segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

LUA  OCULTA – 59   
MILTON MACIEL 

59 - MARION SCHLIKMANN DIZ ADEUS
Fim do cap. 58:  "Por esse novo homem ela podia correr todos os riscos, todas as rejeições, afrontas, injúrias raciais, crimes de preconceito. Por esse ela podia estar apaixonada, porque esse, sim, merecia!"

Leon pegou um taxi para chegar em casa, tinha pressa. Entrou e foi direto até onde sua mãe estava com uma mangueira, regando um canteiro de flores no jardim lateral. Ela adorava esse tipo de atividade, uma das poucas que não deixava a cargo das empregadas e do jardineiro. O rapaz chegou e ficou quieto, calado, observando-a em silêncio. Foi Marion Schlikmann que falou primeiro: 

– Chegou a hora, não é?

– Chegou.

– E você vai fazer mesmo essa besteira?

– Vou casar com a Jennifer, se é essa a besteira.

– E que outra coisa poderia ser? Você se rebaixar a esse ponto, casar com uma negra! Você, o único herdeiro da tradição dos Schlikmann, os fundadores desta cidade.

– Mãe, eu quero que a tradição dos Schlikmann vá pro inferno, que é onde aquele bandido do seu marido mandou ela passear, depois de todas as barbaridades que ele praticou. Isso sim é se rebaixar. Eu hoje tenho é vergonha desse sobrenome nosso, não tenho o menor orgulho. Aqui em Amarante, Schlikmann passou a ser sinônimo de tarado, de criminoso, de bandido. Tudo o que eu sinto é vergonha do meu pai.

– Pois não devia, ele foi um excelente pai para você. Isso é ingratidão. Ele pode ter cometido os erros dele, mas nunca foi mau para você.

– Os “erros dele” sendo mandar assassinar a própria irmã e o sobrinho de um ano e meio, fora o cunhado e a empregada, só para roubar a herança dela. Matar uma criancinha, mãe! Isso são “os erros” dele... E, como se não chegasse, ainda mandou matar três outras pessoas. E, por último, tenta matar o Celso Teles. Isso sem falar a monstruosidade que ele cometeu contra a Lissinha aquele tempo todo, quando ela era só uma criança indefesa. Quando fiquei sabendo disso, naquela tarde na prefeitura, mãe, eu deixei de ter só vergonha de ser filho desse homem, passei a ter nojo, asco dele. É uma coisa horrível você ter nojo do seu próprio pai.

– Mas você tem obrigação de compreender os motivos dele, ele fez coisas erradas para proteger a família e o patrimônio dele. Se hoje você tem toda esta riqueza para administrar, deve tudo aos erros que ele cometeu. Você e eu fomos os grandes beneficiados por esses atos que você chama de “crimes” do seu pai. E que eu prefiro chamar de erros somente. Porque esses erros nos beneficiaram demais e você não pode deixar de reconhecer isso.

– Pois é uma pena, mãe, que ele tenha varrido do mapa toda a descendência da tia Helga, senão eu ia procurar essas pessoas e ia passar para elas a minha parte da herança, da roubalheira desse bandido. Hoje nós estamos em cima de um patrimônio que moralmente não é nosso, é resultado de roubo e assassinato. Pode ter vergonha maior que essa, para sujar um sobrenome que foi sempre limpo e orgulhoso de seus feitos?

– Não adianta mesmo, você é cabeçudo, nunca vai compreender. Vergonha do seu pai! E o que você vai fazer agora? Não é uma vergonha também casar com uma negra, sujar o sangue dos Schlikmann, tendo filhos mulatos?

– Eles podem não nascer mulatos. Podem nascer brancos. Assim como podem nascer completamente negros, como a mãe. Não, não há vergonha nenhuma nisso. Vergonha maior eu vou passar a sentir agora, pela primeira vez vou ter vergonha também de você, minha mãe: vergonha do seu racismo!

– Ah, vergonha de mim! Essa é boa. Você vai ter vergonha dos seus pais, mas não vai ter vergonha de ter uma mulher negra e filhos mulatos ou negros.

– Mas não vou mesmo! Deles eu vou ter o maior orgulho. Sabe, a Jenny é uma mulher ficha-limpa, descente, trabalhadeira, culta, escreve livros, foi professora universitária, é hoje uma campeã de vendas, ganha uma fortuna por mês na Teles Automóveis. Fora o fato de que é uma mulher lindíssima. É mesmo uma pessoa pra gente sentir orgulho de ter como esposa.

– Pode ser tudo isso, mas é uma negra!

– Uma negra honesta que vale mais que cem bandidos Adolfos.

– Muito bem, chega então deste assunto, não vamos chegar a nada. Não tem volta, não é? Você está decidido mesmo?

– Completamente.

– E já tem uma previsão de quando você quer cometer essa asneira?

– Bem, foi isso mesmo que eu vim lhe comunicar. Vamos casar neste sábado. Vai ser só no civil, dispensamos as igrejas.

– Já?! Neste sábado?! Deus do céu! Mas e os documentos, os proclamas, os prazos?

– Eu entrei com os papeis já faz tempo. Vai ser neste sábado. E vai ser no Clube dos Imigrantes.

– O que?! No Imigrantes?! Mas como eles vão permitir uma barbaridade dessas, o único clube de elite da cidade?

– Pra você ver que os tempos são outros, minha mãe. Os velhos brontossauros racistas, como você e seu marido, não mandam mais no clube. Aliás, vocês não têm qualquer importância hoje para ele, Adolfo Schlikmann é que seria barrado, como criminoso que é, se pudesse ousar entrar lá. Mas eu sou importante demais para o clube, mãe. Porque eu sou o diretor de futebol, o dono do time que é o orgulho do clube. E eu sou o melhor jogador do time, viu? O Imigrantes não precisa e tem vergonha do Schlikmann Adolfo, mas precisa e tem orgulho do Schlikmann Leon. E o Schlikmann Leon escolheu casar no Imigrantes para afrontar os outros racistas miseráveis como vocês, que, infelizmente, ainda há muitos deles por lá. Vou mandar convite para cada um deles, pessoalmente. Para todos os sócios, na verdade. Assim, anotando os que comparecerem, já sei onde estão os amigos e quem são os inimigos.

– Pois sim! Aquilo vai ficar às moscas, ninguém vai comparecer a esse vexame!

– Bem, fora o prefeito, o vice, o presidente da Câmara, um monte de políticos e empresários, a diretoria quase toda do Clube, todo o pessoal do Celso Teles que, sozinho, já enche meio salão. E vão meus jogadores do Delfim e todos os meninos dos outros dois times, o Bandeirantes e o Nacional. E, pode contar, a maioria dos sócios do Imigrantes.

– Isso eu duvido. E vocês vão ver o monte de desfeitas que vocês vão receber, mais do que merecidas.

Não tem problema, não. Pra esses a gente tem a Lei Afonso Arinos. E um delegado moderno, pronto a encanar, e de forma inafiançável, quem ofender a Jenny. Aliás, muito cuidado com o que a senhora disser em público a partir de hoje, minha mãe. Porque qualquer um pode denunciar a senhora por injúria racial ou por racismo, não precisa ser só a pessoa ofendida. Muito cuidado.

– Cruzes, a que ponto chegamos neste país!  Correr o risco de ser presa por chamar um negro de negro!

– Bom, como a senhora mesma disse, chega desse assunto todo, não vai dar em nada. Nem eu nem a senhora vamos mudar, não é mesmo? Então fica aí o comunicado. E o convite, feito de boca, depois vou mandar um pra senhora pelo correio.

– Pra que essa bobagem, se você sabe que eu não vou?

– Mesmo assim, eu vou mandar.

Pela primeira vez Marion baixou a guarda. Pareceu, de repente, estar muito, muito cansada. Largou a mangueira finalmente, puxou uma cadeira do corredor ao lado e sentou. Ficou um tempo em silêncio, como que escolhendo bem as palavras e finalmente falou:

– Eu não vou estar aqui para receber.

Os olhos verdes, idênticos aos de Leon, que um dia tinham animado o rosto de uma moça muito bonita e muito alegre, encheram-se de lagrimas pela primeira vez.

– Como assim, mãe? O que a senhora quer dizer com isso?

– Que eu vou embora de Amarante também, como fez a comadre Diva. De fato, você tem razão, o que o seu pai fez deixou a cidade toda contra nós, o ar daqui ficou irrespirável. Na única vez que eu ousei ir ao supermercado, ouvi coisas horrorosas, passei o maior vexame, nunca mais saí depois disso.

– Puxa, mãe, eu não tinha pensado nisso. A barra pesou pra senhora também.

– Muito. Muito mais do que eu posso aguentar. Eu vou fazer duas coisas. A primeira é que eu vou embora daqui, vou voltar para o seio da minha família em Luiz Alves. Lá os Schroeder têm a mesma boa fama que sempre tiveram, são gente de respeito, nunca se envolveram em falcatruas, roubalheiras ou crimes de morte. Ser um Schroeder em Luiz Alves é motivo de orgulho. Um orgulho que eu vi crescer quando virei uma Schlikmann. Mas que seu pai foi tratando de fazer desaparecer, ano após ano.

Mas a senhora estava defendendo ele minutos atrás com tanta veemência...

– Eu estava tentando salvar o pai perante o filho. Já vi que é impossível. Talvez eu estivesse tentando me enganar também. Mas isso também é impossível. Depois de ouvir tudo o que você falou, coisas horríveis vindas da boca do próprio filho dele, eu terminei de desabar. Não dá pra cobrir o sol com a peneira. Eu não só vou embora, como não quero mais carregar esse sobrenome. Vou deixar de ser uma Schlikmann, meu filho. Fica esse fardo só para você.

– Mas o que a senhora pretende fazer exatamente?

– Simples. Chego em Luiz Alves, onde meu irmão, seu tio Alfred, é o prefeito. Ele me arranja um bom advogado e eu entro com o pedido de divórcio. Vou deixar de ser uma Schlikmann, vou voltar a ser Marion Schroeder. E sumir de Amarante para sempre, deixar aqui as lembranças boas do passado e as lembranças horríveis dos últimos tempos. E vou deixar você também, meu filho. Vou deixar você viver sua vida como pretende, com a mulher que você escolheu. Vá em frente, seja feliz, se isso for possível com essa mulher, eu não vou mais me meter, nem falar mais nada.

– Puxa, mãe, eu estou chocado... Nem sei o que dizer...

– Pois não diga nada. Mas não se assuste, nada vai mudar na questão dos bens. Fica tudo sob a sua administração. Você pode fazer o que quiser, pode vender o que quiser, como sei que está querendo vender os automóveis. Para mim está bom. Já estou velha, 68 anos, não tenho muito tempo de vida pela frente; então pra mim as posses não têm mais importância, o que importa é ter paz. E isso eu não vou conseguir em Amarante nunca mais, por causa das vergonhas que seu pai nos fez passar. E, sendo muito sincera com você, não vou conseguir paz tendo uma nora negra.

– Está certo, mãe. Eu compreendo você. Paciência. Mas como vai ser agora?

– Já conversei muito ao telefone com seu tio Alfred e com minhas irmãs mais moças. Nós ainda temos cinco irmãs e irmãos vivos em Luiz Alves, contando comigo vamos ser seis. Eu vou morar com sua tia Hilda, que é viúva agora e não tem filhos. Ela ficou superfeliz com a ideia, fica muito deprimida de ficar sozinha naquele casarão enorme, onde todos nós nascemos e que ficou para ela e o marido na partilha. Eu vou para lá, se ela precisar de dinheiro eu ajudo. Se não der certo morar com ela, eu dou um jeito, posso até comprar algo pra mim lá, é muito mais barato do que aqui em Amarante.

– Claro, mãe, quando a senhora quiser, a gente dá um jeito e libera o dinheiro necessário para você.

– Eu sei, meu filho. Eu sei que você, diferentemente de seu pai, é e sempre foi uma pessoa honesta e correta. Por isso eu fiz questão de deixar tudo sob sua gestão. Nessa área a gente sempre vai se entender bem. De resto, você já sabe que eu não volto a Amarante nunca mais. Então, se você quiser ver sua mãe, é só dar uma chegadinha em Luiz Alves, não é longe demais afinal. Vai ser uma festa para os seus tios e primos, verem você de novo. Só quero pedir que você, quando for... Se quiser ir...

Sim, mãe, já entendi: que eu vá sozinho, não é?

Sim. Algum problema?

– Não, tudo bem. Fica combinado assim. E quando a senhora vai embora?

– Bem, eu ia na semana que vem, mas com a pressa desse seu casamento, eu vou antecipar minha ida para depois de amanhã.

– Entendo. Quer alguma ajuda? Quer que eu vá junto?

– Não, não precisa. Você nem tem mais carro aqui. Seu tio Alfred vai mandar o carro dele, com o motorista, para me pegar aqui. Eu vou ficar estes dois dias inteiros separando e empacotando coisas, só as coisas que me interessa levar e despachar. O resto fica aqui, você faz o que quiser. E, se você quiser levar minha opinião em consideração, faça uma coisa: venda esta casa, este verdadeiro museu da imigração dos Schlikmann. Com dois quarteirões no centro exato da cidade, ela vale muito, muito mesmo. Nós dois vamos precisar desse dinheiro para nos mantermos no futuro, basta que você saiba aplicá-lo bem. Venda e deixe tudo no seu nome. Sempre que eu precisar eu lhe peço alguma coisa. O que você acha da ideia?

– Puxa, mãe, maravilhosa! Era o que eu adoraria fazer, mas eu nunca ia ter coragem de lhe propor algo assim, pensei que a senhora tivesse apego a este imóvel, o símbolo maior da opulência passada dos Schlikmann.

– Pois agora você está sabendo o que eu penso, meu filho. Eu não quero mais ser uma Schlikmann, o símbolo maior dos Schlikmann para mim não vale mais nada. Venda isso, livre-se desse mausoléu de más memórias, garanta o seu futuro e o meu.

– Pois pode deixar que hoje mesmo eu começo a providenciar a venda, mãe. Depois de me aconselhar com o tio Rondelli e com o Celso, é claro.

– Faz muito bem, filho. Felizmente você, além de honesto, tem o juízo de recorrer a gente honesta e competente como Fúlvio Rondelli e esse paulista, que é tão bom empresário e que tantos benefícios já trouxe para esta cidade. Ainda bem que o louco do seu pai não conseguiu acabar com a vida dele.

– Então, tá, mãe. Vou pegando a reta, eu vim pra cá de táxi, estava com pressa. Mas agora eu vou andando, estou fazendo questão de caminhar, de não pegar nem carona. Quero dar valor a ter um carro e quero sentir o que as pessoas que não têm carro sentem todo dia. Nunca na vida eu precisei passar por isso. Agora quero uns dias assim, é importante pra mim. Vou andar de volta até a Teles Automóveis, vou perturbar tio Rondelli outra vez.

Marion ficou sentada vendo seu filho se afastar. Menino bom aquele! Não tinha maldade alguma, era um verdadeiro Schroeder, embora carregasse aquele sobrenome Schlikmann e sua pesada tradição nesta cidade. Estava se tornando um verdadeiro homem agora e ela fizera questão de dar-lhe o empurrão que faltava, deixando todos os bens nas mãos dele. Com tal prova de confiança cega, ela tinha certeza que ele ia fazer o possível e o impossível para aprender a fazer uma gestão muito mais competente do que a desastrosa gestão de seu pai. E ele já estava mostrando que soubera fazer a coisa certa. Quem melhor que Rondelli e o paulista Teles para o ajudarem a fazer tudo direito?

Não voltaria mais a Amarante. O Doutor Lobo lhe havia dito que Adolfo Schlikmann não tinha a menor chance agora. Ficaria em Amarante enquanto não fosse transferido para um manicômio judiciário. Embora já tivesse 75 anos, estava classificado como um homem com uma demência perigosa, que poderia matar ou mandar matar mais gente, se ficasse em liberdade. Ela o visitaria no futuro, quando estivesse no manicômio fora de Amarante. Mas, disse-lhe o Doutor Lobo, o psiquiatra de Joinville achara  em Adolfo Schlikmann também um  quadro de arteriosclerose e de mal de Alzheimer, ambos em muito rápida evolução. Fazia todo sentido isso!

Ela iria embora para sempre de Amarante, não tinha como aguentar os comentários e os olhares das pessoas em geral. Ficaria afastada do filho, mas isso era também inevitável, já que ele estava mesmo determinado a casar com aquela negra e, pior, ia fazê-lo ainda esta semana. Isso lhe dava somente dois dias para preparar sua viagem.

Dirigiu-se ao telefone fixo da sala e ligou para seu irmão prefeito. Acertou a chegada do motorista com o carro de Alfred para dali a dois dias, às 14 horas.

Efetivamente, menos de 48 horas depois daquele denso diálogo com seu filho Leon, Marion Schroeder saiu de Amarante para sempre, deixando para trás o filho, o marido, uma longa história de vida e o sobrenome Schlikmann, até há pouco ilustre e enobrecedor, doravante um fardo pesado demais para ela poder carregá-lo.

Leon esteve presente a sua despedida da casa e da cidade. Quase não falaram nada a não ser sobre bens, móveis, quadros, valores enfim. E sobre as perspectivas de venda da grande propriedade da família. Leon quis acompanhá-la no automóvel, até que ele chegou nos limites da cidade. Então trocaram um rápido abraço, compatível com uma relação que não primava pelo carinho, e Marion disse que o esperava em Luiz Alves, que aparecesse quando quisesse, não havia pressa. E, naturalmente, que fosse sempre sozinho.

Leon desceu do automóvel do Tio Alfred e ficou olhando o veículo sumir na estrada para Luiz Alves. Sentiu como que um fechar de cortinas melancólico. Estava só agora, por conta própria totalmente. Num furacão do destino havia perdido pai e mãe, cada um de uma forma bem distinta. A mãe estaria acessível em outra cidade, o pai ficara-lhe como uma pesada herança, num provável quadro de demência senil.

CONTINUA

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