MILTON MACIEL
88 – POR SER COBARDE!
Fim do cap. 87: " Volta e meia Eurico lembrava da senhora do fardo pesado e do pessoal do ônibus de Arapiraca. E isso o deixava emocionado."
Na quarta feita anterior
à viagem do investigador Eurico a Caruaru, aconteceu a chegada de Don Diego
Rivera a Amarante, para euforia total de Celso Teles, para surpresa total de
Carmen de Rios e para pânico total de Gládis De Rios.
Após a chocante
descoberta que o antigo cantor argentino, agora convertido em empresário
internacional de jogadores de futebol estava materializado à sua frente, Carmen
ficou inteiramente paralisada, sem reação, como se fosse uma estátua. Tudo o
que tinha conseguido falar, antes de desabar sentada sobre o sofá da sala de
Celso foi:
– Usted?!
Sim, a única palavra
tinha sido aquele você que começara
gritado e terminara sussurrado, já num tênue fio de voz. Certamente outra
pessoa teria, quem sabe, até perdido os sentidos com o choque. Mas Carmen de
Rios tinha um autocontrole inimaginável. Apenas travou e ficou um longo tempo
imóvel e sem voz, com os olhos cobertos pelas mãos em concha, como se se
recusasse a ver o que seus olhos veriam, se os abrisse.
Diego Rivera de Alarcón
também ficou em estado de choque, porém, ao contrário de Carmen, pousou sobre
ela o seu olhar incrédulo e não o retirou mais do semblante encoberto pelas
mãos.
Celso Teles, percebendo
que os dois se conheciam e que algo muito sério existia no passado deles, saiu
de sua sala e deixou-os a sós, para que conversassem.
Depois de cerca de cinco
minutos de completo silenciO, foi Diego Rivera quem primeiro procurou falar:
– Carmencita...
Carmen finalmente retirou
as mãos que cobriam os olhos e, para surpresa total do argentino, levantou do
sofá, voltou as costas para ele e cantou um trecho de uma canção que dançava em
uma de suas apresentações de flamenco, de nome “En el Darse Está la Gloria del Amor”:
“En el darse está la gloria del amor,
Entregarse, sin miedo es el secreto.
En amor nada hay que sea concreto
Por lo tanto hay que arrojarse sin temor.
Va usted sufrir? Si, más cedo o más tarde,
No existe amor sin sufrimiento, es esto cierto.
Pero, si uno no se arriesga, por miedo del incierto
El bueno del amor no lo tendrá, por ser cobarde!”
O
homem apenas ouviu em silencio, aparvalhado e murmurou de novo, ao final:
–
Carmencita...
–
Cobarde! – Foi a única palavra que ela usou como resposta.
– Carmencita... perdón... Perdón,
te lo ruego. Yo no sabía lo que hacía y…
–
Cobarde! Nada más que um cobarde. Es todo lo que fuíste: um cobarde!
Então
Carmen começou a falar. E não parou mais. Vinte e cinco anos de mágoas fechadas
a sete chaves dentro de seu peito irromperam como uma avalanche incontrolável.
E o que deixou o homem mais desconcertado, foi que, em nenhum momento, Carmen perdeu
o controle de suas palavras, jamais ergueu a voz, nunca chorou, falou tudo em
tom monocórdio, calmo, lento, mas tenaz, implacável, sem permitir qualquer
tentativa de interrupção.
Diego
entendeu, depois de algum tempo, que aquela era a voz da mágoa e do rancor.
Teve certeza que ela jamais o perdoara e jamais o perdoaria. E ouviu todo o
restante de cabeça baixa. Era uma fala de 25 anos. E ele não tinha nada que
pudesse dizer em sua defesa.
Carmen
chamou-o inúmeras outras vezes de covarde. Disse-lhe que, se ele pudesse provar
que não deixara a esposa porque a amava, ela seria capaz de aceitar e
perdoá-lo. Mas ela, ele e toda a Argentina sabiam que essa não era a verdade.
Não, ele não amava aquela mulher a quem havia traído outras vezes, do alto de
sua grande fama de maior cantor de tango de sua época.
Ele
ensaiou uma resposta:
– Pero yo te amé, te amé de
verdad, tu lo sabes. Solo a ti amé…
Mas
teve que engolir em seco quando ela lhe disse, com aquela calma enervante, que
ele tanto a amou que preferiu sua carreira a esse amor “de verdade”. Não, ele
não fora capaz de amar Carmen mais do que amava os holofotes, o sucesso, o
dinheiro fácil. E, ante um divórcio que arranharia e poria em risco sua
carreira, ele fora insensível e implacável.
Por
isso ela fugira de Buenos Aires e cortara todo e qualquer contato com ele para
sempre. Para sempre, até que a vida aprontasse com ela a desgraça desse
encontro de hoje.
Então
ela chegou ao ponto culminante de sua fala. Explicando que, se não houvesse
outra pessoa envolvida nisso, ela simplesmente teria ignorado Diego e se
recusado a falar com ele nesse momento. Mas havia essa outra pessoa. E essa
outra era uma criatura muito especial, que tinha incríveis dons de percepção
extra-sensorial, de paranormalidade. E, infelizmente para ela, Carmen, essa
outra criatura havia percebido claramente quem era Diego Rivera. E ela estava
ali mesmo, na firma de Celso Teles, a poucos metros da sala onde eles estavam.
E então falou a frase chave:
– Cuando me fui de Buenos Aires,
para nunca más verte, yo estaba embarazada.
Llevaba en mi vientre una hija tuya. Que nunca te dejé saber que existía. Y
nunca lo dejaría, no estuviera la chica a menos de quince metros de ti y
consciente de que eres su padre que no conoce.
A
frieza da voz de Carmen cortava como punhal, dava a Diego Rivera a certeza de
que tudo o que ela falava era verdade incontestável. Uma filha! Ali, ao lado, quase
na mesma sala, ao alcance dele.
– Ah, Dios, mío, Dios mío, que
castigo! Tengo más una hija y no me la dejaste conocer jamás, Carmencita! No…
– La vas a conocer, no lo puedo
más evitar. Ruega para que te quiera ella ver. No te lo puedo garantizar. Es
una chica guapa, morocha, de 23 años, vendedora aquí como yo y, como yo,
bailarina de flamenco. Es lindísima. Y, además, buenísima, una alma de Dios.
Claro, no la mereces.
– Y la puedo ver ahora? Me
recibirá bien?
– No lo creo. Pero dale tiempo. Vete de acá, vuelve más tarde, cuando
esté más calma ella. Entonces, quizás, te reciba. Hoy, todavía…
–
Y tu, Carmencita?
– Yo? Bueno, ya hablé contigo
todo lo que tenía que hablar. Mejor que nos hablemos otra vez dentro de más 25
años. Adiós.
–
Pero, Carmencita...
– Adiós, vete. Vete, déjame aquí.
Vete.
Carmen
voltou a sentar, voltou a colocar as mãos sobre os olhos, como se dissesse
claramente: não quero mais ver você, nem mesmo agora nesta sala. Vai-te.
Vai-te!
Diego
Rivera saiu da sala de Celso Teles arrasado. Enfiou-se no grande salão entre os
automóveis expostos, quase sem ver onde ia, esbarrando nos veículos, tonto e
com lágrimas nos olhos. Vagou assim por uns minutos, até que foi tirado de seu
devaneio pela voz de Celso Teles, que voltava da oficina.
Então
Diego Rivera contou tudo ao seu antigo protegido e sempre amigo. E Celso teve
certeza que o destino jogara pesado com todas aquelas três pessoas. Sim, como
havia desconfiado, Diego era mesmo o pai de Gládis. Daí todo o aparente
desespero da espanholita filha.
Então
Celso teve o bom senso de tirar o argentino do ambiente de sua firma e levá-lo
para a Academia. Tanto ele, quanto Gládis, precisavam de mais tempo para se
preparar para o encontro inevitável.
Celso
percorreu todas as instalações com Don Diego, levou-o aos dois campos de
futebol, mostrou os alojamentos para os meninos e meninas, moças e rapazes. E a
tremenda área da academia, muito aumentada agora, pronta para ser entregue à direção
do tremendo preparador físico que estava para chegar do Rio Grande do Sul, diretamente
do Internacional de Porto alegre.
No
ar a expectativa da chegada do ônibus com os jogadores que vinham do interior
de São Paulo e com o rapaz paraguaio. Um telefonema recebido por Bentinho na
Academia dava conta que o ônibus tivera um problema mecânico e que só poderia
chegar depois de duas da tarde.
A
chegada dos garotos era a esperança de Celso para levantar um pouco ao astral
do amigo. Na ausência desse estímulo, levou-o para almoçar na churrascaria. Mas
o homem mal tocou na comida, só bebeu e bebeu. Bebeu muito vinho. Isso soltou-lhe
a língua e os canais lacrimais. Um tanto bêbado, mas ainda controlado, Don
Diego Rivera de Alarcón abriu-se com Celso Teles, em seu claudicante portunhol,
misturando palavras de espanhol e português:
– Mea culpa. Mea culpa,
mea maxima culpa! No tenho perdón, Celso. Fui cobarde com
Carmencita. Hace isto vinte e cinco anos, imagina-te. Yo era cantante. Cantante
y cantautor, era Mariano Rodrigues, famoso em toda Argentina y até fora dela. Era casado, más me apasioné por Carmencita, la mujer más
fascinante de toda mi vida. Pero no dejé mi esposa, eso ia estragar a mia
carrera, comprendes? Y entre o amor y la carrera… Bueno, me quedé con la
carrera. Ah, yo fui um miserable, amigo. Un fraco. Como me arrepentí. Nunca más
amé otra mujer como amé Carmencita. Fue mi desgracia.
–
E o que aconteceu, depois que ela sumiu da sua vida?
– Ah, Celso, entonces eu vi la
burrice que fiz. Todo ficó horrible. Y eu dané a beber, beber mucho. Y eso me
acabó la carrera más rápido do que si me fuera con Carmencita.
–
Céus! Que horror, amigo...
– Foi mi castigo, amigo. Mi
castigo. Perdi Carmencita y perdi mi carrera. Burro! Cobarde!
–
E como o senhor conseguiu sair dessa?
–
Ah, el bendito futebol me salvo, Celso. Es que antes de ser cantor, eu era
jugador de futebol, no era malo, era um center half até que bueno. Fui juvenil de Racing. Pero el tango me dava más
possibilidades de ganar plata. Y deje el futebol, viré cantor.
–
Então o senhor voltou ao futebol?
–
Si, chico. Pero ya no dava mas para ser jugador. Entonces fui ser auxiliar de um
técnico. Y de eso pasé ao comercio de jugadores. Y acabé trabajando com um
grande empresário espanhol, me fuí para Espanha. Y em Espanha, todo me sorriu
de novo.
–
Até o amor, espero.
– Bueno, tuve algunas mujeres,
si. Pero nada tan profundo como Carmencita. Esta es única, Celso, créeme. Única!
–
E ela? Como foi com ela esta manhã?
–
Mal. Muy mal, amigo. Me desprecia. Não
me perdoa, nunca. Me mandó embora: vete. Vai-te, em português: Vai-te!
–
E Gládis?
–
Bueno, que vou a hacer, Celso? Me quer ver ela o no? No sé. Y tengo miedo, amigo, miedo. Será un momento
terrible frente a frente con una filha que nunca conoci.
–
Bem, Don Diego, tenha paciência. Vamos esperar. Carmen e Gládis devem estar conversando
muito, lá na firma. Quando tiverem uma posição, certamente alguém liga aqui
para mim. Mas vamos voltar para a Academia. Os meninos de São Paulo devem estar
chegando agora mesmo!
Passaram
mais de duas horas na churrascaria, praticamente só conversando e esperando o
tempo passar. O ônibus só chegaria depois das duas. Um rango caprichado estava
na Academia à espera dos jogadores, deviam chegar com muita fome, imaginava
Celso.
Mas,
quando chegaram no complexo esportivo da Rua Tuiuti, já de longe viram uma
turma jogando uma movimentada pelada no Campo Um. Um ônibus estacionado quase à
beira do campo não deixava dúvida: eram os paulistinhas! Deviam ter chegado há
um bom tempo.
CONTINUA
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