MILTON MACIEL
87 – UM OUTRO NATANAEL
Fim do cap. 86: "— Bem, pelo que vejo o senhor – quer dizer, você – não tem esse seu irmão em boa conta. Então deixe eu lhe contar o que sei e já lhe digo por que razão a polícia da minha cidade me mandou pra cá, atrás dele."
O calor ali no Bar do Toquinho
era sufocante para todos, não só para Eurico. Aliás, pensou ele, embora no Sul
existissem invernos rigorosos, os verões também podiam ser inclementes. Lembrou
que no ano anterior, quando estivera fazendo um curso de férias em janeiro, em
Joinville, essa cidade de Santa Catarina havia registrado o pico mundial de temperatura
em cidades, atingindo a marca de 52 graus centígrados, um recorde histórico
absoluto. Ali em Joinville havia sofrido dias de calor úmido extremo, que só não
foram piores dos que aqueles que havia passado num verão de Porto Alegre, anos atrás.
Limitou-se a não fazer
coro às reclamações de Tião Bergonzi, que, na verdade, tentava era se desculpar pelo
clima com o sulista, por que achava que o rapaz devia estar sofrendo como um
camelo no calor do deserto, ali em Caruaru. Surpreendeu-se ao constatar que Eurico
não fazia coro a sua queixa de anfitrião:
— Não, Tião, lá no sul a
gente também tem calorão no verão. E pior, calor muito úmido. O de vocês aqui é
mais seco, pra mim está tudo bem.
— Bom se é assim, você
pode me contar enfim o que esse safado do meu irmão andou aprontando lá na
cidade de vocês?
— Bem, nós não temos
nenhuma acusação formal contra ele, apenas queremos interrogá-lo. O que temos é
o seguinte: há evidências que ele teve um caso com uma professora bem jovem e
que el engravidou. Acreditamos que o pai era para ser ele. Era para ser,
porque a moça morreu. Teve um ataque fulminante do coração, infarto do miocárdio.
O feto também morreu. E tudo ficou na boa, porque só se descobriu a gravidez
durante a autopsia do corpo da moça. Acontece que nós descobrimos, meses
depois, dias atrás, que ela foi assassinada. Com veneno.
— Opa! E o disgramado está
envolvido no crime? É isso que vocês acham?
— Nós estamos atrás de
pistas de vários tipos e queremos interrogar seu irmão. Acontece que esse crime
com veneno foi só um dos que aconteceram na cidade nos últimos meses. Houve
mais dois. Em todos eles foi usado um veneno que mata a pessoa por ataque
fulminante e, em todos os casos, a morte parecia natural, enganando os médicos
na autopsia. Mas nós descobrimos a verdade e, desde então, estamos seguindo várias
pistas. E uma delas nos trouxe aqui, em busca do Natanael.
— Que se mandou pro
exterior. Provavelmente já sabia que vocês viriam atrás dele e fugiu.
— Não, não, isso não aconteceu.
Ele não tem como saber que a gente está atrás dele para ouvi-lo, interrogá-lo,
sem acusação nenhuma, por enquanto. É assunto sigiloso da investigação da delegacia
de Amarante, a nossa cidade. Mas agora que eu tive a sorte de conhecer você,
quero ouvir a sua opinião e o seu relato a respeito desse seu irmão. E uma
coisa eu tenho que reconhecer: Ele construiu a melhor reputação em Amarante,
trabalhou mais de dez anos como gerente da maior transportadora da região e era
homem de confiança total do dono, um homem muito rico, mas que foi um dos três assassinados
com o mesmo veneno que matou a professorinha.
O irmão abriu a boca,
estupefato:
— O Lacraia com fama de
gente boa? Mas que milagre foi esse, seu moço?
— Lacraia?! Esse era o
apelido dele?
— Não, não era apelido, o
povo chamava ele de Nata mesmo. Mas nós, os irmãos e primos dele é que passamos
a chamar o maldito de Lacraia, porque isso é o que ele era, um bicho
escorregadio e venenoso. Sabe por que razão ele foi embora daqui?
— Não tenho a menor
ideia, é claro.
— Crime de morte, seu
moço. Assassinato. Ele matou um rival, na disputa por uma mulher rica, que andava
com os dois. Ele arrumou as coisas para parecer legítima defesa, mas foi
descoberto que era armação, teve testemunhas meio de longe. E, como elas não puderam
garantir que o matador era meu irmão, então aconteceu o pior: nosso pai, homem
velho de mais de sessenta anos, se acusou como o assassino. Nos obrigou a jurar
que ninguém ia falar nada, que ele já estava velho e tinha vivido bastante. E o
Nata era muito moço, tinha só 20 anos e “uma vida inteira pela frente”.
— E então?
— O velho Bergonzi foi
condenado e preso e o Natanael, como uma lacraia venenosa, sumiu de Caruaru e
foi fazer a vida no Sul. Nunca, mas nunca mesmo, mandou qualquer notícia, seu
moço. Nunca quis saber como estava o pai, um inocente pagando pelo crime dele. Nem
a mãe, que ficou acabada com tudo aquilo. E nem as irmãs e os irmãos, que são
sete.
-- E vocês não souberam nunca mais dele?
-- Muitos anos depois, ficamos sabendo, através de um caminhoneiro daqui,
que ele estava muito bem empregado no Sul, numa transportadora grande. Ele ofereceu
um grana lascada pro homem não contar pra nós que ele tinha encontrado o sem-vergonha.
O Américo pegou o dinheiro, deu pra trocar todo o rodado do caminhão dele, por
aí você vê como o maldito tava bem de dinheiro. E quando chegou aqui, a
primeira coisa que ele fez foi contar tudo pra gente. E mostrou uma foto que
ele fez do Nata, sem que ele visse. Parecia um lorde, todo vestido de
almofadinha, nos trinques, jeito de rico, mesa de cara importante. Era gerente
na firma. Gerente, imagine só, deve ter roubado uma enormidade, deu desfalque
com certeza.
— Olhe que não. O dono da
transportadora era tinhoso, ninguém podia roubar Valdemar Silva, que tinha um
monte de pistoleiros com ele. A verdade é que seu irmão tinha a maior fama de
honesto e todo mundo na firma tinha o maior respeito por ele. Confesso que eu
estou muito chocado ouvindo seu lado da história, essa outra personalidade do
seu irmão. Vai ver ele se regenerou, encontrou um bom emprego e mudou de vida.
— Regenerou? O Lacraia?! —
Tião Bergonzi soltou uma enorme gargalhada — Mas não mesmo, rapaz, me desculpe,
não mesmo. Pau que nasce torto, morre torto. Alguma ele andava aprontando por
trás, pra cima desse tal de Valdemar. Ele devia ter uma teta bem grande, pra se
comportar tanto tempo como bom moço. Pode ter certeza, alguma ele estava
aprontando, pau que nasce torto, morre torto, repito. Uma vez lacraia, sempre
lacraia, moço. Peçonhento.
— Será? Mas o que ele
podia estar fazendo que escapasse a um sujeito vivo como o Valdemar Silva?
— Me desculpe, policial,
um sujeito tão vivo, tão vivo, que está morto agora. Ora, se a moça que o Lacraia engravidou morreu
envenenada e se o chefe do Lacraia morreu envenenado, pode escrever no seu
caderninho: o que matou os dois foi veneno da lacraia!
— Cacete! Eu acabo de
cair das nuvens, me esborrachei no chão em plena Feira da Sulanca. Ora, se o
cara é mesmo assim como você, irmão dele, me conta, olha que pode ser mesmo
verdade. Sim, a Lurdinha e o Valdemar Silva... Veja bem, se ele estava enrolando
o chefe dele com algum esquema e o Valdemar desconfiasse, ele virava presunto
na hora. Ou ele fazia o Valdemar presunto entes disso. É, há muito o que
investigar por essa linha...
— Pois façam isso e eu
garanto onde vocês vão chegar: na toca da lacraia. Mas o que me deixa furioso é
saber só hoje que esse desgraçado estava aqui há mais de dois meses e que
andava procurando imóveis pra comprar. E não procurou nenhum dos irmãos, nenhum
parente! Nosso pai morreu na prisão, fraco do pulmão, dois anos depois de ser
preso. A mãe foi logo atrás, de puro desgosto. Pois o bandido nunca procurou
saber deles. E nem de nós, é claro.
— E agora se mandou pra Paris.
Deve estar com muita grana mesmo: dois meses em hotel de luxo, procurando imóveis,
Paris. E olhe, só agora é que eu me lembrei que não lhe falei uma coisa. A viúva
do Valdemar Silva, que ficou absurdamente rica com a morte do marido, está
vivendo em Paris, tem apartamento lá. E o Natanael ficou como procurador dela
no Brasil, ele é que tratou, em nome dela, do inventário e da venda da Transportadora.
— E ele vai pra Paris atrás
dela... Aí tem coisa, seu moço. Tem coisa. Lacraia não dá ponto sem nó. Pode
acreditar, investigue, tem coisa!
O policial ficou um
minuto em silencio, enquanto sua mente ágil desenvolvia diferentes ideias. Céus,
aquele irmão do Natanael tinha caído do céu. Mais do que nunca ele precisava
dizer “Bendita Feira da Sulanca!”
E tinha mais pessoas a
bendizer: “Bendito delegado Norberto, que o tinha mandado para Caruaru, bendito
Celso Teles, que estava bancando todas as despesas.”
De súbito o investigador
sentiu-se tomar por um frêmito de entusiasmo. Sentia correntes elétricas correrem
céleres pelos seus membros, precisava dar o passo seguinte. Mas as possibilidades
agora eram tantas, que era melhor se acalmar e trocar ideias com o delegado. E
também com o Mota, que era um poço de bom-senso.
Mas o fato é que o
policial dentro dele estava em ebulição e a ideia de ficar mais um dia em
Caruaru, desfrutando as mordomias que pudesse, pareceu-lhe subitamente ridícula.
Não, precisa voar urgente para Amarante, tinha que voltar hoje mesmo, neste sábado,
ainda que tivesse que arranjar voos noturnos, descer em Florianópolis mesmo, ir
para Amarante de táxi, estava autorizado por Celso Teles a fazer qualquer
loucura de despesas que precisasse.
Dali da mesa do Bar do
Toquinho mesmo, ligou para o taxista Almeida e pediu que ele viesse apanhá-lo
ali o mais rápido possível. Passariam no hotel, ele apanharia suas coisas, faria
o check out, pagaria a conta e correriam para o aeroporto de Guararapes, em Recife.
Ali ele iria de companhia em companhia, procurando um jeito de embarcar nesse mesmo
fim de tarde ou início de noite para o Sul.
Agradeceu muito a Tião
Bergonzi, trocaram cartões de visita com os respectivos e-mails, telefones e
endereços e o irmão de Natanael ofereceu-se para fazer qualquer depoimento que incriminasse
o irmão em qualquer coisa. Eurico não devia esquecer que o Lacraia já era um
assassino quando saiu de Caruaru. Tinha matado aos 20 anos, não numa briga, mas
num crime premeditado.
Naquela noite, enquanto
fazia os longos voos de Guararapes a Cumbica e de Cumbica a Florianópolis, o
jovem policial catarinense flutuava no ar mais que o avião. Nunca havia se
sentido tão bem, tão entusiasmado e tão agradecido. Levava Caruaru no coração.
Ali, na Feira da Sulanca, dois milagres tinham-lhe acontecido:
Tião Bergonzi abrira-lhe
os olhos para um novo mundo de possibilidades, ao apresentar-lhe aquele outro e
inimaginável Natanael Bergonzi, o Lacraia para os íntimos! Isso o deixava eufórico
e entusiasmado.
E havia aquele outro
milagre maior, o milagre que era a Feira de Caruaru, a colocá-lo nos braços do
povo nordestino, levando-o a descobrir que ele ainda não era gente. E isso o
deixava fascinado: haveria agora de aprender a se modificar, haveria de virar
gente como aquelas pessoas maravilhosas daquele povo simples de todas as
origens. Volta e meia lembrava da senhora do fardo pesado e do pessoal do ônibus
de Arapiraca. E isso o deixava emocionado.
CONTINUA: "Hijita, este es tu padre!"
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