sábado, 16 de abril de 2016

LUA  OCULTA – 88  
MILTON MACIEL 

88 – POR SER COBARDE!
Fim do cap. 87:  " Volta e meia Eurico lembrava da senhora do fardo pesado e do pessoal do ônibus de Arapiraca. E isso o deixava emocionado." 

Na quarta feita anterior à viagem do investigador Eurico a Caruaru, aconteceu a chegada de Don Diego Rivera a Amarante, para euforia total de Celso Teles, para surpresa total de Carmen de Rios e para pânico total de Gládis De Rios.

Após a chocante descoberta que o antigo cantor argentino, agora convertido em empresário internacional de jogadores de futebol estava materializado à sua frente, Carmen ficou inteiramente paralisada, sem reação, como se fosse uma estátua. Tudo o que tinha conseguido falar, antes de desabar sentada sobre o sofá da sala de Celso foi:

– Usted?!

Sim, a única palavra tinha sido aquele você que começara gritado e terminara sussurrado, já num tênue fio de voz. Certamente outra pessoa teria, quem sabe, até perdido os sentidos com o choque. Mas Carmen de Rios tinha um autocontrole inimaginável. Apenas travou e ficou um longo tempo imóvel e sem voz, com os olhos cobertos pelas mãos em concha, como se se recusasse a ver o que seus olhos veriam, se os abrisse.

Diego Rivera de Alarcón também ficou em estado de choque, porém, ao contrário de Carmen, pousou sobre ela o seu olhar incrédulo e não o retirou mais do semblante encoberto pelas mãos.
Celso Teles, percebendo que os dois se conheciam e que algo muito sério existia no passado deles, saiu de sua sala e deixou-os a sós, para que conversassem.

Depois de cerca de cinco minutos de completo silenciO, foi Diego Rivera quem primeiro procurou falar:

 – Carmencita...

Carmen finalmente retirou as mãos que cobriam os olhos e, para surpresa total do argentino, levantou do sofá, voltou as costas para ele e cantou um trecho de uma canção que dançava em uma de suas apresentações de flamenco, de nome “En el Darse Está la Gloria del Amor”:

“En el darse está la gloria del amor,
Entregarse, sin miedo es el secreto.
En amor nada hay que sea concreto
Por lo tanto hay que arrojarse sin temor.

Va usted sufrir? Si, más cedo o más tarde,
No existe amor sin sufrimiento, es esto cierto.
Pero, si uno no se arriesga, por miedo del incierto
El bueno del amor no lo tendrá, por ser cobarde!”

O homem apenas ouviu em silencio, aparvalhado e murmurou de novo, ao final:

– Carmencita...

– Cobarde! – Foi a única palavra que ela usou como resposta.

– Carmencita... perdón... Perdón, te lo ruego. Yo no sabía lo que hacía y…

– Cobarde! Nada más que um cobarde. Es todo lo que fuíste: um cobarde!

Então Carmen começou a falar. E não parou mais. Vinte e cinco anos de mágoas fechadas a sete chaves dentro de seu peito irromperam como uma avalanche incontrolável. E o que deixou o homem mais desconcertado, foi que, em nenhum momento, Carmen perdeu o controle de suas palavras, jamais ergueu a voz, nunca chorou, falou tudo em tom monocórdio, calmo, lento, mas tenaz, implacável, sem permitir qualquer tentativa de interrupção.

Diego entendeu, depois de algum tempo, que aquela era a voz da mágoa e do rancor. Teve certeza que ela jamais o perdoara e jamais o perdoaria. E ouviu todo o restante de cabeça baixa. Era uma fala de 25 anos. E ele não tinha nada que pudesse dizer em sua defesa.

Carmen chamou-o inúmeras outras vezes de covarde. Disse-lhe que, se ele pudesse provar que não deixara a esposa porque a amava, ela seria capaz de aceitar e perdoá-lo. Mas ela, ele e toda a Argentina sabiam que essa não era a verdade. Não, ele não amava aquela mulher a quem havia traído outras vezes, do alto de sua grande fama de maior cantor de tango de sua época.

Ele ensaiou uma resposta:

– Pero yo te amé, te amé de verdad, tu lo sabes. Solo a ti amé…

Mas teve que engolir em seco quando ela lhe disse, com aquela calma enervante, que ele tanto a amou que preferiu sua carreira a esse amor “de verdade”. Não, ele não fora capaz de amar Carmen mais do que amava os holofotes, o sucesso, o dinheiro fácil. E, ante um divórcio que arranharia e poria em risco sua carreira, ele fora insensível e implacável.

Por isso ela fugira de Buenos Aires e cortara todo e qualquer contato com ele para sempre. Para sempre, até que a vida aprontasse com ela a desgraça desse encontro de hoje.

Então ela chegou ao ponto culminante de sua fala. Explicando que, se não houvesse outra pessoa envolvida nisso, ela simplesmente teria ignorado Diego e se recusado a falar com ele nesse momento. Mas havia essa outra pessoa. E essa outra era uma criatura muito especial, que tinha incríveis dons de percepção extra-sensorial, de paranormalidade. E, infelizmente para ela, Carmen, essa outra criatura havia percebido claramente quem era Diego Rivera. E ela estava ali mesmo, na firma de Celso Teles, a poucos metros da sala onde eles estavam. E então falou a frase chave:

– Cuando me fui de Buenos Aires, para nunca más verte, yo estaba embarazada. Llevaba en mi vientre una hija tuya. Que nunca te dejé saber que existía. Y nunca lo dejaría, no estuviera la chica a menos de quince metros de ti y consciente de que eres su padre que no conoce.

A frieza da voz de Carmen cortava como punhal, dava a Diego Rivera a certeza de que tudo o que ela falava era verdade incontestável. Uma filha! Ali, ao lado, quase na mesma sala, ao alcance dele.

– Ah, Dios, mío, Dios mío, que castigo! Tengo más una hija y no me la dejaste conocer jamás, Carmencita! No…

– La vas a conocer, no lo puedo más evitar. Ruega para que te quiera ella ver. No te lo puedo garantizar. Es una chica guapa, morocha, de 23 años, vendedora aquí como yo y, como yo, bailarina de flamenco. Es lindísima. Y, además, buenísima, una alma de Dios. Claro, no la mereces.

– Y la puedo ver ahora? Me recibirá bien?

– No lo creo. Pero dale tiempo. Vete de acá, vuelve más tarde, cuando esté más calma ella. Entonces, quizás, te reciba. Hoy, todavía…

Y tu, Carmencita?

– Yo? Bueno, ya hablé contigo todo lo que tenía que hablar. Mejor que nos hablemos otra vez dentro de más 25 años. Adiós.

– Pero, Carmencita...

– Adiós, vete. Vete, déjame aquí. Vete.

Carmen voltou a sentar, voltou a colocar as mãos sobre os olhos, como se dissesse claramente: não quero mais ver você, nem mesmo agora nesta sala. Vai-te. Vai-te!

Diego Rivera saiu da sala de Celso Teles arrasado. Enfiou-se no grande salão entre os automóveis expostos, quase sem ver onde ia, esbarrando nos veículos, tonto e com lágrimas nos olhos. Vagou assim por uns minutos, até que foi tirado de seu devaneio pela voz de Celso Teles, que voltava da oficina.

Então Diego Rivera contou tudo ao seu antigo protegido e sempre amigo. E Celso teve certeza que o destino jogara pesado com todas aquelas três pessoas. Sim, como havia desconfiado, Diego era mesmo o pai de Gládis. Daí todo o aparente desespero da espanholita filha.

Então Celso teve o bom senso de tirar o argentino do ambiente de sua firma e levá-lo para a Academia. Tanto ele, quanto Gládis, precisavam de mais tempo para se preparar para o encontro inevitável.

Celso percorreu todas as instalações com Don Diego, levou-o aos dois campos de futebol, mostrou os alojamentos para os meninos e meninas, moças e rapazes. E a tremenda área da academia, muito aumentada agora, pronta para ser entregue à direção do tremendo preparador físico que estava para chegar do Rio Grande do Sul, diretamente do Internacional de Porto alegre.

No ar a expectativa da chegada do ônibus com os jogadores que vinham do interior de São Paulo e com o rapaz paraguaio. Um telefonema recebido por Bentinho na Academia dava conta que o ônibus tivera um problema mecânico e que só poderia chegar depois de duas da tarde.

A chegada dos garotos era a esperança de Celso para levantar um pouco ao astral do amigo. Na ausência desse estímulo, levou-o para almoçar na churrascaria. Mas o homem mal tocou na comida, só bebeu e bebeu. Bebeu muito vinho. Isso soltou-lhe a língua e os canais lacrimais. Um tanto bêbado, mas ainda controlado, Don Diego Rivera de Alarcón abriu-se com Celso Teles, em seu claudicante portunhol, misturando palavras de espanhol e português:

– Mea culpa. Mea culpa, mea maxima culpa! No tenho perdón, Celso. Fui cobarde com Carmencita. Hace isto vinte e cinco anos, imagina-te. Yo era cantante. Cantante y cantautor, era Mariano Rodrigues, famoso em toda Argentina y até fora dela. Era casado, más me apasioné por Carmencita, la mujer más fascinante de toda mi vida. Pero no dejé mi esposa, eso ia estragar a mia carrera, comprendes? Y entre o amor y la carrera… Bueno, me quedé con la carrera. Ah, yo fui um miserable, amigo. Un fraco. Como me arrepentí. Nunca más amé otra mujer como amé Carmencita. Fue mi desgracia.

– E o que aconteceu, depois que ela sumiu da sua vida?

– Ah, Celso, entonces eu vi la burrice que fiz. Todo ficó horrible. Y eu dané a beber, beber mucho. Y eso me acabó la carrera más rápido do que si me fuera con Carmencita.  

– Céus! Que horror, amigo...

– Foi mi castigo, amigo. Mi castigo. Perdi Carmencita y perdi mi carrera. Burro! Cobarde!

– E como o senhor conseguiu sair dessa?

– Ah, el bendito futebol me salvo, Celso. Es que antes de ser cantor, eu era jugador de futebol, no era malo, era um center half até que bueno. Fui juvenil de Racing. Pero el tango me dava más possibilidades de ganar plata. Y deje el futebol, viré cantor.

– Então o senhor voltou ao futebol?

– Si, chico. Pero ya no dava mas para ser jugador. Entonces fui ser auxiliar de um técnico. Y de eso pasé ao comercio de jugadores. Y acabé trabajando com um grande empresário espanhol, me fuí para Espanha. Y em Espanha, todo me sorriu de novo.

– Até o amor, espero.

– Bueno, tuve algunas mujeres, si. Pero nada tan profundo como Carmencita. Esta es única, Celso, créeme. Única!

– E ela? Como foi com ela esta manhã?

Mal. Muy mal, amigo. Me desprecia. Não me perdoa, nunca. Me mandó embora: vete. Vai-te, em português: Vai-te!

– E Gládis?

– Bueno, que vou a hacer, Celso? Me quer ver ela o no? No sé. Y tengo miedo, amigo, miedo. Será un momento terrible frente a frente con una filha que nunca conoci.

– Bem, Don Diego, tenha paciência. Vamos esperar. Carmen e Gládis devem estar conversando muito, lá na firma. Quando tiverem uma posição, certamente alguém liga aqui para mim. Mas vamos voltar para a Academia. Os meninos de São Paulo devem estar chegando agora mesmo!

Passaram mais de duas horas na churrascaria, praticamente só conversando e esperando o tempo passar. O ônibus só chegaria depois das duas. Um rango caprichado estava na Academia à espera dos jogadores, deviam chegar com muita fome, imaginava Celso.

Mas, quando chegaram no complexo esportivo da Rua Tuiuti, já de longe viram uma turma jogando uma movimentada pelada no Campo Um. Um ônibus estacionado quase à beira do campo não deixava dúvida: eram os paulistinhas! Deviam ter chegado há um  bom tempo.

CONTINUA



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