MILTON MACIEL
60 – POR CONTA PRÓPRIA
Fim do cap. 59: "Num furacão do destino havia perdido pai e mãe, cada um de uma forma bem distinta. A mãe estaria acessível em outra cidade, o pai ficara-lhe como uma pesada herança, num provável quadro de demência senil."
Leon estava só e por conta própria, mas só
aparentemente. Não estava só de forma alguma: tinha Jennifer! E tinha Lissinha,
tinha Celso, tinha Tio Rondelli. E até as outras moças da Teles, a começar por
aquela excepcional Gládis de Rios que, além de todas as inacreditáveis
capacidades que tinha, normais e paranormais, além da extraordinária beleza,
era também, soubera-o só agora, uma das maiores bailarinas de flamenco que
existia em todo o país.
Na verdade, agora ele estava cercado de gente
boa, honesta inteligente e amiga,
acima de tudo. Sozinho ele estava era antes, quando vegetava sua vida naquele
mausoléu imenso e fugia dessa solidão de uma família fria e distante jogando
futebol quase todos os dias e pilotando seu Porsche dia a noite, com desespero,
sempre à procura de uma mulher a quem amar. Mulher que nunca havia encontrado,
por mais que dezenas e dezenas tivessem aberto suas róseas intimidades para ele,
como tão bem expressou Tio Rondelli.
Até o dia em que viu Jennifer Oliveira
reduzindo seu insolente pai a nada vezes nada. Então achou a mulher que tanto
procurava! E agora, milagre dos milagres, ia casar com ela dentro de mais três
dias.
No dia em que comunicou a sua mãe a data do
casamento, logo ao findar o difícil diálogo com ela, Leon saiu andando a pé e
caminhou mais de meia hora, outra vez, até chegar na Teles Automóveis. Andou
sem pressa, parando a todo momento, curtindo cada ponto de Amarante com um
interesse que há muito tempo não tinha. No caminho viu o quanto era conhecido
das pessoas e colheu um enorme número de cumprimentos simpáticos.
Algumas pessoas paravam para conversar com ele
e muitas dessas o que queriam era cumprimentá-lo pela coragem de assumir sua
relação com a moça negra da Teles Automóveis. Leon dizia-lhes o nome dela e
anunciava a data do casamento para o sábado. E pedia nome e endereço completos
de cada uma dessas pessoas, que anotava numa folha de papel que pediu num bar,
usando um toco de lápis que a moça que cuidava do caixa lhe deu de presente.
Outras pessoas comentavam com ele sobre as
lamentáveis atitudes de seu pai e sobre a prisão dele. Deixavam muito claro que
não ligavam o filho a nenhum dos crimes do pai. Leon desconversava e caminhava
em frente.
Algumas poucas pessoas, contudo, fizeram
comentários maldosos, ou desrespeitosos a Jennifer, ou francamente racistas.
Leon então adotou, pela primeira vez, uma estratégia simples, que lhe fora
sugerida pelo delegado Oliveira. Leon parava, voltava andando até a pessoa ou
pessoas, se necessário, retirava o celular do bolso e colocava-o na função
filmadora. Então dizia:
– Bom dia. Por favor, quero lhe pedir o favor
de fazer seu comentário aqui na frente da câmera. Assim fica mais fácil para
denunciar você por infração à Lei Afonso Arinos, por crime de racismo.
Desculpe, mas estou segundo instruções do delegado de Amarante, Doutor Norberto,
e do Promotor, Doutor Tibúrcio.
Invariavelmente a pessoa ou pessoas resmungavam
algo e tratavam de se afastar rapidamente de Leon. Em frente ao Cinema Central,
contudo, Leon encontrou seu primeiro caso mais difícil.
Na calçada em frente havia três homens
conversando, dois deles apoiados numa moto estacionada. Ao verem Leon passando
em frente ao cinema, começaram a dizer coisas pesadas para ele. Um deles falou:
– Aí, filhinho de papai, tá na pior com o velho
em cana, é? Perdeu tudo, tá andando a pé?
Leon nada respondeu, aquilo não o atingiu tanto
como imaginou que atingiria. Fez que não ouviu nada. Mas os outros dois homens
não deixaram barato e Leon reagiu:
– Na pior nada! O playboyzinho anda é comendo o
rabo daquela crioula bunduda.
– Comendo carne de urubu? Que gosto! E a
catinga?
Leon atravessou a rua e chegou nos três homens.
Tirou o celular do bolso e colocou-a para filmar. Quando disse que podia
denunciar os comentários racistas, um dos homens arrancou e celular da mão dele
e o outro pegou-o pelo colarinho, sacudindo-o.
– Por que? O playboyzinho vai brigar, vai? – E
deu um empurrão em Leon, que caiu sentado no chão. Os três homens riram,
debochando dele.
– Então, cara? Vai brigar? Ou tá com medo, vai
só apanhar? Vai brigar?
– Ele
não vai brigar. Mas eu vou!
Todos se voltaram surpresos para o enorme homem
que tinha falado aquilo, e que se aproximava ameaçador, com os punhos já
armados. Leon mal podia acreditar: era Aurélio,
seu ex-jogador do Delfim, que tinha tentado bater nele naquele jogo em que
acabou expulso.
Um dos homens da moto disse para o metido:
– Que é isso, cara? Ninguém te chamou aqui, não
se mete, ou apanha também. A gente tá em três, esqueceu?
Aurélio tinha a mesma altura de Leon, mas tinha
quase o dobro da sua massa muscular, era de fato um homem muito forte. Leon
aproveitou o inesperado apoio e levantou rapidamente. Colocou-se em posição de
luta também. Tinha chegado a hora. Detestava brigas, mas agora ia fazê-lo por
Jennifer! Aí os outros três começaram a
ficar com receio. Antes eram três contra um cara alto, mas fracote. Agora eram
três contra dois caras altos, só que o segundo parecia um touro, tinha um
pescoção impressionante de grosso. E esse cara
engrossou de vez:
– Ah, quer dizer que eu apanho, é? E quem é o
valente que vai bater em mim? Você, seu merda?
E desceu o braço no sujeito que tinha falado
aquilo. O soco foi dado de propósito também contra o peito, como haviam feito
com Leon. O homem rolou feio no chão, a força do coice era imensamente maior,
ficou gemendo encolhido, o murro havia pegado também a boca do estômago.
– O próximo!
E Aurélio encarou os outros dois homens, que
estavam agora mais do que assustados. Nenhum dos dois disse nada ou se moveu.
– Quem foi que derrubou o meu amigo?
Leon apontou para o de camisa marrom. Aurélio
se aproximou do cara, que estava visivelmente apavorado e que falou, meio
gaguejando:
– Não, não, foi só brincadeira, a gente só
falou umas bobagens, eu só encostei no peito dele, mas ele é muito magro, por
isso ele caiu – e, dirigindo-se a Leon, falou: – Pô, cara, eu não fiz por mal,
foi só brincadeira, eu juro, me perdoa.
Aurélio armou um sorriso sinistro:
– Tá bom, eu te perdoo em nome dele se você me
empurrar e me derrubar. Se não tentar, apanha feio. Se tentar e não conseguir,
apanha menos. Vamos lá. Vai brigar? Ou vai só apanhar?
O homem de camisa marrom considerou suas
escassas chances e foi para o tudo ou nada. Tomou impulso e se jogou de corpo
inteiro, com toda sua força, contra aquele armário alto à sua frente. Mas, por
incrível que pudesse parecer, o tal armário nem se mexeu do lugar. Então a
grande mão desceu, espalmada, sobre a cara dele. Ele rodopiou no ar e foi se estatelar
a mais de três metros de distância.
Nesse momento ouviram o ruído do motor da moto.
O terceiro sujeito tinha montado nela e estava fugindo à toda. O homem que
tinha levado o murro no peito e no estômago gritou, do chão:
– Minha moto! Filho da puta, cagão, fugiu com a
minha moto! Ele me paga!
– E vocês vão tratando de fugir a pé mesmo,
antes que o meu amigo aqui resolva que vai bater em vocês também. Ou, quem sabe
me pedir pra surrar vocês dois como merecem.
Os dois homens, ainda meio atordoados, não
perderam tempo. Levantaram num pinote e deitaram a correr como velocistas
quenianos. Várias pessoas já tinham se juntado ali para ver a cena de pugilato.
Uma moça bem jovem gritou para os fujões:
– Te cuida, Usain
Bolt!
O pessoal todo caiu na gargalhada e repetiu a
frase espirituosa da garota, referindo-se ao grande campeão mundial e olímpico
da prova de 100 metros rasos, o jamaicano Usain Bolt, o homem mais veloz do
mundo.
Quando as pessoas se afastaram, Leon dirigiu-se
a Aurélio:
– Puxa, cara, não sei como agradecer o que você
fez! Eu tava ferrado, não sou de nada, você sabe. Os caras iam me amassar todo.
E aí você surge de repente do nada e...
– Do nada coisa nenhuma, Leon. Eu estava
seguindo você.
– Me seguindo? Mas por que?
– Bem, eu vi você ali, se aproximando do cinema,
Eu estava na mesma calçada e aí apressei o passo para alcançar você. Eu
precisava muito falar com você.
– Precisava, é? Pra que?
– Pra te pedir desculpas,
cara. Foi mal aquilo que eu fiz lá no campo. Pô, a gente é amigo há mais de
cinco anos, eu jogava no Delfim há mais de três. E, de repente, por causa desse
meu gênio ruim de animal, eu vou e agrido o coitado do Celso Teles, justo o
cara que organizou tudo aquilo, que estava dando uma nova chance pro futebol de
Amarante. E, como se fosse pouco, quando você me esculachou, eu quis bater em
você. Puta mancada, cara! E ainda teve aquele lance de correr atrás do juiz que
me expulsou. Aí é que eu ia fazer a maior besteira de todas, podia machucar o
cara feio, acabar com um processo nas costas. Por sorte aquele enorme mulato me
encaçapou e me mostrou que eu não sou o cara mais forte do mundo. O cara mais
forte do mundo é ele. A aí ele me deu outra tremenda lição que eu não vou
esquecer nunca mais.
– Qual lição?
– Pô, Leon, eu estava na pior, soco na boca do
estômago, vomitando, o cara podia ter me quebrado todo, com aquela força de
mula. Pois ele maneirou, me levou com uma chave de braço que doía pra caralho
até o chuveiro, me segurou por uns minutos debaixo da água gelada, até eu me
tocar da tremenda burrada que eu tinha feito. Aí ele esperou que eu me secasse,
me vestisse e me mandou sumir. Essa foi a lição, cara: ele me mostrou como é
que se faz quando se tem, além da força, uma cabeça com juízo. Pois você acaba
de ver o resultado da lição. Eu fiz exatamente a mesma coisa agora com esses
dois merdas que estavam enchendo o seu saco. Podia ter arrebentado os covardes,
mas o tempo todo eu tinha na cabeça a lembrança do tal de Nicanor me segurando
com a maior calma.
– Puxa, cara, e eu que pensei que você tinha
virado meu inimigo, porque eu xinguei você e expulsei você do Delfim.
– Pois olhe só: Se eu não tivesse levado aquela
coça do Nicanor, se ele não tivesse me ensinado a grande lição que ensinou, é
possível que eu ficasse bravo com você, sim. Antes de aprender a minha lição,
eu era assim mesmo. Eu saí ali da Academia com uma puta duma raiva, do Nicanor,
do juiz, do Celso, de você. Mas, no caminho, todo cheio de dor das pancadas, eu
fui começando a ver que o único filho da puta da história era só eu. Primeiro
tive que reconhecer que o mulato livrou a minha cara, podia ter me arrebentado
todo. Depois vi que o que eu estava sentindo era só orgulho ferido, mas que era
merecido, que eu tinha passado vergonha por culpa minha mesmo. Aí pensei no juiz.
Pô, o coitado deve ter perto de 50 anos, é magrinho e baixo, graças a Deus
ainda é bom de corrida, senão a desgraça estava feita. E aí, quando o Nicanor
me catasse, ele não ia ter todo o controle que teve, aí eu acho que ele me
aleijava. Quando já estava chegando em casa, eu comecei a pensar no Celso
Teles. Porra, que puta jogador que o cara é, rapaz! Eu tinha é que ficar
admirando a categoria do cara, não querendo quebrar ele, porque ele fez o que
tinha que fazer, me driblar para passar por mim e chegar no gol. Mas o cara não
era só um superjogador, era o sujeito que nos proporcionou o torneio e o
prêmio, o cara que estava fazendo o futebol de Amarante ter uma chance enfim.
Foi nessa hora que eu comecei a sentir vergonha. Vergonha de mim! E, já em
casa, eu lembrei de você, Leon, da nossa amizade, das outras vezes que eu
engrossei e que você me pediu tanto que eu parasse com isso. E a vergonha
aumentou muito cara, porque eu me dei conta da estupidez minha de querer
agredir um amigo, um cara do meu próprio time. Porra, cara, a partir dali eu
acho que as fichas todas caíram. E eu
achei que você estava certíssimo em me excluir do Delfim e não ser mais meu
amigo.
– Puxa, cara, que surpresa...
– Bem, a partir daquela tarde mesmo eu comecei
a pensar seriamente em procurar você e lhe pedir desculpas. Não pra querer
voltar pro time, mas pela estupidez de querer bater em você. Eu ia fazer isso mais
hoje, mais amanhã. Aí aconteceu aquela barbaridade do atentado envolvendo o seu
pai e o da Larissa e eu fiquei achando que devia dar um tempo. Mas ontem eu
fiquei sabendo do seu caso de amor com a mulher negra mais bacana do mundo, a
que você entrevistou e chamou de capitã da seleção, eu lembro bem. Lembrei da
sua família e aí eu fiquei cheio de admiração pela sua coragem, cara. E decidi
que tinha que procurar você, não só pra pedir perdão, mas pra dizer que eu
estou 100% do seu lado. E que, se alguém enchesse o seu saco ou o da sua
namorada, era só me dizer, que eu ia me oferecer pra disciplinar o filho da
puta.
– Caramba, rapaz!
– E aí a gente deu sorte. Eu vi você andando a
pé no centro da cidade, uma raridade total. Apressei o passo pra alcançar você
e aí vi e ouvi os três idiotas começando a encher a sua paciência. E, quando o
imbecil de camisa marrom derrubou você, aí eu não me importei em controlar o
meu gênio ruim, aí era a hora certa de deixar a raiva sair. Saiu e deu no que
deu.
– Graças a Deus, cara! Puxa, muito obrigado,
Aurélio. Muito obrigado mesmo. Não sei como retribuir sua ajuda providencial
nessa hora.
– Hum, quem sabe dizendo que ainda me aceita
como amigo...
Leon apertou a mão do grandalhão e falou:
– Pô, mas claro, cara. Amigos pra valer. Vale
um abraço?
Aurélio abraçou o amigo recuperado e comentou,
feliz:
– Beleza, cara. E já sabe: se precisar de mim de
novo, é só dar um grito, você tem o meu telefone, eu venho correndo. Pelo
jeito, você vai precisar não só de mim, mas de uma brigada de cavalaria inteira, pra
afastar o tanto de filhos da puta que vão querer encher você ou a moça.
CONTINUA
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