Será que o senhor podia ficar com esta carga aqui um momentinho, assim eu consigo correr mais ligeiro?

Estupefato, Eurico mal conseguiu fazer que sim com a cabeça e a mulher disparou entre as pessoas e bancas, em busca do bendito sanitário. Deus do céu, quando contasse aquilo em Amarante, ninguém ia acreditar. A mulher confiava sua enorme carga de compras, centenas de reais com certeza, nas mãos de um completo desconhecido e ia aliviar a bexiga. Que confiança ingênua, que coisa impressionante. Ficou quase imóvel no mesmo lugar, depois encostou-se à mesa de uma barraca e colocou o fardo no chão, sentando-se em cima.

Agora aquilo passara a ser responsabilidade dele! Se a mulher havia confiado cegamente nele, ele não podia confiar em ninguém – afinal, era um policial. Sentou em cima da preciosa carga e não levantou enquanto sua legítima dona não reapareceu, com cara de alegre, aliviada, parecendo dez anos mais moça.

— Deus lhe pague, seu moço. O senhor é a flor da gentileza, moço fino, distinto. É de onde?

— De Santa Catarina, minha senhora. Lá no Sul.

— Logo vi que só podia ser turista. Muito obrigada por se preocupar com uma velha como eu, que o senhor nem conhece.

— Mas como velha, minha senhora? A senhora está muito longe disso, ainda está na flor da idade.

Ela fez um jeito coquete, sentiu-se momentaneamente uma garota, meneou a cabeça, sorriu, agradeceu de novo só com os olhos e abaixou-se para pegar sua carga de volta.

Eurico não permitiu:

— Não, senhora. Nada disso. Eu levo o fardo, não tenho pressa nenhuma, não tenho nada que esteja procurando por aqui, só uma pessoa.

— Mas eu ainda vou longe, seu moço, até o ponto dos ônibus de Arapiraca. Sou de Alagoas, num sabe?

— Não tem importância. Eu vou até lá e depois volto. Depois procuro o homem que me interessa.

— Muita bondade, moço, o senhor é um anjo. Mas procura quem?

— Ah, um tal de Tião das Cuecas.

— Ah, o Tião. Mas o senhor já passou por ele faz tempo, fica bem perto da entrada, do pórtico. Viu o pórtico?

— Pórtico? É acho que vi algo assim, mas não prestei atenção.

— Pois o senhor volte lá e pergunte ali pelo Tião das Cuecas. Ele é muito antigo aqui na feira, tem um lugar dos melhores. Eu comprei muita coisa dele hoje, compro sempre. O senhor não quer deixar que eu siga meu rumo e já volta lá pra ver o homem?

Eurico pensou que a recompensa por ajudar aquela mulher tinha vindo rápida demais. Tião das Cuecas que esperasse!

— Não mesmo. Vamos embora, eu levo sua carga até o ônibus. Não gosto de deixar nada pela metade.

E foi embora desfilando pela feira, agora andando devagar, arqueado sob o peso da carga, ensopado de suor, mas contente como nunca imaginou que poderia estar. Sim, senhor, estava em pleno fervo da maior feira do mundo quiçá, afogado de calor e de gente, arfante e feliz. É, feliz por estar ali, não era inacreditável?

Ora, ele tinha sido só um grande bobo, um ignorante preconceituoso. Estava ali no meio do povo, pessoas de todas as raças e de todos os portes, todos os tipos, todos os cheiros, das mocinhas perfumadas aos homens empapados de suor como ele, cheirando a bodum. Pois estava tudo muito bom! Pela primeira vez na vida ele se via no meio do povo, povo de verdade, povo vivo, estuante de vida, de pressa, de entusiasmo. E de esperança!

Sim, de esperança. Estavam todos ali para comprar, quase todos na esperança de revender as mercadorias com bons lucros. Estavam felizes porque economizavam seu suado dinheiro com preços do outro mundo.

Sim, aquele era o povo brasileiro — simples, trigueiro, alegre e cheio de esperança. Povo trabalhador, povo persistente, povo com jeito e cheiro de povo. Ah, a Feira de Caruaru era uma descoberta e tanto para Eurico!

Levou as roupas para a mulher de Arapiraca até o ônibus e ainda ficou um bom tempo conversando com ela e com outras pessoas que voltariam para Alagoas com ela. Era gente cansada e contente, suada e feliz. O Ônibus da Esperança, assim o denominou ele mentalmente. Caramba, precisava aprender mais coisa com aquela gente, percebeu que estava se tornando um sujeito fechado e ranzinza, que essa profissão o estava deixando ensimesmado e desconfiado de tudo e de todos.

Mas aquela desconhecida deixara nas suas mãos certamente todo o capital de que dispunha, para ir atrás de um banheiro. E agora estava ali, no meio das outras mulheres de sua cidade ou região, conversando alegremente, com um bom humor contagiante. Elas falavam sem cessar, riam muito, contavam de suas famílias e problemas nada pequenos, mas com uma visão de aceitação e otimismo que ele nunca tivera.

Puta que pariu, ele precisava era de povo em sua vida! Era só um imbecilzinho de 23 anos que achava que já sabia tudo, que era um tremendo de um policial. Ora, até podia vir a ser isto, quem sabe, mas ainda não era gente!

Gente eram aquelas pessoas ali na beira daquele ônibus velho de pneus gastos, de motorista que cantava repentes acompanhando-se com palmas, de homens poucos que lhe sorriam, alguns com poucos dentes, mas que o olhavam com uma simpatia e um acolhimento que ele não via no seu Sul Maravilha.

Ah, Caruaru, Caruaru! Bendita Feira da Sulanca! Graças a ela estava descobrindo o que era gente. E que ele, por enquanto ao menos, ainda não era gente...

Despediu-se da nova conhecida, que ficou sabendo chamar-se Gilmara, despediu-se de cada uma daquelas pessoas que entrou no ônibus, apertou todas as mãos, esperou pacientemente por mais 15 minutos até que o ônibus enfim saísse para Arapiraca. Acenou para aquelas pessoas, dezenas de mãos acenaram e volta para ele d dentro do ônibus e Eurico, o catarinense loiro, sentiu-se um com aquele povo de Alagoas que partia, com aquele povo de todo o Brasil que navegava sem parar o imenso mar da Feira da Sulanca.

Voltou sobre seus passos mais ou menos, perdeu-se algumas vezes, o que não o incomodou nem um pouco, apenas o divertiu ainda mais. Ótimo, quanto mais tempo na Sulanca, melhor. Tião da Cuecas, o irmão de Natanael Bergonzi era dono de barraca. Logo, não poderia ir embora antes do fim da feira. Tinha tempo de sobra.

Foi andando e aproveitando, parando, observando, escolhendo e... comprando. Levaria muita roupa de verão para ele, algumas peças para o Mota e o delegado. Presentes baratíssimos, mas que certamente haveriam de agradar os destinatários, bastava não dizer o preço ínfimo que pagara. Lamentou não ter uma namorada para presentear, mas, mesmo assim, não pôde resistir, comprou por precaução. Calcinhas, sutiãs, blusas, saias, vestidos, casaquinhos – enfim, um estoque de roupas com as quais poderia deixar muito impressionada a garota que viesse a escolher ali em Amarante.
Aliás, ia tratar de fazer isso logo de chegada. Já era tempo de se enroscar com alguém, especialmente agora que chegaria armado para a guerra, com um arsenal de roupinhas simples, porém vistosas e com bom acabamento, capazes de sensibilizar qualquer mulher. Oba!

Assim, de barraca em barraca, sem nem se importar pro que rumo ou corredores andava, chegou, sem ter procurado por ele, à beirado do pórtico. Sim, só podia ser aquilo. Uma estrutura de tijolos aparentes, encimada por vigas de metal, que ostentavam uma espécie de losango largo, onde se lia:

Bem-vindos à Feira de Caruaru
Compositor Onildo Almeida
Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro

À direita, logo abaixo da estrutura horizontal, havia uma estátua, certamente do compositor. Trataria de se informar depois sobre isso e sobre quem era Onildo Almeida. Agora era hora de encontrar Tião das Cuecas enfim.

Nem precisou perguntar. Seu ouvido, agora já acostumado a distinguir sons no meio de milhares de sons, tornou a ouvir algo que lhe soou familiar:

— Quinze calcinhas, dez reais! — Tião era o cara das cuecas e das calcinhas por atacado!

Olhou para o homem alto, delgado, cabelos pretos, um bigode discreto. E uma indiscutível semelhança de tipo físico e semblante com o Natanael Bergonzi das fotografias que trouxera, embora tivesse a pele morena dos sempre expostos ao sol do Nordeste. Afastou algumas roupas penduradas de cabides, que lhe atrapalhavam a visão, e viu uma modesta plaquinha na barraca enorme em frente à qual o homem de bigode apregoava suas calcinhas: ali estava escrito um inequívoco Tião das Cuecas.

Esperou pacientemente que Tião se cansasse de gritar e passasse a atribuição a um rapaz baixote e gorducho, de impressionante voz aguda de tenor. Quando o feirante entrou na barraca, Eurico foi atrás. Agora era hora de falar a verdade, não precisava do tal papo furado de “sócio, amigo e irmão” de Natanael Bergonzi. Irmão de verdade era aquele ali à sua frente, abaixado e colocando dinheiro em uma pequena caixa de metal.

Eurico abordou Tião com uma foto de Natanael em uma das mãos e sua identidade de policial na outra. O homem olhou a foto, a identidade e os olhos do policial longamente e falou enfim:

— Atrás dele? Aprontou alguma grande. Pois não me surpreende. Pau que nasce torto, morre torto. Quem foi que ele matou agora? Mais vergonha para a nossa família.

— Há alguma chance de conversarmos em um lugar mais silencioso, pode ser no fim da feira ou de tarde ou de noite, o senhor marca, eu espero. Vim de Santa Catarina especificamente para isso.

— Não, não, agora eu estou mais do que curioso também. Vamos sair daqui, tenho gente boa para ficar no meu lugar. Laurindo! Assume aqui, vou no Toquinho. Qualquer coisa, pega o berro no celular. Vamos, por favor, é perto.

Passaram pela parte de trás da barraca e andaram menos de um quarteirão. Então Tião levou seu visitante para dentro do boteco de propriedade do simpático Toquinho, um homenzinho fininho de no máximo 1,50 m de altura, todo proporcional, de forma alguma um anão. Por um instante Eurico lembrou-se de já ter visto referências a uma espécie de pessoas de estatura muito baixa, que viviam alguma região do Nordeste. Não conseguiu recordar onde. Mais uma coisa para averiguar depois. Caruaru, pelo jeito, ia lhe ensinar muito mais lições do que ele podia imaginar.

O próprio Toquinho veio lhes servir cerveja bem gelada e trouxe bolinho de macaxeira com carne seca. Uma delícia! — reconheceu Eurico, entusiasmado.

Tião resolveu tirar sarro do baixinho:

— E aí, Toquinho, continua esportista? Alpinista de lombada? Escalando meio-fio com cordas?
Mas Toquinho estava acostumado desde criancinha, não dava a mínima, entrava na brincadeira e ria muito:

— Não mesmo, seu cuequeiro da mulesta. Sigo Pitoco de Amarrar Jegue, Tamburete de Forró. Mas, como dizem que baixinho ixeste pra levá recado pra puta, há os que me chama de Tamburete de Quenga.

E riu, divertido, enchendo mais um copo de cerveja para ele mesmo, saindo a bebê-la enquanto andava pelo bar.

Tião comentou:

— O Homem é de Orobó, aqui em Pernambuco, tem muita gente pequena como ele por lá. É flor de sujeito, gente boa mesmo. Mas vamos lá, diga o que aquele disgramado do meu irmão aprontou por lá? Matou alguém?

— Vamos nos tratar de você, por favor. Você sabia que esse seu irmão esteve dois meses aqui em Caruaru, hospedado no Maysa?

O homem mal pôde acreditar:

— Desgraçado! Dois meses aqui e nada de procurar a família. E gastando dinheiro como milionário. Enricou enfim o desgraçado?  Ou roubou um banco e fugiu? Deu desfalque na firma? Esse é capaz de tudo por dinheiro. De tudo mesmo. Ou vai ver matou alguém pra roubar.

— Bem, pelo que vejo o senhor – quer dizer, você – não tem esse seu irmão em boa conta. Então deixe eu lhe contar o que sei e já lhe digo por que razão a polícia da minha cidade me mandou pra cá, atrás dele.

CONTINUA

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