MILTON MACIEL
70 – A PESSOA ESCOLHIDA
Fim do cap. 68: "Ora, carcamano – respondeu Celso, rindo – um outro mecânico, um torneiro, chegou a presidente neste país. Não é esse o problema, portanto. E você é brasileiro naturalizado, logo..."
– Mas eu
sou mecânico! Mecânico, cáspite! E eu
digo isso porque eu gosto de ser mecânico, toda a minha vida eu fui mecânico,
só mecânico, desde molequinho. E eu não quero ser outra coisa. Muito menos ser
prefeito. Nem vereador. Nem porcaria nenhuma que não seja mecânico. Eu vivo do
cheiro da graxa, do carinho das engrenagens, da doçura dos pistões nos
cilindros, eu...
Celso
interrompeu-o, rindo todo contente:
– Um
poeta! Eu já disse, mais de uma vez, que você é um poeta, italiano: Carinho das
engrenagens, doçura dos pistões... Demais!
– Poeta
só se for de motor e de câmbio, doutor. Mas eu, com toda certeza, posso só ser
o pior prefeito que Amarante jamais terá em toda a sua história. Estou fora, me
desculpem!
Foi a
deixa para Gládis entrar em cena:
– Calma,
Rondelli. Relaxe. Tranquilo. Não foi você a pessoa escolhida.
Rondelli
arregalou os olhos, soltou um sonoro “Ufa,
graças a Deus!” e olhou para Celso Teles, no que foi secundado por todos os
presentes. Então Celso disse:
– Isso
mesmo, Rondelli. Eu não ia cometer essa maldade com um grande amigo. Além do
que, é claro, não posso ficar sem o meu mecânico chefe, eu sou egoísta pra
burro, não cedo você pra Amarante, mesmo sabendo que você é o salvador da
pátria.
Todos
caíram na gargalhada, enquanto Fúlvio Rondelli finalmente sentava – ou melhor,
desabava sobre a cadeira. Celso Teles, rindo e gozando-o, era sinal seguro que
daquele fantasma ele estava livre. Então, mais aliviado, raciocinou e comentou:
– Mas
isso quer dizer que, eliminado o italiano aqui, só sobram estes dois meninos,
Larissa e Leon. Faz sentido, doutor?
Foi
Gládis De Rios quem respondeu:
– Todo
sentido do mundo, Fúlvio. Olhe bem para essas duas cabeças loirinhas e você
está vendo o futuro de Amarante.
– NÓS?! –
estranhou, incrédula, Larissa, arregalando as duas joias de água-marinha
desmesuradamente.
– NÓS? –
falou Leon, mais incrédulo ainda – Isso é brincadeira, pegadinha na certa.
Imaginem eu, de playboyzinho inútil a prefeito em dois anos. Que desastre não
ia ser! Gente, eu não sei fazer NADA! Rigorosamente nada, nunca fiz.
– E nem
eu – reforçou Larissa – Quer dizer, agora eu aprendi a vender carros, é a
primeira coisa que eu faço na vida. Mas de vendedora de automóvel a prefeita...
Claro que é gozação deles pra cima de nós, Leon.
Mas
Gládis, a infalível Gládis, sorria para eles e fazia que não com o dedo, o que
os deixou desconcertados. O que significava tudo aquilo, então?
Celso
organizou as coisas:
– Bem, aqui ninguém está brincando, não. Não dá
para brincar com o futuro da nossa cidade, a coisa é séria. Então, número um: não é brincadeira. Número dois: só tem Rondelli, Leon e Larissa. Número três: não é Rondelli. Número quatro: só sobram Leon e Larissa. Número cinco...
E
deixou, divertido, a coisa no ar. Obviamente era o convite para que Gládis
assumisse. Agora a coisa ficava melhor com uma pitonisa. E ela falou:
– Número
cinco: são Leon e Larissa juntos! Os dois. Mas não simultaneamente, tipo
prefeito e vice-prefeito. Quer dizer, não simultaneamente, mas sucessivamente.
Paula
interrompeu:
– Peraí,
peraí, chefia! Agora fundiu. O que quer dizer isso?
Gládis
respondeu:
–
Sucessivo quer dizer um depois do outro, esqueceu mocinha?
– Claro
que não, não é! Mas expliquem logo esse mistério, está me dando nos nervos.
– Nossa,
Paula, se está dando nos seus, imagine nos da gente. Eu não estou entendendo é
nada.
– E eu
menos ainda, Lissinha – reforçou Leon.
Carmen
entrou na conversa pela primeira vez:
– Olhem,
eu acho que sei onde vocês estão querendo chegar. E, se for isso, caramba, é a
coisa mais maluca que eu já vi nesta cidade. Só que, se parte de Celso Teles e
tem o aval da nossa bruxinha, então a coisa só pode dar certo. É uma coisa de
preparar para o futuro, não é Celso? Foi por isso que você falou que o tempo,
um ano e meio, dois anos até a posse, conta a favor nosso, não é?
– Isso
mesmo, espanholita-mãe. Você já entendeu tudo.
– Mas a
tapada aqui ainda está por fora.
Foi
Lucas que respondeu para Paula:
– Dois anos pode ser um tempo bem razoável para
formar um administrador, desde que, é claro, esteja em mãos de uma grande
equipe de formadores e seja... bem, seja...
Celso
ajudou:
–
Honesto! Pode dizer, Lucas, é isso mesmo. É por isso que esses dois estão na
jogada: por causa da matéria prima que eles representam.
Ele fez
sinal a Gládis, que levantou novamente e conduziu a conversa:
– Deixem
que eu abuse um pouco da lógica com vocês. Agora é papo além da lógica, envolve
futuro. Vocês já conhecem os nossos herdeiros riquinhos de Amarante, que
nasceram em berço de ouro, que nunca fizeram nada, que nasceram as criaturas
mais bonitas desta cidade, que tiveram como pais homens horrorosos, os quais
queriam, por que queriam, que os dois casassem na marra. E nunca deixaram nenhum
deles trabalhar. Mas se há uma coisa que eu posso dizer deles, de ambos, é que
eles são do Bem, da Grande Luz.
A voz de
locutora de rádio aparteou:
– Ah,
isso eles são mesmo, Gládis. Meu copinho é um ingênuo sem maldade, nem parece
que cresceu sob a influência daquele pai dele, daquela família toda cheia de
preconceito de tudo que é tipo. A prova maior? Euzinha aqui: simplesmente esposa dele! E a Fofinha, então? É a nossa criança, o nosso anjo, a nossa alma
pura.
– Limpa,
honesta, transparente, sincera, generosa...Sim, uma alma pura, Jenny – completouCarmen.
– Então,
gente - continuou Gládis - o que isso tudo quer dizer para vocês? Que essas duas criaturas foram
mantidas como que suspensas, fora da realidade completa, preservadas, eu diria.
Preservadas, para que fossem entregues a nós no momento certo: Larissa entregue
a Celso, a mim, a todas nós. Leon entregue a Jennifer, a Celso, a Rondelli. Mas
preservados, entendem?
– Sim, Gládis – interveio Paula – faz sentido agora. Faz sentido. Matéria prima
de primeiríssima. Mármore de Carrara, coisa fina. Onde se pode talhar as mais
belas esculturas.
– Caspite, vocês têm razão! Essas crianças
mantiveram uma pureza de caráter que não se encontra mais por aí. É como se
eles estivessem programados para começar só agora. Sim, é isso, porca miséria! Eu estive com eles quase
desde o começo. Eu acompanhei os dois, eu amparei os dois, eu vi os dois
crescerem. E então vocês chegaram. E revolucionaram tudo aqui nesta cidade. E
revolucionaram a minha vida. E, agora, a vida destes meninos aqui.
– É
isso, Rondelli. Eles são, como a Paulinha disse, blocos de mármore de Carrara. Preservados...
– disse Carmen.
– Pois
então agora todos podem compreender o que vem a seguir. Prestem atenção. É como
se houvesse um plano muito maior do que todos nós, um plano para esta cidade
toda. Um plano para preservar Amarante da desagregação, usando suas crianças-prodígio, as crianças que a população aprendeu a amar, que o povo viu que não
saíram aos pais bandidos, mas que, ao contrário, são exemplos de caráter e de
luta contra a opressão desses pais.
– Pois
vejam – seguiu Jenny – Leon sai de uma família alemã ariana pura para casar com
uma negra. Isso o coloca claramente do...
– Do
lado do povo! – completou Lucas.
– Pois é
por aí mesmo, camarada – disse Celso. Esse aí caiu em desgraça com os racistas,
mas aterrissou nos braços do povão, pode ter certeza.
– Como
eu já ouvi algumas vezes: “O Schlikmann sangue bom”. “O carinha mais legal”.
“Um senhor centroavante”.
Leon
perguntou, surpreso:
– Você
ouviu essas coisas, é, Lissinha?
– Isso e
muito mais, Leonzinho. Gente, se o Leonzinho for o nosso candidato, metade da
mulherada vota nele, porque deve ser o número de mulheres que ele levou pra cama
nesta cidade.
– Ah,
tá, não exagera, Lissinha! Eu não tava com essa bola toda. Oi, Jenny, não vai
atrás da Lissinha, é exagero.
–
Exagero, nada, seu galinhão, você passou o rodo por atacado que eu sei. Mas não
tem importância, ainda sobrou muito pra mim, tá dando pro gasto.
O
comentário de Jennifer tirou todos do sério, provocando gargalhadas, inclusive
em Leon e Larissa, que ainda estavam muito perplexos e assustados com o rumo da
conversa.
Celso
fez sinal para que Gládis continuasse. E ela finalmente anunciou:
– A
proposta do Celso é a seguinte: Leon Schlikmann vai ser o nosso candidato. E
Larissa Silva vai ser a sua sucessora, quando chegar a hora.
Larissa
agarrou-se a Celso Teles, um tanto em pânico:
– Mas
eu, amor?! Mas o que eu sei fazer? Nossa, uma prefeita tem que saber tudo,
tudo,.. Eu não sei nada, nada.
– Mas
você vai ter DEZ longos anos de preparação, meu bem.
– Dez
anos? – estranhou Paula.
– Sim.
Dois anos até o Leon assumir. Mais oito anos dos dois mandatos do Leon como
prefeito. Então, depois disso, vêm os seus oito anos, seus dois mandatos.
–
Gládis!!! Mas isso é loucura, é impossível até de imaginar!
– Pois
não imagine, Fofinha, apenas se
entregue. E eu juro que você vai ser tudo isso e muito mais. Entregue-se a nós
e entregue-se a Amarante e seu povo. E tudo vai acontecer. Deixe a sua
preparação com o Celso e todos nós. Nesse oito anos você vai estar casada com o
Celso, vai ter seus filhos, que você tanto quer, eu sinto. E vai aprender a
levar sua vida de adulta, de mãe, de amiga e, principalmente, de centro de
força e de amor.
– Como
assim, Gládis?
– Deixe
isso com a sua amiga bruxa aqui, Fofinha, eu estou escrevendo na tela do seu
futuro, mas uma boa parte disso eu discuti antes com Maria Amália. Ela viu muito
disso no seu mapa astrológico e eu vi no inexplicável, com sempre vejo.
– Mas...
Mas...
– E tem
mais: Maria Amália disse que é para incentivar você imediatamente a desenvolver
a profissão que o seu coração escolheu. Pois é com essa profissão que você vai
fazer muito, muito, por esta cidade e seus habitantes.
Larissa
deu um dos seus proverbiais gritinhos pulados:
–
Agrônoma?!
– E tem
outra? Vai querer ser supervendedora de automóveis o resto da vida?
– Não,
não. Seu eu puder escolher, não tenho dúvida. Você fica chateado, amor? Quer
que eu fique na Teles direto?
– Não,
meu anjo. A Maria Amália já me preparou para isso. Eu quero você na Teles só
para ficar curtindo você, adorando você. Mas eu estou pronto para deixar que
você alce o seu próprio voo. Amo você demais para prender você egoisticamente
a mim. Vá ser agrônoma, essa é a sua vida, amor. O que Maria Anália e esta
bruxinha aqui falam, a gente assina embaixo sem precisar ler. Eu até já pensei
como você pode dar começo na sua profissão.
– Como?
Como?
– Ora, o
óbvio. A gente compra uma FAZENDA e põe ali tudo o que você quiser produzir. E
você aprende a fazer fazendo, se especializa, se realiza.
Larissa
gritou, apertou Celso num abraço de quase sufocá-lo, resistiu o que pôde, mas
acabou entregando os pontos e desfaleceu. Era emoção positiva demais para ela e
é assim que os anjos da Terra reagem ao contentamento e à gratidão excessivos. Ninguém
se assustou ou impressionou com aquilo, já estavam acostumados. Celso apenas a
susteve e esperou pelo clássico tempo de um minuto, após o qual Larissa voltava
inteiramente ao normal, como se nada houvesse acontecido. Os anjos são assim,
são diferentes, não são como as pessoas comuns.
Após o
tal minuto, do qual Larissa emergiu para beijar Celso apaixonadamente, Gládis
continuou:
– Leon
Schlikmann, você é o nosso candidato! Como Lissinha, você vai ter sua família e
seus filhos e vai amadurecer graças a esta rainha maravilhosa que você ganhou
de Deus e às crianças de vocês. Enquanto isso, mestre Celso e toda a sua equipe
vão investir tudo na sua preparação. Nós queremos você, Leon, porque você é
limpo, sincero e HONESTO.
– Limpo?
Eu?
Celso
explicou:
– Limpo quer dizer que você não tem um passado, Leon. Deferentemente do
todos os políticos por aqui, você é zero quilômetro, rapaz. É bonitão, é uma
simpatia e caiu nas graças do povo ao mandar seu pai pro quinto dos infernos e
casar com Sabá. Cara, você está pronto para começar a sua campanha. E, claro,
com o apoio deste outro cara que
agora, neste momento, os eleitores votariam nele maciçamente: Celso Teles.
– Putz,
mas é duro de ver algo assim na minha vida, Celso. Eu sou tão cru, tão
inexpressivo e...
–
Quieto, meu copinho! Não se diminua. Você é tudo o que há de bom. E é
inteligentíssimo, vai aprender tudo com a maior facilidade.
– Você
acha mesmo, Jenny?
– Ora,
claro que acho, meu amor. Tenho certeza absoluta. Gente, objetivamente, com
quem ele começa?
Gládis
saltou na frente com a resposta:
– Ora,
com quem o coração de Leon vibra em silêncio. Vamos lá, Leon, escolha um destes
mestres para começar. Fale sem receio, ninguém vai achar inadequado. Todos nós
queremos investir tudo em você, nosso prefeito de Amarante.
– Bem...
Posso pedir dois? Eu queria que o Celso me ensinasse muito de... bom, não tem
nada a ver com coisa de prefeito, mas é... futebol.
– Ah,
mas isso já estava nos planos, Leon. Pode começar já. E também dó Ibope com o povo. Quanto mais perfeito jogador você for, mais a massa vai admirar você.!E o outro é?
– Tio
Rondelli! Eu... bem eu queria aprender mecânica de automóvel com o tio. Acho
bárbaro o trabalho dele, nas vezes que vou à oficina, eu fico doido de vontade
de meter a mão na graxa, de mexer nas ferramentas, nos motores, de entender as
coisas... É inconveniente?
– Mas
claro que não, bambino. Comece amanhã mesmo, se quiser. Tudo certo, chefe?
– Mas
com certeza, Rondelli. Uma maravilha, Leon, parabéns.
– Sabe,
gente, eu quero começar a fazer algo forte, pesado, que dê resultados
concretos, na hora, que faça bastante barulho. Assim, eu que fui sempre um
vagal, vou me sentir útil e importante para os outros. E aí eu posso chegar em
casa morto de cansaço e com orgulho do meu trabalho. E posso olhar nos
olhos da minha rainha e me sentir bem, me sentir à altura dela. É isso, tio. Eu
quero ser mecânico como o senhor, ao menos até chegar a hora de ser prefeito, se
essa é mesmo a minha sina. E depois também, não é? Ninguém é prefeito a vida inteira. Depois
eu posso voltar a ser mecânico. Que tal?
–
Perfeito, rapaz. Beleza.
– Ai,
Leonzinho, olhe só o que está acontecendo com a gente: de uns incompetentes a
gente vai passar a ser alguma coisa: você mecânico, eu agrônoma. E, ainda por cima,
eles querem que a gente vire político.
Gládis
cortou na hora:
– Não,
não, meu amor! Não mesmo! Ai você não entendeu. A gente não quer que vocês sejam políticos,
a gente quer que vocês seja administradores
de Amarante. É muito diferente. Vocês, a rigor, não estão aqui para fazerem
carreira na política, mas para fazerem carreira como gestores honestos e
competentes. Findos os mandatos, você caem fora e voltam para suas vidinhas
doces de sempre. Nada de político e politicagem profissional. Está claro?
– Ah,
assim é muito melhor, muito melhor mesmo! Olha que, se vocês vão preparar a
gente e sendo vocês quem são, se o maestro é o Celso e a guru é a Gládis, bem,
eu começo a acreditar que a metamorfose é possível. De vocês eu não duvido mais
nada! O que você acha, Lissinha?
– Eu
ainda acho inacreditável, Leonzinho. Mas se são eles... Se o meu amor diz que
pode. Se a minha bruxinha diz que está vendo a coisa certa lá no
futuro, então... Ai, minha nossa, eu vou ter que fazer um esforço enorme para
poder acreditar nisso!
– E a
gente faz a parte prática, não é Rondelli? A rotina, a graxa, os números...
– Falou
e disse, amigo Lucas. Treina os músculos da garotada.
Celso
Teles, então, fez um sinal para que todos prestassem mais atenção e falou:
CONTINUA
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