quarta-feira, 12 de dezembro de 2012


DE ARMAS E AVES. Ou: As Surpresas da vida
MILTON MACIEL 

Lentamente, o homem avançava sob as copas pouco densas, entre os troncos retorcidos da mata. Havia horas que fazia isso, totalmente imerso no sombrio de seus pensamentos. Andava a esmo, sem direção, sabendo apenas que se afastava mais e mais da estrada onde havia deixado o carro. Não tinha rumo algum a seguir, para ele estava tudo acabado
.
Levou mais uma vez a mão ao bolso do casaco. Ali reconheceu, metálico e frio, o corpo da arma que iria tirar sua vida. No carro havia deixado a carta. Pouco havia o que explicar. Na falta de alguém de seu a quem dirigi-la, no envelope escrevera apenas: Para a Polícia. Ao menos isso fazia: não queria que perdessem tempo investigando a causa de sua morte, que ficassem procurando culpados.

Talvez não faltasse nem uma hora para o sol se por, o céu já começava a mostrar os primeiros tons de laranja. Na mata, caiam mais fortes as sombras. Mais um pouco e seria o fim de tudo aquilo, o fim do seu cansaço. Decidira que daria o tiro fatal quando o sol se pusesse. Também não se importava com o que pudesse vir depois. Por mais que se esforçasse, nunca chegara à conclusão se havia vida depois da morte ou não. Agora isso não tinha mais importância. Algo houvesse, descobriria dali a pouco. Nada houvesse, tanto melhor, acabava-se tudo definitivamente. Pena que não encontraria a paz que almejava, antes disso, anula-se a consciência.

Estava imerso nesse pensamento quando algo lá em cima estranhamente distraiu sua atenção. Havia um ninho de pássaro uns dois metros acima de sua cabeça e ao redor dele rodopiava aflita uma ave bem pequena, piando alto. Resmungou: “Sai pra lá, sua idiota, você acha que, numa hora como esta, eu vou querer atacar os seus filhotes?” Deu alguns passos para trás, para afastar-se da árvore e tranquilizar a provável mãe. Mas notou que isso não acontecia. Ao contrário, a avezinha mostrou mais e mais aflição, seu chilrear, entrecortado por piados altos e estridentes, tinha agora como fundo um farfalhar de asas muito mais forte.

Olhando mais para o alto ainda, ele divisou de repente a causa daquela agitação toda. Um pequeno gavião pairava no ar, pouco acima da copa da árvore com o ninho. Certamente a avezinha fazia de tudo para tentar assustar o predador. Droga de vida, pensou o homem. Sempre injusta, sempre cruel. Essa coitada não tem a menor chance. Em minutos ela e seus filhotes vão ser despedaçados pelo bico feroz do gavião. Vão morrer, com eu vou morrer. Que remédio, é a vida! A tal de vida, a idiotice absurdal chamada existência.

O gavião arremeteu em seu primeiro ataque. Certeiro surgiu entre as folhas mais altas e seu impacto se fez sobre o corpo da avezinha, que voou para o alto, tentando defender o ninho. Penas caíram sobre o homem, que ficou profundamente consternado com o que via. Por alguma razão, contudo, o ataque não foi bem sucedido. A avezinha conseguiu aprumar-se de novo e voltou a voar em círculos sobre o ninho, piando em desespero. O gavião tornou a pairar acima da árvore, preparando o novo golpe.

Aí tudo aconteceu de uma forma totalmente inesperada para o homem. Quando deu por si, estava com a arma na mão, apontada para o alto, para aquele vulto escuro quase parado acima da copa. Alvo fácil, o homem deu no gatilho várias vezes, até que conseguiu acertar a ave de rapina, que caiu estrebuchando no chão à sua frente.
Tá morto, desgraçado! Se tiver vida depois, vai na frente, coisa ruim, vai abrindo as portas do inferno pra mim! Soltou um riso sarcástico, encostou o cano, ainda quente, na têmpora e apertou o gatilho. Que por-do-sol, que nada, é agora mesmo!

Clic! Fui tudo o que se ouviu na mata. Um pequeno clique. Todas as balas tinham sido disparadas contra o gavião. O homem sentou no chão desarvorado, contemplando o revólver descarregado em sua mão. Que idiota! Por que fizera aquilo? Que coisa mais estúpida, descarregar todo o tambor da arma em cima de um gavião e ficar sem uma única bala para enfiar em sua própria cabeça e dar fim a toda a tragicomédia que havia sido sua vida! Imbecil!

Mas nesse momento algo ainda mais incrível aconteceu. A avezinha, que havia sumido apavorada com o barulho dos estampidos, voltou rapidamente ao ninho. Agora ela chilreava mansamente para suas crias, que já não piavam assustadas. Depois de alguns instantes, a pequena ave voou para baixo, circulou o corpo imóvel do gavião e – algo totalmente inexplicável – passou a bater asas bem próxima à cabeça do homem. Aproximou-se o mais que pôde, sempre com um suave chilrear e, finalmente, pousou no chão a poucos centímetros dele, sem mostrar qualquer medo. Depois, saltou em sua perna e abriu um trinado diferente, animado, tranqüilo.

Que é isso, companheira? Não é possível que você possa entender que eu salvei vocês com o meu pau de fogo. Ou será? 

Seria uma resposta? Pois a ave voou até seu braço e ficou ali mais um tempo, olhando-o calmamente nos olhos. Depois voou de novo, circulou sua cabeça mais algumas vezes e voltou para o ninho, calando-se.

O homem ficou um longo tempo imóvel, sentado na chão, pensando em tudo aquilo. Ele tinha salvado aquela ave e seu filhotes, mas, por mais estapafúrdio que parecesse, aquela ave e o gavião tinham também salvado a vida dele. Afinal, ao menos por hoje, o plano de suicídio estava abortado.

Então, subitamente, ele levantou com um salto, ergueu o braço e arremessou o revólver para bem longe, com toda a força, dentro da mata. Já estava escuro agora, silêncio total no ninho acima de sua cabeça. O homem voltou-se para o que sabia ser a direção da fímbria da mata e começou a caminhar resoluto. Ia tentar tudo de novo. Mas, não mais o suicídio. Pegaria o carro, sairia daquele maldito lugar para sempre e tentaria recomeçar a vida em outra região. Quando chegou ao limiar da estrada e viu seu carro, podia jurar que estava ouvindo de novo o canto feliz da avezinha. Seria possível?


Nenhum comentário:

Postar um comentário