sábado, 29 de dezembro de 2012


PARA MIM, A PROFECIA FUNCIONOU
MILTON MACIEL

Pois é, para mim funcionou a profecia. Morri no dia 21 de Dezembro de 2012. O meu mundo, pelo menos, acabou. Uma bala perdida me encontrou. Ou, talvez, eu deva dizer que ela se encontrou graças a mim, ela é que estava perdida, não eu.

Antes eu não acreditava em bala perdida aqui no centro do Rio de Janeiro. No máximo era coisa de favela. Eu até ria quando ouvia o comentário que bala perdida era bobagem, que, como diziam, era coisa que entrava por um ouvido e saía pelo outro. Pois para mim foi exatamente desse jeito!

O que eu posso dizer é que num momento eu estava lépido e faceiro, indo pro botequim do Maneco, no Humaitá. No instante seguinte, vi uns doidos numa moto, dando cavalo-de-pau bem perto de mim, e aí começou uma fuzilaria danada. Aí tenho certeza que escutei algo e senti esse algo cutucar meu ouvido direito. Foi só isso.

Logo a seguir vi que eu estava de pé e que eu estava deitado. O cara deitado era eu, só que estava duro e morto, tive certeza na hora. E o cara de pé também era eu, só que esse eu tava legal, não sentia nada. Lembrei do troço no ouvido, passei a mão nos dois e nada. Tudo perfeito. Olhei em frente e vi que uma viatura da polícia vinha à toda. Os caras estavam atirando. Os da moto tinham feito meia-volta e passavam por mim nesse exato momento. Também estavam atirando.

Saquei na hora que eu tinha sido vítima de uma bala perdida. Mas... Quem é que tinha me matado?

Engraçado que aqui no, digamos, lado de fora, a gente ouve de um modo diferente. Saquei isso quando os caras da moto passaram por mim e eu pude ouvir a conversa deles até depois de eles sumirem de vista.

– Esse presunto aí no chão é seu, cumpadi? Aposto que é, porque tu atira mal pa caralho!

– Não enche, porra! E acelera mais que os meganha tá na cola. Entra no bequinho!

Aí a viatura, com quatro PMS, dois atirando nos da moto, passou à toda por mim. Mas eu ouvi o dialogo dos caras como se eu estivesse comodamente sentado dentro do veículo.

– Esse presunto aí no chão só pode ser teu, mermão. Tu é um bosta com esse revórve. Se atirá num  bandido na Urca, mata alguém no bondinho lá em cima.

– Vai se catá, Craudionor! Vai enchê o saco da tua mãe.

– Minha véia não tem saco, não é como a tua, que deve sê travecão.

Aí o tenente se queimou:

– Parem com isso e atirem direito, seus palhaços. Calem a boca! Olhem, os caras conseguiram entrar na viela. Tchau e bênção! Agora é que gente não pega mais eles, é estreito demais pra viatura. Vamos voltar. Vamos vistoriar o presunto.

Aí voltaram e pararam ao lado do meu eu que estava no chão. A rua continuava deserta, ninguém tinha vindo ver o que era o barulhão dos tiros e dos veículos cantando pneu.

Um dos soldados deu um chute no eu caído, desvirando-o. Fiquei uma fera e reclamei:

– Pô, mais jeito, seu animal. Isso machuca!

Mas machuca o que? Pois se eu não senti nada. O cara no chão já era, era um presunto mesmo. Estava de olhos abertos, com uma cara apalermada de quem teve uma surpresa. Puxa, eu não pensei que estivesse tão maltratado, ficando enrugado tão cedo. No espelho, eu via sempre algo melhor.

Então os PMS examinaram os meus bolsos, acharam minha carteira e minha identidade. Meu cartão do SUS também.

– Desafasta, nem perde tempo. Um durango, dez pau na carteira, uma moeda de um real! É tudo que esse miserável tem.

– É, o desgraçado morre e só serve pra dá prejuízo. Melhor deixar essa notinha aí mesmo, não paga a pena aliviar. E o infeliz ainda pode prejudicar nossa vida. Vai que a autopsia dá que a bala é de um de nós!

– Do dedo torto do Praxedes, o senhor quer dizer, tenente.

– Ah, vai a merda, Craudionor!   

O tenente então usou toda a sua calma e todo o seu treinamento, para orientar seus comandados:

– Ô, Praxedes, pega um revólver velho na viatura, um dos que a gente já preparou com quatro disparos, bota na mão desse cara. E vai dar uma boa olhada por aí, vê se tem alguém espiando de alguma janela, que possa cagüetar a gente depois. E vocês se afastem mais, pra não dar vestígio de pólvora, e, assim que o Praxedes fizer sinal que a barra tá limpa, encham esse sujeitinho de chumbo. Ele resistiu à prisão, deu cinco tiros na gente. Claro que antes você, Guedes, vai fazer um disparo com o revólver na mão dele, pra ficar resíduo de pólvora. Mira na viatura.

– Boa tenente! Assim eles nem perdem tempo na tal de autópsia, vão ter que contar uma porrada de bala!

– Claro, vocês sabem que vão nos acusar de qualquer jeito. Até que a bala pode ser dos bandidos, mas não vale a pena correr o risco. Tudo certo, Praxedes?  Cospe fogo então, turma!

E aí me mataram de novo! Fiquei indignado. Pô, eu que tinha dado um duro danado pra ser honesto a vida inteira, vivi sempre na maior pindaíba, não aceitei nem mesmo ser gigolô de velha rica, agora ia aparecer nos jornais como bandido!

Ainda bem que minha velha empacotou antes de mim, ia morrer de qualquer jeito amanhã, de vergonha. Sacanagem! Se esse troço funciona mesmo, não reencarno mais neste país!!!

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