DE ARMAS E AVES. Ou:
As Surpresas da vida
MILTON MACIEL
Lentamente, o homem avançava sob as copas pouco
densas, entre os troncos retorcidos da mata. Havia horas que fazia isso,
totalmente imerso no sombrio de seus pensamentos. Andava a esmo, sem direção,
sabendo apenas que se afastava mais e mais da estrada onde havia deixado o
carro. Não tinha rumo algum a seguir, para ele estava tudo acabado
.
.
Levou mais uma vez a mão ao bolso do casaco. Ali
reconheceu, metálico e frio, o corpo da arma que iria tirar sua vida. No carro
havia deixado a carta. Pouco havia o que explicar. Na falta de alguém de seu a
quem dirigi-la, no envelope escrevera apenas: Para a Polícia. Ao menos isso
fazia: não queria que perdessem tempo investigando a causa de sua morte, que
ficassem procurando culpados.
Talvez não faltasse nem uma hora para o sol se por, o céu já
começava a mostrar os primeiros tons de laranja. Na mata, caiam mais fortes as
sombras. Mais um pouco e seria o fim de tudo aquilo, o fim do seu cansaço. Decidira
que daria o tiro fatal quando o sol se pusesse. Também não se importava com o
que pudesse vir depois. Por mais que se esforçasse, nunca chegara à conclusão
se havia vida depois da morte ou não. Agora isso não tinha mais importância.
Algo houvesse, descobriria dali a pouco. Nada houvesse, tanto melhor,
acabava-se tudo definitivamente. Pena que não encontraria a paz que almejava,
antes disso, anula-se a consciência.
Estava imerso nesse pensamento quando algo lá em cima
estranhamente distraiu sua atenção. Havia um
ninho de pássaro uns dois metros acima de sua cabeça e ao redor dele rodopiava
aflita uma ave bem pequena, piando alto. Resmungou: “Sai pra lá, sua idiota, você
acha que, numa hora como esta, eu vou querer atacar os seus filhotes?” Deu
alguns passos para trás, para afastar-se da árvore e tranquilizar a provável
mãe. Mas notou que isso não acontecia. Ao contrário, a avezinha mostrou mais e
mais aflição, seu chilrear, entrecortado por piados altos e estridentes, tinha agora como fundo um farfalhar de asas muito mais forte.
Olhando mais para o alto ainda, ele divisou de
repente a causa daquela agitação toda. Um pequeno gavião pairava no ar, pouco
acima da copa da árvore com o ninho. Certamente a avezinha fazia de tudo para
tentar assustar o predador. Droga de vida,
pensou o homem. Sempre
injusta, sempre cruel. Essa coitada não tem a menor chance. Em minutos
ela e seus filhotes vão ser despedaçados pelo bico feroz do gavião. Vão morrer,
com eu vou morrer. Que remédio, é a vida! A tal de vida, a idiotice absurdal
chamada existência.
O gavião arremeteu em seu primeiro ataque. Certeiro
surgiu entre as folhas mais altas e seu impacto se fez sobre o corpo da
avezinha, que voou para o alto, tentando defender o ninho. Penas caíram sobre o
homem, que ficou profundamente consternado com o que via. Por alguma razão,
contudo, o ataque não foi bem sucedido. A avezinha conseguiu aprumar-se de novo
e voltou a voar em círculos sobre o ninho, piando em desespero. O gavião tornou
a pairar acima da árvore, preparando o novo golpe.
Aí tudo aconteceu de uma forma totalmente inesperada
para o homem. Quando deu por si, estava com a
arma na mão, apontada para o alto, para aquele vulto escuro quase parado acima
da copa. Alvo fácil, o homem deu no gatilho várias vezes, até que conseguiu
acertar a ave de rapina, que caiu estrebuchando no chão à sua frente.
Tá morto, desgraçado! Se
tiver vida depois, vai na frente, coisa ruim, vai abrindo as portas
do inferno pra mim! Soltou um riso sarcástico, encostou o cano, ainda
quente, na têmpora e apertou o gatilho. Que
por-do-sol, que nada, é agora mesmo!
Clic! Fui tudo o que se ouviu na mata. Um
pequeno clique. Todas as balas tinham sido disparadas contra o gavião. O homem
sentou no chão desarvorado, contemplando o revólver descarregado em sua mão. Que idiota! Por que fizera aquilo? Que coisa mais estúpida, descarregar todo o
tambor da arma em cima de um gavião e ficar sem uma única
bala para enfiar em sua própria cabeça e dar fim a toda a tragicomédia que
havia sido sua vida! Imbecil!
Mas nesse momento algo ainda mais incrível aconteceu.
A avezinha, que havia sumido apavorada com o barulho dos estampidos, voltou
rapidamente ao ninho. Agora ela chilreava mansamente para suas crias, que já
não piavam assustadas. Depois de alguns instantes, a pequena ave voou para
baixo, circulou o corpo imóvel do gavião e – algo totalmente inexplicável –
passou a bater asas bem próxima à cabeça do homem. Aproximou-se o mais que
pôde, sempre com um suave chilrear e, finalmente, pousou no chão a poucos
centímetros dele, sem mostrar qualquer medo. Depois, saltou em sua perna e
abriu um trinado diferente, animado, tranqüilo.
Que é isso,
companheira? Não é possível que você possa entender que eu salvei
vocês com o meu pau de fogo. Ou será?
Seria uma resposta? Pois a ave voou até seu braço e ficou ali mais um tempo, olhando-o calmamente nos olhos. Depois voou de novo, circulou sua cabeça mais algumas vezes e voltou para o ninho, calando-se.
Seria uma resposta? Pois a ave voou até seu braço e ficou ali mais um tempo, olhando-o calmamente nos olhos. Depois voou de novo, circulou sua cabeça mais algumas vezes e voltou para o ninho, calando-se.
O homem ficou um longo tempo imóvel, sentado na chão,
pensando em tudo aquilo. Ele tinha salvado aquela ave e seu filhotes, mas, por
mais estapafúrdio que parecesse, aquela ave e o gavião tinham também salvado a vida
dele. Afinal, ao menos por hoje, o plano de suicídio estava abortado.
Então, subitamente, ele levantou com um salto, ergueu
o braço e arremessou o revólver para bem longe, com toda a força, dentro da
mata. Já estava escuro agora, silêncio total no ninho
acima de sua cabeça. O homem voltou-se para o que sabia ser a direção da
fímbria da mata e começou a caminhar resoluto. Ia tentar tudo de novo. Mas, não
mais o suicídio. Pegaria o carro, sairia daquele maldito lugar para sempre e
tentaria recomeçar a vida em outra região. Quando chegou ao limiar da estrada e
viu seu carro, podia jurar que estava ouvindo de novo o canto feliz da
avezinha. Seria possível?
Nenhum comentário:
Postar um comentário