MILTON
MACIEL
Foi uma invasão silenciosa. Ninguém percebeu no
primeiro momento, até que os aeroportos, portos e estradas começaram a ficar
coalhados de passageiros, aviões, navios, barcos, ônibus e automóveis. Eram
milhares desses veículos, congestionamentos-monstros foram formados. Galeão,
Cumbica, Viracopos e Confins receberam recordes de vôos normais e extras, bem
como mais de uma centena de vôos charters, vindos do exterior. Do Galeão,
formou-se um cortejo ininterrupto de ônibus fretados que se dirigiam sempre
para o Rio-Centro. Dos outros aeroportos, situados estrategicamente a algumas
horas do Rio de Janeiro, partiram centenas de ônibus especiais, apinhados de
estrangeiros, verdadeiras torres-de-babel sacolejantes.
O aeroporto Santos Dumont teve o recorde histórico de
movimentação, tal o número de vôos extra e fretados, de origem nacional, que
conseguiram permissão de pouso. Hangares e pátios de estacionamento de
aeronaves de todos os portes ficaram completamente lotados.
Brutais congestionamentos assolaram a via Dutra e as
outras estradas que demandavam o Rio de Janeiro. A ponte, no sentido
Niterói-Rio, virou um verdadeiro inferno. Dentro da cidade a coisa não era
melhor. Parecia que, de repente, sem mais nem menos, todos os ônibus, carros e
até mesmo caminhões tentavam se deslocar para o Rio-Centro. Foi quando alguém
da Polícia Rodoviária teve um laivo de inteligência: Espera aí, hoje não é 20 de Dezembro? Será que todo esse tráfego não
está ligado àquela maluquice que o mundo
vai acabar amanhã, dia 21?
Dirigiu-se a um ônibus que estava paralisado na
Dutra, quase à entrada da Avenida Brasil e interrogou as pessoas. Nada !
Ninguém abriu o bico. Aí o sargento perdeu a paciência. Procurou alguns
policiais militares que estavam por ali e confabulou rapidamente com eles. Aí
os homens entraram no ônibus, pegaram duas mulheres de meia-idade, arrancaram-nas
à força do ônibus, passando-lhes as algemas. Traficantes safadas, tejem presas! As mulheres se desesperaram,
começaram a chorar, disseram que não eram traficantes, que não podiam ser
presas, não podiam perder a Salvação. Era o que o sargento queria: abriram o bico
e contaram que estavam indo para o lugar sagrado, onde seriam salvas do fim do
mundo pela nave espacial. O Rio-Centro, obviamente.
Estava tudo explicado, então. Imediatamente o
sargento informou seus superiores e os PMs fizeram o mesmo também. Poucos
minutos depois as autoridades, estupefatas, concluíram que o pior ainda estava
por vir. E que não haveria forma alguma de procurar contornar o problema. De fato,
ao anoitecer daquele 20 de Dezembro de 2012, o Rio de Janeiro parou de ponta a
ponta. Quem saiu do trabalho não teve como voltar para casa naquela noite, a
não ser os que conseguiram fazê-lo a pé. Nem mesmo motos conseguiam passar
mais. Só helicópteros conseguiam se deslocar, embora houvesse um total
descontrole do tráfego aéreo sobre a cidade, pois muitas dessa aeronaves
chegavam do interior e de outros estados, demandando o Rio-Centro também. Do
alto, os helicópteros das TVs transmitiam inacreditáveis imagens de um Rio de
Janeiro totalmente coalhado e paralisado, com as estradas que a ele chegavam
igualmente congestionadas.
O fato é que estava marcado para 01,00 hs do dia 21
de Dezembro, a chegada da espaçonave salvadora ao Rio-Centro. Pelo horário de
verão do Brasil, aquilo correspondia ao início exato do fatídico 21 de
Dezembro. Ora, a imensa maioria da população não dera bola aos insistentes
avisos que as seitas salvacionistas vinham fazendo desde muito tempo. Agora,
quando os relógios viraram a uma da madrugada, quando aquela nave gigantesca,
muitas vezes maior que o Maracanã, se materializou como que por encanto, vinda
do céu límpido, acima do Cristo Redentor, foi o maior alvoroço.
Pânico geral: Então os crentes estavam certos! Ali
estava a espaçonave gigantesca, pronta para levar os eleitos. Sinal que a Terra
ia mesmo ser destruída. O desespero foi geral, todo mundo tentando de alguma
forma chegar ao Rio-Centro. Só que nenhum veículo podia trafegar, tudo estava
paralisado. Alguns, que estavam à beira-mar, tentaram invadir os clubes de
regatas, roubar lanchas, iates, barcos, caiaques até. Só que a massa não sabia
como conduzir esse veículos, aos quais ninguém mais protegia, os próprios
guardas da marinas sendo os primeiros a tentar a rota marítima de salvação.
Na hora certa aprazada, a nave pairou sobre o
Rio-Centro e sobre a enorme multidão que, ali amontoada, prorrompeu numa
gritaria só, gritos de puro alívio. Estavam salvos! Todos os outros, homens de
pouca fé, pereceriam. Bem feito!
Por que o Brasil, por que o Rio de Janeiro? Bem, tudo
deveu-se ao prestígio com os extra-terrestres de Pai Luiz Adão de Oxossi e
Yogananda, criador da Yoga Umbandista das Sete Linhas de Shiva e Aruanda. Seu
grupo de adeptos era o que merecia ser salvo, sem qualquer dúvida. Mas havia
também o grupo dos estrangeiros, liderado pelo avatar peruano (ou
porto-riquenho, segundo outros), que se dizia uma reencarnação do próprio Deus
menino. Também eles e seus adeptos seriam salvos, mas para isso tiveram que vir
dos quatro cantos do mundo para o Rio de Janeiro. O resto da humanidade iria
perecer. A própria nave, usando seus recursos tecnológicos do outro mundo, se
encarregaria de abalar as estruturas tectônicas do planeta, deflagrando uma
onda de terremotos, vulcões e tsunamis. A Terra estava condenada, só os eleitos
seriam salvos, abduzidos para o mundo mais evoluído nos arredores do sistema
planetário principal da estrela Xrstfrem, conhecida pelos terráqueos como Épsilon eridani.
Mas os Xrstfremianos não contavam com a falta de
infra-estrutura do Rio de Janeiro e seus arredores. Chegaram pontualmente, mas
os brasileiros, para variar, estavam miseravelmente atrasados. O comandante
Drstgrtwan levou todas as suas seis mãos às cabeças, em desespero. E agora?
Tinha só o equivalente a uma hora terrestre para evacuar os eleitos, o que era
fácil, já que usaria o plurissugador molecular e aspiraria aquela ratalhada
terráquea toda em questão de minutos apenas. Em pouco tempo estariam todos
amontoados nos depósitos de carga e aí receberiam o raio letargizante. O que
seus superiores pretendiam fazer com aquela carga enorme de horrorosos bichos
fedorentos de uma só cabeça, ele não tinha a menor idéia. Nem se importava com
isso. De qualquer maneira, eram só alimárias, bichos ultra-primitivos, mas já
vaidosos o bastante para acreditarem nas mesmas velhas histórias de salvação
que os Xrstfremianos contavam há éons pelas galáxias. A última leva de
primitivos que ele levara de um planeta do sistema da estrela Bgrsditrovsy,
algo em torno de uns cem mil, esses tinham sido usados como matéria prima nas
fábricas de proteínas raras.
Mas agora o comandante Drstgrtwan tinha uma séria
decisão a tomar. Depois de uma hora terrestre de iniciado o resgate dos monocéfalos,
ele teria apenas o equivalente a seis minutos da Terra para acionar os
mecanismos de destruição planetária. Era uma janela exata de tempo, depois
disso, condições iguais só depois de séculos. Por causa desse momento é que
tinham escolhido e propagado entre os monocéfalos terráqueos a tal historinha
do 21 de Dezembro de 2012. Drstgrtwan levou às mãos às barrigas, não pôde
evitar que seu corpo de 5 metros terráqueos fosse todo ele sacudido como uma
onda, tal a força da gargalhada que lhe sobreveio, ao lembrar disso.
Mas agora o seu problema era sério. Tinha um número
certo, contratual, de monocéfalos a levar. Se não fizesse isso, seu prestígio
como comandante de nave de carga de alimárias escravas estaria comprometido.
Por outro lado, também não podia deixar de destruir o planeta Terra. Seus
superiores militares em Xrstfrem tinham tomado essa decisão ao concluírem que
aquela espécie humana da Terra, os monocéfalos, tinham todas as péssimas
qualidades dos Xrstfremianos e que evoluiriam para se tornarem igualmente
conquistadores e escravizadores de galáxias. Ora, era preciso cortar o mal pela
raiz, destruir logo essa corja de perigosos futuros concorrentes enquanto era
tempo.
Na dúvida, o comandante manteve mais tempo o
plurissugador ligado. Quem conseguisse, daquela longa procissão de veículos e
pessoas desesperadas correndo a pé, chegar suficientemente perto da nave, seria
automaticamente sugado e descarregado no depósito de alimárias. Mas estava
intranqüilo, o momento de abertura do portal de destruição tectônica estava
muito próximo e ele precisava de toda energia para abastecer suas máquinas de
raios, teria que desligar o plurissugador.
Foi quando aconteceu o inesperado. As telas da sala
de comando acusaram a aproximação de uma nave amiga. Com a velocidade que
vinha, em menos de três segundos terrestres apareceu ela pairando sobre a baia
de Guanabara. Era a nave gêmea da sua, comandada por Drstgrtvon, seu irmão
gêmeo também. É que no seu mundo, as crianças nasciam de suas máquinas
geratrizes sempre em grupos de 20 gêmeos, um sistema muito mais prático que o
terráqueo. Mas Drstgrtwan e Drstgrtvon se odiavam. Profundamente.
Que invasão era aquela de
sua missão, quis saber
Drstgrtwan. Seu gêmeo respondeu que viera resgatar os seguidores do avatar
peruano (ou seria porto-riquenho?), recebera a missão de honra, tão logo
Drstgrtwan partira com sua nave. Seguiu-se um áspero diálogo cheio de ameaças,
em idioma Xrstfremiano, que mais lembraria, para os terráqueos, duas hienas
rindo aos guinchos. O tom de voz foi subindo, o teor das ameaças também, até
que o comandante Drstgrtwan perdeu as cabeças: fez um sinal a seu imediato,
este assestou o canhão de proa e apertou o botão. Um feixe de luz azul intensa
saiu da nave e atingiu em cheio a de Drstgrtvon. Como esta estava com o escudo
de proteção parcialmente desativado, foi atingida seriamente., Mas não o
suficiente para impedi-la de revidar. E revidou a tempo, antes que o escudo de
proteção da nave de Drstgrtwan estivesse totalmente ativado. A avaria foi
igualmente grande. Aí os dois comandantes começaram manobras de evasão e ataque
realmente fantásticas. As naves subiam em espiral em velocidades
inacreditáveis, circulavam uma à outra como um sistema de estrelas duplas, e
despejavam raios e mais raios de destruição, espetáculo pirotécnico inigualável.
Em baixo, os terráqueos monocéfalos estavam atordoados. Caramba, aquelas eram
as naves dos arautos da paz, da civilização superior que os viria resgatar para
um mundo realmente evoluído, à altura dos únicos seres na Terra a ter fé nos
bondosos extraterrestres, espíritos de luz?
Uma fração de segundo depois, a nave de Drstgrtvon
foi destroçada a ponto de perder o controle. O comandante então, numa manobra
de desespero, do tipo tudo ou nada, ainda teve tempo para fazer uma última
tentativa. Concentrando toda a energia que lhe restava, arremeteu direto contra
a nave do odiado irmão gêmeo. Estavam muito, muito alto sobre o Rio de Janeiro
quando as duas naves colidiram e explodiram, desintegrando-se totalmente.
Os crentes choraram a perda da salvação. Ficaram
ainda alguns dias acampados da forma mais precária possível, sem água, comida
ou higiene, à espera de outra nave. Quando era de todo impossível sobreviver
ali, começaram a empreender a longa viagem de regresso, que para alguns chegou
a levar até um ano.
O que eles e os outros habitantes da Terra nunca
ficaram sabendo é que o planeta havia sido milagrosamente salvo pela hesitação
de Drstgrtwan e pela chegada inesperada de seu gêmeo e desafeto Drstgrtvon.
Mas no fundo, a verdade é que a Terra foi salva pela
falta de infra-estrutura do Brasil e do Rio de Janeiro para grandes eventos,
para o uso maciço de suas estradas e aeroportos, e também pela proverbial
impontualidade e desorganização dos brasileiros.
Houvesse um grande líder de nome Ulrich von Oxossi
und Yogananda na Suíça, para lá se teriam dirigido as naves Xrstfremianas e o
nosso planeta teria sido destruído pontualmente às cinco da manhã da Suíça. Santa,
bendita bagunça nossa!
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