quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

LUA  OCULTA – 60   
MILTON MACIEL 

60 – POR CONTA PRÓPRIA
Fim do cap. 59:  "Num furacão do destino havia perdido pai e mãe, cada um de uma forma bem distinta. A mãe estaria acessível em outra cidade, o pai ficara-lhe como uma pesada herança, num provável quadro de demência senil." 

Leon estava só e por conta própria, mas só aparentemente. Não estava só de forma alguma: tinha Jennifer! E tinha Lissinha, tinha Celso, tinha Tio Rondelli. E até as outras moças da Teles, a começar por aquela excepcional Gládis de Rios que, além de todas as inacreditáveis capacidades que tinha, normais e paranormais, além da extraordinária beleza, era também, soubera-o só agora, uma das maiores bailarinas de flamenco que existia em todo o país.

Na verdade, agora ele estava cercado de gente boa, honesta inteligente e amiga, acima de tudo. Sozinho ele estava era antes, quando vegetava sua vida naquele mausoléu imenso e fugia dessa solidão de uma família fria e distante jogando futebol quase todos os dias e pilotando seu Porsche dia a noite, com desespero, sempre à procura de uma mulher a quem amar. Mulher que nunca havia encontrado, por mais que dezenas e dezenas tivessem aberto suas róseas intimidades para ele, como tão bem expressou Tio Rondelli.

Até o dia em que viu Jennifer Oliveira reduzindo seu insolente pai a nada vezes nada. Então achou a mulher que tanto procurava! E agora, milagre dos milagres, ia casar com ela dentro de mais três dias.

No dia em que comunicou a sua mãe a data do casamento, logo ao findar o difícil diálogo com ela, Leon saiu andando a pé e caminhou mais de meia hora, outra vez, até chegar na Teles Automóveis. Andou sem pressa, parando a todo momento, curtindo cada ponto de Amarante com um interesse que há muito tempo não tinha. No caminho viu o quanto era conhecido das pessoas e colheu um enorme número de cumprimentos simpáticos.

Algumas pessoas paravam para conversar com ele e muitas dessas o que queriam era cumprimentá-lo pela coragem de assumir sua relação com a moça negra da Teles Automóveis. Leon dizia-lhes o nome dela e anunciava a data do casamento para o sábado. E pedia nome e endereço completos de cada uma dessas pessoas, que anotava numa folha de papel que pediu num bar, usando um toco de lápis que a moça que cuidava do caixa lhe deu de presente.

Outras pessoas comentavam com ele sobre as lamentáveis atitudes de seu pai e sobre a prisão dele. Deixavam muito claro que não ligavam o filho a nenhum dos crimes do pai. Leon desconversava e caminhava em frente.

Algumas poucas pessoas, contudo, fizeram comentários maldosos, ou desrespeitosos a Jennifer, ou francamente racistas. Leon então adotou, pela primeira vez, uma estratégia simples, que lhe fora sugerida pelo delegado Oliveira. Leon parava, voltava andando até a pessoa ou pessoas, se necessário, retirava o celular do bolso e colocava-o na função filmadora. Então dizia:

– Bom dia. Por favor, quero lhe pedir o favor de fazer seu comentário aqui na frente da câmera. Assim fica mais fácil para denunciar você por infração à Lei Afonso Arinos, por crime de racismo. Desculpe, mas estou segundo instruções do delegado de Amarante, Doutor Norberto, e do Promotor, Doutor Tibúrcio.

Invariavelmente a pessoa ou pessoas resmungavam algo e tratavam de se afastar rapidamente de Leon. Em frente ao Cinema Central, contudo, Leon encontrou seu primeiro caso mais difícil.

Na calçada em frente havia três homens conversando, dois deles apoiados numa moto estacionada. Ao verem Leon passando em frente ao cinema, começaram a dizer coisas pesadas para ele. Um deles falou:

– Aí, filhinho de papai, tá na pior com o velho em cana, é? Perdeu tudo, tá andando a pé?

Leon nada respondeu, aquilo não o atingiu tanto como imaginou que atingiria. Fez que não ouviu nada. Mas os outros dois homens não deixaram barato e Leon reagiu:

– Na pior nada! O playboyzinho anda é comendo o rabo daquela crioula bunduda.

– Comendo carne de urubu? Que gosto! E a catinga?

Leon atravessou a rua e chegou nos três homens. Tirou o celular do bolso e colocou-a para filmar. Quando disse que podia denunciar os comentários racistas, um dos homens arrancou e celular da mão dele e o outro pegou-o pelo colarinho, sacudindo-o.

– Por que? O playboyzinho vai brigar, vai? – E deu um empurrão em Leon, que caiu sentado no chão. Os três homens riram, debochando dele.

– Então, cara? Vai brigar? Ou tá com medo, vai só apanhar? Vai brigar?

– Ele não vai brigar. Mas eu vou!

Todos se voltaram surpresos para o enorme homem que tinha falado aquilo, e que se aproximava ameaçador, com os punhos já armados. Leon mal podia acreditar: era Aurélio, seu ex-jogador do Delfim, que tinha tentado bater nele naquele jogo em que acabou expulso.

Um dos homens da moto disse para o metido:

– Que é isso, cara? Ninguém te chamou aqui, não se mete, ou apanha também. A gente tá em três, esqueceu?

Aurélio tinha a mesma altura de Leon, mas tinha quase o dobro da sua massa muscular, era de fato um homem muito forte. Leon aproveitou o inesperado apoio e levantou rapidamente. Colocou-se em posição de luta também. Tinha chegado a hora. Detestava brigas, mas agora ia fazê-lo por Jennifer!  Aí os outros três começaram a ficar com receio. Antes eram três contra um cara alto, mas fracote. Agora eram três contra dois caras altos, só que o segundo parecia um touro, tinha um pescoção impressionante de grosso. E esse cara  engrossou de vez:

– Ah, quer dizer que eu apanho, é? E quem é o valente que vai bater em mim? Você, seu merda?

E desceu o braço no sujeito que tinha falado aquilo. O soco foi dado de propósito também contra o peito, como haviam feito com Leon. O homem rolou feio no chão, a força do coice era imensamente maior, ficou gemendo encolhido, o murro havia pegado também a boca do estômago.

– O próximo!

E Aurélio encarou os outros dois homens, que estavam agora mais do que assustados. Nenhum dos dois disse nada ou se moveu.

– Quem foi que derrubou o meu amigo?

Leon apontou para o de camisa marrom. Aurélio se aproximou do cara, que estava visivelmente apavorado e que falou, meio gaguejando:

– Não, não, foi só brincadeira, a gente só falou umas bobagens, eu só encostei no peito dele, mas ele é muito magro, por isso ele caiu – e, dirigindo-se a Leon, falou: – Pô, cara, eu não fiz por mal, foi só brincadeira, eu juro, me perdoa.

Aurélio armou um sorriso sinistro:

– Tá bom, eu te perdoo em nome dele se você me empurrar e me derrubar. Se não tentar, apanha feio. Se tentar e não conseguir, apanha menos. Vamos lá. Vai brigar? Ou vai só apanhar?

O homem de camisa marrom considerou suas escassas chances e foi para o tudo ou nada. Tomou impulso e se jogou de corpo inteiro, com toda sua força, contra aquele armário alto à sua frente. Mas, por incrível que pudesse parecer, o tal armário nem se mexeu do lugar. Então a grande mão desceu, espalmada, sobre a cara dele. Ele rodopiou no ar e foi se estatelar a mais de três metros de distância.

Nesse momento ouviram o ruído do motor da moto. O terceiro sujeito tinha montado nela e estava fugindo à toda. O homem que tinha levado o murro no peito e no estômago gritou, do chão:

– Minha moto! Filho da puta, cagão, fugiu com a minha moto! Ele me paga!

– E vocês vão tratando de fugir a pé mesmo, antes que o meu amigo aqui resolva que vai bater em vocês também. Ou, quem sabe me pedir pra surrar vocês dois como merecem.

Os dois homens, ainda meio atordoados, não perderam tempo. Levantaram num pinote e deitaram a correr como velocistas quenianos. Várias pessoas já tinham se juntado ali para ver a cena de pugilato. Uma moça bem jovem gritou para os fujões:

– Te cuida, Usain Bolt!

O pessoal todo caiu na gargalhada e repetiu a frase espirituosa da garota, referindo-se ao grande campeão mundial e olímpico da prova de 100 metros rasos, o jamaicano Usain Bolt, o homem mais veloz do mundo.

Quando as pessoas se afastaram, Leon dirigiu-se a Aurélio:

– Puxa, cara, não sei como agradecer o que você fez! Eu tava ferrado, não sou de nada, você sabe. Os caras iam me amassar todo. E aí você surge de repente do nada e...

– Do nada coisa nenhuma, Leon. Eu estava seguindo você.

– Me seguindo? Mas por que?

– Bem, eu vi você ali, se aproximando do cinema, Eu estava na mesma calçada e aí apressei o passo para alcançar você. Eu precisava muito falar com você.

– Precisava, é? Pra que?

Pra te pedir desculpas, cara. Foi mal aquilo que eu fiz lá no campo. Pô, a gente é amigo há mais de cinco anos, eu jogava no Delfim há mais de três. E, de repente, por causa desse meu gênio ruim de animal, eu vou e agrido o coitado do Celso Teles, justo o cara que organizou tudo aquilo, que estava dando uma nova chance pro futebol de Amarante. E, como se fosse pouco, quando você me esculachou, eu quis bater em você. Puta mancada, cara! E ainda teve aquele lance de correr atrás do juiz que me expulsou. Aí é que eu ia fazer a maior besteira de todas, podia machucar o cara feio, acabar com um processo nas costas. Por sorte aquele enorme mulato me encaçapou e me mostrou que eu não sou o cara mais forte do mundo. O cara mais forte do mundo é ele. A aí ele me deu outra tremenda lição que eu não vou esquecer nunca mais.

– Qual lição?

– Pô, Leon, eu estava na pior, soco na boca do estômago, vomitando, o cara podia ter me quebrado todo, com aquela força de mula. Pois ele maneirou, me levou com uma chave de braço que doía pra caralho até o chuveiro, me segurou por uns minutos debaixo da água gelada, até eu me tocar da tremenda burrada que eu tinha feito. Aí ele esperou que eu me secasse, me vestisse e me mandou sumir. Essa foi a lição, cara: ele me mostrou como é que se faz quando se tem, além da força, uma cabeça com juízo. Pois você acaba de ver o resultado da lição. Eu fiz exatamente a mesma coisa agora com esses dois merdas que estavam enchendo o seu saco. Podia ter arrebentado os covardes, mas o tempo todo eu tinha na cabeça a lembrança do tal de Nicanor me segurando com a maior calma.

– Puxa, cara, e eu que pensei que você tinha virado meu inimigo, porque eu xinguei você e expulsei você do Delfim.

– Pois olhe só: Se eu não tivesse levado aquela coça do Nicanor, se ele não tivesse me ensinado a grande lição que ensinou, é possível que eu ficasse bravo com você, sim. Antes de aprender a minha lição, eu era assim mesmo. Eu saí ali da Academia com uma puta duma raiva, do Nicanor, do juiz, do Celso, de você. Mas, no caminho, todo cheio de dor das pancadas, eu fui começando a ver que o único filho da puta da história era só eu. Primeiro tive que reconhecer que o mulato livrou a minha cara, podia ter me arrebentado todo. Depois vi que o que eu estava sentindo era só orgulho ferido, mas que era merecido, que eu tinha passado vergonha por culpa minha mesmo. Aí pensei no juiz. Pô, o coitado deve ter perto de 50 anos, é magrinho e baixo, graças a Deus ainda é bom de corrida, senão a desgraça estava feita. E aí, quando o Nicanor me catasse, ele não ia ter todo o controle que teve, aí eu acho que ele me aleijava. Quando já estava chegando em casa, eu comecei a pensar no Celso Teles. Porra, que puta jogador que o cara é, rapaz! Eu tinha é que ficar admirando a categoria do cara, não querendo quebrar ele, porque ele fez o que tinha que fazer, me driblar para passar por mim e chegar no gol. Mas o cara não era só um superjogador, era o sujeito que nos proporcionou o torneio e o prêmio, o cara que estava fazendo o futebol de Amarante ter uma chance enfim. Foi nessa hora que eu comecei a sentir vergonha. Vergonha de mim! E, já em casa, eu lembrei de você, Leon, da nossa amizade, das outras vezes que eu engrossei e que você me pediu tanto que eu parasse com isso. E a vergonha aumentou muito cara, porque eu me dei conta da estupidez minha de querer agredir um amigo, um cara do meu próprio time. Porra, cara, a partir dali eu acho que  as fichas todas caíram. E eu achei que você estava certíssimo em me excluir do Delfim e não ser mais meu amigo.

– Puxa, cara, que surpresa...

– Bem, a partir daquela tarde mesmo eu comecei a pensar seriamente em procurar você e lhe pedir desculpas. Não pra querer voltar pro time, mas pela estupidez de querer bater em você. Eu ia fazer isso mais hoje, mais amanhã. Aí aconteceu aquela barbaridade do atentado envolvendo o seu pai e o da Larissa e eu fiquei achando que devia dar um tempo. Mas ontem eu fiquei sabendo do seu caso de amor com a mulher negra mais bacana do mundo, a que você entrevistou e chamou de capitã da seleção, eu lembro bem. Lembrei da sua família e aí eu fiquei cheio de admiração pela sua coragem, cara. E decidi que tinha que procurar você, não só pra pedir perdão, mas pra dizer que eu estou 100% do seu lado. E que, se alguém enchesse o seu saco ou o da sua namorada, era só me dizer, que eu ia me oferecer pra disciplinar o filho da puta.   

– Caramba, rapaz!

– E aí a gente deu sorte. Eu vi você andando a pé no centro da cidade, uma raridade total. Apressei o passo pra alcançar você e aí vi e ouvi os três idiotas começando a encher a sua paciência. E, quando o imbecil de camisa marrom derrubou você, aí eu não me importei em controlar o meu gênio ruim, aí era a hora certa de deixar a raiva sair. Saiu e deu no que deu.

– Graças a Deus, cara! Puxa, muito obrigado, Aurélio. Muito obrigado mesmo. Não sei como retribuir sua ajuda providencial nessa hora.

– Hum, quem sabe dizendo que ainda me aceita como amigo...

Leon apertou a mão do grandalhão e falou:

– Pô, mas claro, cara. Amigos pra valer. Vale um abraço?

Aurélio abraçou o amigo recuperado e comentou, feliz:

– Beleza, cara. E já sabe: se precisar de mim de novo, é só dar um grito, você tem o meu telefone, eu venho correndo. Pelo jeito, você vai precisar não só de mim, mas de uma brigada de cavalaria inteira, pra afastar o tanto de filhos da puta que vão querer encher você ou a moça.

– Pô, obrigado de novo, cara. Olha, duas coisas: Uma, eu vou casar com a Jennifer neste sábado, às 10 da manhã, lá no Imigrantes. Casar mesmo! E você já é meu convidado de honra. A outra coisa: você está de volta no Delfim. Pode aparecer pra treinar na semana que vem, eu reintegro você no time. Depois do que você me falou, acho que dá pra correr o risco. Aí é só falar com o treinador, pra ver quando ele deixa você jogar de verdade.

CONTINUA

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