quinta-feira, 7 de abril de 2016

LUA  OCULTA – 82  
MILTON MACIEL 

82 – É DE ENLOUQUECER!
Fim do cap. 81:  "–Vou agora mesmo - respondeu Eurico - pra firma que era do Silva, conversar com todo mundo lá. Alguma coisa a gente sempre consegue arrancar. E, de qualquer forma, é melhor do que a gente ficar aqui filosofando com a bunda na cadeira. Fui!" 

Há dias na vida da gente que são terríveis. Mas há também outros dias em que tudo parece se combinar para nos deixar absolutamente ensandecidos... de FELICIDADE.

Na bendita Amarante, Celso Teles já havia conhecido mais de um desses dias dourados. Todo eles envolviam Larissa Silva, é bem verdade. Mas agora mais um desses dias gloriosos estava chegando. Na verdade, eram algumas pessoas que estavam chegando, todas no mesmo dia. E o dia era exatamente este que amanhecera com um sol radioso, como há muito tempo Celso não percebia.

Ora, quando as coisas que estão para acontecer são capazes de deixar uma pessoa doida de felicidade, então o maior sol ou a maior tempestade serão percebidos como notáveis, maravilhosos, celestiais. Coincidiu que nesta manhã brilhava o sol normalmente, como tão comumente fazia nas manhãs de Amarante.

Para Celso Teles aquele era o maior e mais esplêndido, o mais brilhante sol que ele já havia notado no céu inacreditavelmente azul do sul do Brasil.

Tomou café com Lissinha na própria empresa; naquela manhã ele estava inquieto, apressado, chegando à Teles Automóveis já às sete da manhã. O preço que pagou foi raríssimo: naquela manhã, pela primeira vez desde que viera para Amarante, Celso Teles não correu seus 12 quilômetros sagrados de todos os dias.

Até mesmo Larissa Silva, que não tinha nada do sexto sentido da espanholita Gládis, percebeu que algo de muito especial estava para acontecer. Nunca tinha visto seu homem tão elétrico, tão agitado, tão incapaz de parar em um lugar. Engoliu o café quente mesmo, a ponto de quase se queimar, esvaziando a xícara média com dois goles somente. Não comeu absolutamente nada.

– Meus Deus – pensou Lissinha –  aí vem coisa grande!

Mas, apesar de roer-se de curiosidade mais do que nunca, obedeceu à determinação de sua guru Gládis De Rios: não perguntou nada a Celso.

O que Celso aguardava nervosamente era um automóvel e um ônibus. A chegada daqueles dois veículos ia colocar fogo em sua vida, mais do que qualquer outro negócio que fora capaz de fazer no Brasil. A expectativa, para ele, era de enlouquecer!

O automóvel chegaria daí a pouco, dirigido por Lucas. Trazia como passageiro um certo homem com quem ele havia falado longamente ao telefone há dois dias, quando acertaram todos os detalhes da visita que ele faria a Celso Teles em Amarante. O homem vinha de uma longa viagem, tendo chegado ao Brasil no dia anterior. Agora tinha voado de São Paulo para Navegantes e, se o avião tivesse aterrissado no horário, Lucas deveria chegar ali a qualquer instante. E, de dentro do carro dele, desceria o homem que haveria de revolucionar a vida de Celso daí em diante.

Contudo, por essas brincadeiras estranhas do destino, havia no ônibus que estava a caminho de Amarante, vindo do interior de São Paulo, outros homens que tinham o mesmo ou até maior potencial de revolução para a vida de Celso Teles. E ônibus e carro aportariam na Teles quase no mesmo horário, gerando toda a enorme tensão elétrica de que ele se via inundado. Era a primeira vez na vida que ele ia ter que lidar com todos esses tipos de contatos e energias, era tudo absoluta novidade para ele. Nada do que ele havia vivido antes tinha qualquer paralelo com aqueles momentos que estavam para chegar.

E a pessoa tão esperada enfim desceu do automóvel de Lucas e foi recebida por Celso Teles no estacionamento mesmo, com abraços e expressões de entusiasmo:

– Don Diego Alarcon de Rivera em pessoa, em meu humilde território. Seja muito bem-vindo, amigo, é uma honra para mim!

O homem de meia idade, alto e bem-apessoado, elegantemente trajado com um conjunto de calça azul-marinho e blaser branco, usando uma discreta gravata de seda também de cor azul-marinho, tirou os óculos de sol e retribui à gentileza de seu interlocutor:

 – O honor es todo meu, Don Celso. Su importância es muy grande para mim também, no se olvide de esso. Nuestros negócios no van a ser cosa pequena – Don Diego falava um portunhol caprichado, em que o castelhano predominava nos primeiros momentos, mas que, à medida em que o tempo de diálogo passava, mais palavras em português afluíam-lhe à memória. Um cosmopolita consagrado, ele estivera inúmeras vezes no Brasil e em Portugal, sempre em viagens de negócios nas quais precisava passar longas estadas em inúmeras cidades desses países.

Lucas, o diligente Lucas, deu sua missão por finda, não havia porque atrapalhar a conversação entre os dois outros homens em pé ali no estacionamento:

– Bem, chefe. Don Diego. Agora já posso me retirar para o meu escritório. Don Diego e eu tomamos um excelente café da manhã no aeroporto mesmo. Tenham um excelente dia. Ah, Don Diego, é a primeira vez na vida que eu tenho o prazer de conhecer um cidadão da Espanha.

O “espanhol” riu e respondeu:

– Pois mi caro, vai continuar sin conocer um espanhol. Yo soy argentino.

Lucas riu amarelo, apertou a mão do argentino, na verdade um portenho típico, e se retirou. Ainda não eram oito da manhã, na empresa só estavam os seguranças e o infalível Fúlvio Rondelli, já às voltas com seus motores desde as sete da manhã, na oficina. Rondelli era invariavelmente o primeiro a chegar e o último a sair, todos os dias. No setor de vendas, só Larissa Silva caminhava entre os veículos novos e dava retoques na arrumação das mesas e estantes.

Quando Celso entrou no saguão com o visitante, este levou um susto com a beleza de Larissa. Arregalou os olhos e voltou a cabeça para seu anfitrião imediatamente, como a perguntar “Quem é essa?” E a demandar uma apresentação. Ante a fama de galanteadores dos argentinos e o olhar perplexo e entusiasmado de Don Diego, Celso resolveu marcar território:

– Don Diego, tenho o prazer de lhe apresentar minha noiva Larissa.

O homem estava embasbacado, tinha acabado de ficar frente a frente com os olhos do azul mais impressionante que tinha visto em toda sua vida. Caray! Que cosa más hermosa, que mujer tan guapa, que hombre de suerte es este Celso. La chica parece un angel! –  pensou. E esta última impressão só se consolidou mais ainda, quando ele ouviu a voz musical da criaturinha à sua frente:

– Muito prazer, senhor. Seja muito bem-vindo, Celso estava ansioso esperando por sua visita. Esperamos poder lhe proporcionar a melhor estada em nossa cidade. E que o senhor leve dela e de nós a melhor lembrança possível.

Larissa impressionou vivamente os dois homens. Celso pensou: Caramba, essa menina virou uma vendedora total, olha só o papo dela! Já, já o argentino compra um carro na mão dela. E o cara tá todo derretido...

O visitante ainda não tinha conseguido falar nada. Por fim, esforçando-se para retomar seu modo natural, disse:

Encantado, señorita. Mucho gusto, muchísimo gusto mismo – atônito, tinha perdido seu vocabulário português totalmente.

Celso tomou a iniciativa: levou o aturdido Don Diego para seu escritório e fechou a porta. Agora iam falar de negócios, o anjo loiro que ficasse para depois.

– Então, Don Diego, fez boa viagem?

– Todo normal, si. Normal. Mas diga-me: tenemos boa mercaderia?

– Como lhe falei no telefone, temos por agora só um menino que vale a pena ver. Não está bem pronto ainda, eu poderia fazer o garoto iniciar aqui no Brasil mesmo, mas acho que vale a pena ver esse velocista e driblador antes, faça ao senhor mesmo a sua avaliação. Se, com o seu olho clínico, o senhor achar que já pode levar o rapaz, então vamos ter nosso primeiro negócio, sim.

– Muy bueno. Mismo que seja só ese chico, se ele for bueno de verdad, entonces mi viaje já valió a pena. E se no for, bueno, esso faz parte do negócio, hay que investir antes, nunca se sabe lo que uno vá a encontrar.

– Mas acontece que eu tenho uma outra coisa melhor pra lhe dizer, vai ser uma surpresa: hoje eu estou recebendo uma remessa inteira de novos talentos. E o melhor é que eles devem chegar daqui a pouco, o ônibus deles deve chegar aqui lá pelas 10 horas.

O argentino deu um tapa leve na mesa:

– Caray! Asi é que se faz, Celso! Bueníssimo. Quantos son eles?

– Um time inteiro, Don Diego. Inteiro: Doze garotos, de 14 a 19 anos.

– Magnífico! Y quando los podemos ver jugar?

– Ah, eu estou mais apressado que o senhor, pode crer. Boto todos em campo hoje mesmo, de tarde, é o tempo de alojar os garotos, matar a fome deles, dar umas três horas de descanso e aí...

– Aí los ponemos atrás de la pelota! Caray, voy a poder observar todos ellos e me llevo los mejores! A Celso Teles, Celso Teles, usted foi o meu melhor investimento na Espanha, mi mejor chico en todos los tiempos. Me gané mucha plata quando te negocié con Schktar Donetsky. Dios mio, quanto tiempo faz esso?

– Dezoito anos, Don Diego. Para mim também foi um grande negócio, esse tempo na Ucrânia foi o começo da minha prosperidade. Logo depois, quando me venderam para os russos do Spartak, eu já estava bem valorizado e a minha parte do passe foi tão grande que eu fiquei uns três dias meio que flutuando nas nuvens, sem acreditar.  

–Te venderan pro Spartk? Eu pensei que fosse por Zenit.

– Não, o Zenit é de São Petersburgo e eu fui direto para Moscou. Dei sorte, me tornei logo o jogador mais importante do Spartak, meu passe se valorizou ainda mais.

– Y entonces o CSKA comprou teu passe.

– Isso mesmo. E joguei no CSKA até que o Milan fez aquela proposta absurda, que os russos não puderam recusar. Era muito dinheiro. O presidente deles caiu em desgraça com a torcida para sempre, coitado. Mas acertou a situação financeira do clube, isso era mais importante para ele, um sujeito muito decente.

– Si, me acuerdo. Romano ya era o jugador mas importante da Rússia. Os italianos brigaram mucho por ti. O Milan se llevó la mejor, mas o Juventus casi que gana la pelea por ti.

– Pois é, Don Diego, e tudo isso começou com sua visão de futuro, quando me convenceu a deixar o futebol espanhol e ir para a Ucrânia. Como brasileiro, eu morria de medo de duas coisas lá: o frio e o idioma. Mas só me dei mal com uma terceira coisa lá.

– Que cosa, chico?

– As mulheres, Don Diego. As ucranianas. Eu não estava preparado pra ver tanta mulher linda junta, mulheres fascinantes, acho que andei me apaixonando uma boa meia dúzia de vezes.

– Ah, pero las russas también son divinas!

– Mas as ucranianas são mais, Don Diego, ganham na quantidade. É difícil ver uma jovem lá que seja feia ou gorda. Uma parada!

– Solo que, ahora, en Brasil, usted tem uma mujer que le gana de todas as russas y ucranianas reunidas. Essa tu novia no tiene igual, Celso, eres o hombre mas feliz do mundo.

– Sou, sim, Don Diego. Principalmente porque ele é cem vezes mais bonita por dentro do que por fora.

– Dios mio! Entonces es um angel!

– Isso mesmo, Don Diego. É assim mesmo que todo mundo a chama – um anjo.

– Y quando te vas a casar con ela? No pierdas tiempo! Un buen jugador de futbol sabe que si la pelota le viene hay que chutar na hora o pierde a oportunidad do gol.

Celso parou por um momento com sua empolgação com suas memórias de jovem jogador cosmopolita. Aquilo que Diego Rivera lhe falava era puro bom senso. Ele estava acomodado demais com sua situação com Larissa, que se dizia sempre muito feliz com sua condição de ‘amante do chefe’. E estava mesmo. Porque Larissa era sempre sincera e absolutamente inconvencional.

Mas as palavras do argentino colocaram uma sombra de medo na mente de Celso. Ainda que ela não fizesse questão e nunca tivesse mencionado isso sequer, ele, Celso, precisava urgente casar com sua ‘amante do chefe’. Torná-la ‘esposa do chefe´! Podia ser bobagem, mas ele é que se sentiria mais seguro com isso. Aliás, Leon Schlikmann lhe dera já o exemplo: não sossegou enquanto não conseguiu ver a mão de sua Rainha de Sabá assinando os papéis de casamento. Engraçado isso, ali em Amarante não tinham sido as noivas, mas eles, os homens, que se sentiam inseguros por não estarem ainda casados.

Don Diego Rivera era um homem do mundo e um grande observador das pessoas. Percebeu que tinha atingido seu antigo pupilo abaixo da linha d’água. Lo enredé! – pensou, sorrindo internamente – tiene miedo de perderse la chica y no lo sabe. Caray! E não falou uma só palavra enquanto perdurou o devaneio do agora um tanto assustado Celso Teles.

Foi Celso que percebeu o vexame e pediu desculpas:

– Perdão, Don Diego, acabei me perdendo nos meus pensamentos. Mas vamos voltar aos meninos, vamos já para a nossa sede esportiva, quero lhe mostrar a estrutura que eu montei aqui nesta cidade para receber nossas joias de todo o Brasil e da América do sul. Ah, um dos garotos é paraguaio, um lateral esquerdo com ótimas referências.

– Y teus olheiros son buenos mismo?

– Ah, sim, Don Diego. Essa leva inicial foi reunida pelo Baltazar, lá de Campinas. São quase todos do interior de São Paulo e mais esse paraguaio. E tenho o Gilmar, lá de Porto alegre, que está numa viagem de mais de seis meses, confirmando a  moçada do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. E o Gilmar está me conseguindo garotos do Uruguai. E, mais batuta ainda, é o primeiro que já está negociando com as famílias de várias garotas do Sul, vai começar a montar meu time de futebol feminino.

– Caray, chico! Que idea buena! Hay un gran mercado en evolución para o futbol feminino en Europa, Asia y Estados Unidos. Y, proporcionalmente, es muy mas fácil de negociar que con los hombres. Claro que los valores no son tan altos, pero… si nós tenemos uma boa cantidad, entonces nós podemos ganar muy bien. Y conheço esse teu olheiro Baltazar, muy bueno, ya negocié com ele.

– Pois é, Don Diego, graças ao que aprendi com o senhor, eu agora sei ver isso tudo muito bem. E, por reconhecimento e gratidão ao meu grande mestre, eu fiz questão de começar minha nova carreira exclusivamente com o senhor.

– Grácias, chico! No te vás a arrepender.

Os dois homens trocaram um grande abraço e levantaram de suas  cadeiras para sair. Nesse momento alguém bateu levemente na porta e a abriu. Viram o semblante risonho e feliz de Carmen de Rios, que acabava de chegar. Ela deu dois passos para dentro, mostrou seus belos dentes entre os lábios cinematográficos e falou um bom dia que começou e não acabou. Foi substituído por uma outra palavra, balbuciada enquanto seu olhos se abriam desmesuradamente:

– Usted?!

– Carmencita! Dios mio!

Carmen teve uma espécie de vertigem, jogou-se sentada no pequeno sofá da sala de Celso e levou as duas mãos ao rosto. Ficou silente e imóvel como uma estátua, por um longo tempo.

Celso Teles percebeu que ali havia muito mais coisa e não era coisa pequena. Murmurou para ambos:

– Vocês se conhecem, então?

CONTINUA

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