OS DOIS GURIS - 4a. parte - FINAL
O facão de
Tonhão desceu com velocidade impressionante em direção ao pescoço do negro. E o
atacante gritou, triunfante:
– Lo dególo!
Mas o facão
passou pelo nada, o negro grande e barrigudo, no último momento, tinha pulado
para direita, já abaixado. Tonhão golpeou com tanta força, da direita e do
alto, para a esquerda e para baixo, que se desequilibrou, fazendo um giro de
meia-volta. No mesmo instante sentiu o primeiro planchaço.
O negro batia
nas costas dele com a facão de chapa, um, dois, três golpes, sem usar a ponta
da arma. Era a desmoralização total: ele atacava de ponta e de corte, para
matar e degolar, o outro contra-atacava de planchaço, para não matar, só
debochando dele. De costas como ele tinha ficado, era só o negro enfiar-lhe o
facão entre as costelas e ele era um homem morto. Bueno, sorte dele e azar do
negro que o desgraçado fosse se meter a debochado. Pois agora ele ia ver.
Virou-se
rapidamente e viu que o negro estava de novo parado, imóvel, com o facão na mão
abaixada ao lado do corpo. Mas desta vez o bandido olhou por um momento nos
olhos do negro. E o que ele viu não era deboche. Os olhos do outro homem eram
agora de uma frieza mortal. E ele falou:
– Vem, seu
porquera. Vem de novo, que eu vô te ensiná a última lição!
Tonhão
compreendeu que agora era tudo ou nada. Aquele negro não era um qualquer. Dava
para ver agora que também ele sabia muito bem como pelear de facão. Por isso não
podia errar o seu bote. Desistiu de atacar no pescoço e visou a barriga grande
e estufada do negro alto. O diabo era mais alto que ele pra mais de palmo. Por
isso mesmo, calculou num segundo onde tinha que enfiar a ponta do facão na
barriga e atacou de repente, dando um único grito:
– Morre!
Mas o negro veio
do nada com aquele facão de baixo para cima e aparou o golpe, lâmina com
lâmina, fazendo saltar chispas pelo ar. E o homem tinha tanta força, que, ao
erguer o facão de Tonhão para cima, ergueu junto o braço e os pés do bandido,
que chegaram a desgrudar um pouco do chão.
Qualquer outro
homem menos forte teria largado o facão, que seria arremessado metros de distancia
para cima e para o lado. Mas Tonhão segurou firme o cabo. Foi seu erro.
Seu braço subiu com o facão e
ele apresentou o peito para o negro. Que, num gesto inacreditavelmente rápido,
baixou e recuou o braço e, a seguir, levou-o para frente como uma mola, bem à
altura do peito do outro. Todos viram quando a ponta do facão apareceu, um pouco
avermelhada, nas costas de Tonhão Dureza.
O melhor facão
do Rio Grande caiu de joelhos, com os olhos arregalados, as duas mãos pegando o
facão do negro pelo cabo, que sobressaía de seu peito. Tentou puxá-lo para
fora, mas não teve forças para tanto. Quis falar um desaforo para o negro, que
estava de pé em frente a ele, de braços cruzados, mas alguma coisa líquida
encheu a sua garganta e a voz não saiu mais.
Fazendo força, o
bandido conseguiu se firmar sobre os pés e começou a levantar. Era
impressionante ver aquele homem grande, todo ele um lanho só avermelhado, com
aquele facão enorme atravessado no corpo. Mas ele não terminou de levantar.
Caiu desequilibrado para trás e ficou deitado no chão. Todos viram que o facão
oscilava para cima e para baixo, cada vez mais devagar. Depois parou
completamente. Tonhão ficou imóvel, de olhos arregalados olhando a nuvens. O
chefe de estação decretou:
– Tá morto o
infeliz. O diabo veio buscá mais uma alma. E agora, o que vamo fazê com ele?
– Ora, dá parte
pra polícia é que nós não vamo – falou, experiente, o chefe de trem – É melhor
vocês levarem esse maldito pro mato, enterrem bem fundo pra não aparecê de novo
como assombração. Você não concordam?
Todo mundo falou
que sim. Dali a pouco todos começaram a aplaudir Seu Artur. É que os dois piás
tinham pulado da charrete em cima do negro e ele agora segurava cada um sentado
em um de seus braços enormes, no colo. Na charrete, a menina chorava de susto,
de medo de sangue e de alívio. Parecia
milagre de Deus, estava livre, não ia ter que se abrir para aquele monstro!
O Menorzinho
passou os dois braços ao redor do pescoço largo e suado do negro e começou a
beijar as gordas bochechas bonachonas. Seu Artur era de novo a figura
tranqüila, quase maternal, de sempre, o ídolo da molecada da fazenda e do Vacaiquá inteiro.
O chefe de
estação mandou dois funcionários pegarem o carrinho de mão, amontoarem ali
dentro Tonhão Dureza – com facão e tudo, que o negro não quis mais saber dele.
Levaram duas pás e tomaram o rumo do capão de sina-sinas, ao redor da Sanga
Funda.
– Não deixem
marca, espalhem terra e pasto por cima de tudo, não quero sabê onde botaram
esse monte de estrume. E depois vocês me voltem aqui, pra lavá toda essa sangüera
aqui da frente.
O chefe de trem
apertou a mão de Seu Artur, depois que os moleques correram para cima da
charrete, para confortar a menina.
– Sim senhor,
Seu Artur. Bem que corria um zum-zum por aqui que o senhor tinha sido soldado
na revolução de 23. Pois agora todo mundo viu que é verdade.
O negro soltou
sua risada bonachona:
– Que soldado,
que nada, seu Xavier! Um peleei em duas revolução, mas sempre contra o governo, contra os soldado.
Muito deles acabaram que nem esse maula aí, na ponta do meu facão ou da minha lança.
Mas isso é cosa passada, é cosa feia, eu nunca mais quis sabê de violência e de
morte. Mas esse bandido, dizendo que ia fazê mal pras minhas criança, não me
deixô outra saída. Olhe, vô le dizê, Seu Xavier, faz para mais de trinta ano
que não sei o que é matá um homem. Mas, se Deus quis assim... Bueno, paciência.
Se tive que respondê inquérito...
– Que inquérito,
que nada, homem! Se tivesse, tu tem aqui mais de 30 testemunha pronta pra jurá
que o bandido te atacô pelas costa e que tu só te defendeste. A começá por mim.
Mas fica sossegado, tchê. Chegando a Dom Pedrito, vou procurá o sargento
Melcíades, que acontece de ser meu cunhado. Conto tudo pra ele e ele
providencia que a polícia civil nem se meta no caso. Pode considerá o teu caso
mais arquivado que o corpo daquele desgraçado.
– Bueno, Seu
Xavier, sendo assim eu le sô mui grato. E agora preciso ir andando, que a
gurizada deve de tá loca pra chegá na fazenda e se retoçá com os petiço deles e
com as brincadera toda. Isso sem falá que a dona Mimosa tá esperando eles com
tudo que é tipo de doce que ela sabe fazê. Entonces vô saindo, buenas, até mais
ver, E, otra vez, grácias por tudo.
O chefe de
estação interveio:
– Mas bah, tchê,
tu não tem que agradecê nada. Nós é que temo que te dizê obrigado porque tu nos
livrô desse encrequero. E tu é um herói, tchê, tu salvô solito três criança. Tu
vai é entrá pra história de Vacaiquá, de Dom Pedrito.
E, ante essas
palavras do chefe de estação, ouvidas por todo mundo, uma nova onda de aplausos
partiu dos passageiros ali reunidos.
O negro subiu na
charrete, fez sinal com a boca para os cavalos e estes começaram a trotar
suavemente pela estrada de terra. Ali em cima uma Angélica finalmente alegre
ria e conversava com os dois guris. E se desmanchava em agradecimentos a eles,
chamando os dois de grandes heróis, contando para Seu Artur tudo o que os dois
endiabrados tinham craneado e feito contra o bandido que a levava à força para
ser mulher dele.
Os dois guris
não podiam estar mais orgulhosos. Alguma dúvida de que eram machos gaúchos?
Alguma dúvida de que tinham coragem pra dar e vender, pra enfrentar criminoso
ladrão de diligência? Dez e oito anos!
Não eram mais crianças, era homens feitos, machos barbaridade!
Quando a
charrete chegou à fazenda, já havia um ajuntamento de gente esperando por ela
na porteira. É que Lair Vesgo, um peão da fazenda vizinha, tinha assistido
tudo, estava na estação esperando por uma carta que não veio. E antes que Artur
tocasse a charrete da frente da estação, já o vesgo tinha partido a todo galope
e chegara à fazenda dos vizinhos mais de dez minutos antes da chegada da
charrete. Todos já sabiam da briga, do feito de Artur, todos por ali já
conheciam de nome o tal bandido Dureza. Estavam orgulhosíssimos de seu peão, o
heróico Artur Coelho.
Dona Mimosa,
feliz demais com o relato que seus sobrinhos estavam chegando e que não
precisaria temer pela segurança deles. Por que seria, no entanto, que o bandido
quis matar as crianças? E quem era a tal mocinha que vinha com eles na
charrete?
Quando chegaram,
os três homens foram recebidos com efusão. Artur, cumprimentado por todos como
herói, foi logo contando que heróis mesmo eram os meninos de Livramento, eles é
que tinham enfrentado o bandido sozinhos, eles é que tinham resgatado a menina
que o safado levava a pulso para ser mulher dele.
Os quatro filhos
de Doma Mimosa, que tinham de 18 a 25 anos, estavam interessados era na
loirinha bonita. Quando todos souberam da história da garota, se
assanharam ainda mais. Mas a mãe deles foi calmamente até à charrete e pegou o
chicote de ponta avermelhada de Seu Artur. Brandiu-o uma vez no ar com destreza
e falou:
– Olha aqui o
que espera qualquer um, filho meu ou não, que se meter a desrespeitar essa
menina. Entra no chicote! E vou ser eu mesma a dar surra primeiro. Depois ainda
peço pro Artur terminar de sovar o desgraçado. Tudo mundo entendeu bem?
Ô, se tinham
entendido! E a madrinha do Menorzinho continuou:
– Venha, minha
filha, esta casa é sua. Eu não vou consentir que você volte para um pai
monstruoso, que jogou você num carteado e entregou você para um bandido. Você
fica aqui comigo até o dia que não quiser mais. Eu vou tratar você como uma filha
e os meus filhos vão ter que tratar você como uma irmã.
F I M