BENTINHO – Um Conto de Natal
MILTON MACIEL
A luz ficou
vermelha outra vez. O menino deu um pulo e começou a andar entre as fileiras de
carros estacionados. Era o tempo de contar 30 e eles saiam outra vez
apressados. Depois de um tempo muito maior que contar 30, a luz vermelha acendia
outra vez. Contar 30 de novo. Nesses escassos contar 30, ele tinha que correr entre os
carros e ver se algum estava com a janela aberta; ou se, coisa ainda mais
difícil, aceitava abrir o vidro para ele. Em qualquer dos casos, tinha que ser
rápido e desfiar suas pedidas tristes:
Moço, um trocadinho, to com muita fome.
Por favor, é pra alimentar meus irmãozinhos.
Minha mãe é doente, moça. De verdade!
Senhor, por caridade, só uma moedinha.
O pior é que
Bentinho nunca mentia. Tudo aquilo que ele falava era sempre verdade. Fome era
o que ele mais tinha. Não podia tirar nada para si, tinha que levar todo o
dinheiro para casa, para comprar comida para os irmãos ainda menores do que
ele, que eram cinco. Mais velha que ele só Cidinha, 12 anos, a única que
ia à escola. E sua mãe era mesmo doente. Doente de cachaça, era viciada! Não
durava em nenhum emprego, vivia tomando porres, faltava. Quando estava sóbria,
era uma pessoa boa. Mas a maldita da bebida acabava com ela. Acabava com todos
eles.
Hoje Bentinho
sabia que era um dia daqueles. Tinha que chegar com dinheiro, senão apanhava. E
tinha, além disso, que chegar com a garrafa de cachaça, senão apanhava também.
A mãe se descontrolava, parecia outra pessoa totalmente diferente, xingava,
batia. Ele contou de novo as moedas no bolso do short. A cachaça, o mais
importante, já estava garantida. Era só passar na birosca do Carvão, que ele
vendida cachaça pra menor de idade sem o menor problema. Tinha também algo pra
comprar comida. Mas precisava se garantir com os trocados da condução: três
ônibus pra voltar pra casa, três pra voltar pro ponto amanhã.
Bentinho
continuou mais duas horas no desfile entre os carros, o dia até que não estava
ruim hoje. Uma senhora abaixou o vidro e lhe deu uma nota de 5 reais:
– Tome, meu
filho, vá se alimentar direitinho
Só aí Bentinho
lembrou que havia tanta música e tanta propaganda pela cidade por causa de
alguma coisa. Tinha mais gente e mais carros nas ruas também. Ele não tinha bem
certeza do que era isso, mas mesmo assim assobiou feliz: uma nota de cinco
reais, uma raridade! As pessoas normalmente só davam moedas, mas, mesmo assim,
eram muito poucas as que davam algo. A imensa maioria mantinha os vidros dos
carros fechados. Ou fechavam-nos rapidamente, quando viam que ele se
aproximava. Algumas, de vidro aberto,
não lhe davam nada além de uma cara feia. Vez por outra ouvia algo assim: Não se deve dar esmolas. Ou: Dar esmola é sustentar vagabundo.
Ele, vagabundo?
Tinha nove anos, trabalhava todos os dias, domingo e feriado inclusive, com
chuva ou com sol, com frio ou com calor, toda a manhã e toda a tarde. E até de
noite, se a féria estivesse muito ruim naquele dia. Não, ele não era vagabundo!
Mas agora já
podia ir. E foi o que fez, saiu mais cedo do ponto, contente com a nota de cinco
e as moedas. Passou na birosca do Carvão, pegou a cachaça. Apressou o passo
para chegar em casa e ver o que Cidinha precisava comprar de comida praquela
noite. Com certeza ninguém tinha comido nada em casa, era sempre assim até ele
chegar com o dinheiro do dia. Cidinha, de 12 anos, tomava conta da casa e dos
irmãos menores, fazia a comida quando tinham, lavava as roupas, mantinha o
barraco limpo e asseado de dar gosto.
Mas, quando
Bentinho saiu da birosca com a garrafa, ficou surpreso ao ver Cidinha andando
com pressa, quase correndo. Vinha com uma sacola bem cheia nas mãos, outra nas
costas. Parou ao vê-lo e falou depressa:
– To fugindo de
casa. Sabe aquele desgraçado do Tião, que se enfia no quarto da nossa mãe e
ficam fazendo aquelas coisas e bebendo? Pois é, hoje a mãe tava dormindo de
porre, então ele tentou me agarrar. Só que eu já estava preparada, ele já tinha
tentado antes. Desta vez eu fiz que
estava com medo, mas fui me encostar no armário quebrado. Quando ele me agarrou,
eu peguei rápido o martelo que eu tinha escondido ali pra isso mesmo. Aí
virei-lhe uma martelada nos cornos com toda a minha força. Pegou acima da
testa, acho que fez um buraco. O desgraçado caiu cheio de sangue no chão e
começou a tremelicar os braços e as pernas sem parar. Parecia uma barata
envenenada. Aí eu corri pra pegar as minhas coisas, quando ele levantar ele me
mata.
– Mas pra onde
você vai, menina?
– Pra rua! Pra
onde mais eu posso ir? Mas vou ficar viva, pelo menos até aquele bandido me encontrar.
– Mas maninha,
como é que vai ser com as crianças? E a mãe? A mãe vai ficar mais louca do que
nunca. Mas o pior é: como é que você vai ficar por aí, a rua é horrível,
perigosa.
– Olha, Bentinho.
Por agora eu vou ficar na minha escola. Não tem ninguém lá, já é férias, eu vou
pular o muro de trás e fico por lá, as portas das salas de aula não fecham
direito, eu me abrigo numa, durmo sentada. Sei como entrar na biblioteca também, vai ser muito bom.Tem um monte de banheiros, posso tomar banho, não vou
passar sede. Só fome.
– Não, fome você
não passa. Olha, vou dividir o dinheiro que sobrou da cachaça com você, tem uma
nota de cinco, fica pra você. E eu sei onde é sua escola. Pode deixar que
amanhã eu passo por lá e lhe deixo mais algum, antes de vir pra casa.
– Bentinho, você
é um santo! Obrigada. Mas agora eu preciso ir, tenho que pegar aquele ônibus
antes que o monstro venha atrás de mim. Espero você na escola amanhã, você me
conta como ficaram as coisas em casa.
Bentinho entrou
em casa por volta de 7 de noite, com cuidado. Viu que nenhuma das crianças
estava lá dentro, na certa tinham fugido com medo de Tião. Foi
quando avistou o mulato esvaído em sangue no chão, sacudindo os braços e as
pernas de uma forma muito esquisita. Os olhos estavam esbugalhados, mas não
acompanhavam Bentinho. No chão, bem perto, o martelo.
Bentinho sentou
em frente ao homem e ficou olhando fixamente para a cara dele. Pensava em sua
irmãzinha. Com só doze anos ela ia ter que enfrentar a rua em breve, ia virar
prostituta com certeza, ou coisa pior: ladra e drogada. E tudo por causa
daquele maldito ali no chão. Por que a martelada não tinha conseguido matar
aquele desgraçado? Então Cidinha estaria salva. E tudo continuaria como antes.
Ele trabalhava na rua, ela trabalhava em casa e ainda podia estudar, coisa que
não interessava a nenhum dos outros irmãos, ele inclusive.
O menino olhou o
martelo no chão. Olhou o homem que estava causando toda aquela desgraça,
Cidinha condenada para sempre por causa daquele bandido. Então a idéia lhe veio súbita, como um lampejo. Deu um salto da cadeira, apanhou o martelo. Empunhou-o com
ambas as mãos. Abaixou-se e vibrou um golpe tremendo no crânio do homem. Fez
uma barulho de coco quebrando. O homem parou imediatamente de sacudir as
pernas. Estava feito! No quarto, a mãe ressonava.
Correu para a
birosca de Carvão. Entregou a ele o martelo. Falou para todos ali ouvirem:
– Eu matei o
Tião, ele estava tentando matar minha mãe. Peguei ele com esse martelo. Bati
até matar. O assassino sou eu. Agora vou me mandar. Até.
E correu a
esperar o ônibus, ia direto para a escola de Cidinha ali no bairro mesmo, ela
precisava saber que estava salva. Podia voltar para casa, podia fazer comida
para a criançada, podia seguir tomando conta de tudo. Podia continuar estudando e ter um futuro, pelo menos ela..
Ele? Bem agora
ele era um bandido também, um assassino. Nunca pensou que isso pudesse lhe
acontecer. Mas não estava triste. Estava até feliz, tinha salvo sua irmã, a
pessoa que ele mais amava neste mundo, de uma desgraça total, de uma vida horrorosa. Amanhã a polícia viria atrás
dele, ele estaria no ponto, seria fácil encontrá-lo. Contaria a “verdade”.
Ninguém ia achar ruim a morte de Tião, bandido com uma ficha corrida de metros.
Já ele, era menor de idade, não podia ser preso. Talvez o levassem para uma
casa de menores. Mas também era possível que não. Afinal, ele matara para
defender sua mãe. Na birosca um homem velho desdentado lhe fizera um sinal de positivo com o dedão, e sussurrara: Esse moleque é um herói!
Lá fora, na noite
quente, luzes e buzinas festejavam. Era Natal, mas Bentinho não tinha muito
idéia do que era isso. Na certa alguma coisa boa que só acontece para os outros, para os que passam dentro dos carros.