MILTON MACIEL
59 - MARION SCHLIKMANN DIZ ADEUS
Fim do cap. 58: "Por esse novo homem ela podia correr todos os riscos, todas as rejeições, afrontas, injúrias raciais, crimes de preconceito. Por esse ela podia estar apaixonada, porque esse, sim, merecia!"
Leon pegou um taxi para chegar em casa, tinha
pressa. Entrou e foi direto até onde sua mãe estava com uma mangueira, regando
um canteiro de flores no jardim lateral. Ela adorava esse tipo de atividade,
uma das poucas que não deixava a cargo das empregadas e do jardineiro. O rapaz
chegou e ficou quieto, calado, observando-a em silêncio. Foi Marion Schlikmann
que falou primeiro:
– Chegou a hora, não é?
– Chegou.
– E você vai fazer mesmo essa besteira?
– Vou casar com a Jennifer, se é essa a
besteira.
– E que outra coisa poderia ser? Você se
rebaixar a esse ponto, casar com uma negra! Você, o único herdeiro da tradição
dos Schlikmann, os fundadores desta cidade.
– Mãe, eu quero que a tradição dos Schlikmann
vá pro inferno, que é onde aquele bandido do seu marido mandou ela passear,
depois de todas as barbaridades que ele praticou. Isso sim é se rebaixar. Eu
hoje tenho é vergonha desse sobrenome nosso, não tenho o menor orgulho. Aqui em
Amarante, Schlikmann passou a ser sinônimo de tarado, de criminoso, de bandido.
Tudo o que eu sinto é vergonha do meu pai.
– Pois não devia, ele foi um excelente pai para
você. Isso é ingratidão. Ele pode ter cometido os erros dele, mas nunca foi mau
para você.
– Os “erros dele” sendo mandar assassinar a
própria irmã e o sobrinho de um ano e meio, fora o cunhado e a empregada, só
para roubar a herança dela. Matar uma criancinha, mãe! Isso são “os erros”
dele... E, como se não chegasse, ainda mandou matar três outras pessoas. E, por
último, tenta matar o Celso Teles. Isso sem falar a monstruosidade que ele
cometeu contra a Lissinha aquele tempo todo, quando ela era só uma criança
indefesa. Quando fiquei sabendo disso, naquela tarde na prefeitura, mãe, eu
deixei de ter só vergonha de ser filho desse homem, passei a ter nojo, asco dele.
É uma coisa horrível você ter nojo do seu próprio pai.
– Mas você tem obrigação de compreender os
motivos dele, ele fez coisas erradas para proteger a família e o patrimônio
dele. Se hoje você tem toda esta riqueza para administrar, deve tudo aos erros
que ele cometeu. Você e eu fomos os grandes beneficiados por esses atos que
você chama de “crimes” do seu pai. E que eu prefiro chamar de erros somente.
Porque esses erros nos beneficiaram demais e você não pode deixar de reconhecer
isso.
– Pois é uma pena, mãe, que ele tenha varrido
do mapa toda a descendência da tia Helga, senão eu ia procurar essas pessoas e
ia passar para elas a minha parte da herança, da roubalheira desse bandido.
Hoje nós estamos em cima de um patrimônio que moralmente não é nosso, é
resultado de roubo e assassinato. Pode ter vergonha maior que essa, para sujar
um sobrenome que foi sempre limpo e orgulhoso de seus feitos?
– Não adianta mesmo, você é cabeçudo, nunca vai
compreender. Vergonha do seu pai! E o que você vai fazer agora? Não é uma
vergonha também casar com uma negra, sujar o sangue dos Schlikmann, tendo filhos
mulatos?
– Eles podem não nascer mulatos. Podem nascer
brancos. Assim como podem nascer completamente negros, como a mãe. Não, não há vergonha
nenhuma nisso. Vergonha maior eu vou passar a sentir agora, pela primeira vez
vou ter vergonha também de você, minha mãe: vergonha do seu racismo!
– Ah, vergonha de mim! Essa é boa. Você vai ter
vergonha dos seus pais, mas não vai ter vergonha de ter uma mulher negra e
filhos mulatos ou negros.
– Mas não vou mesmo! Deles eu vou ter o maior
orgulho. Sabe, a Jenny é uma mulher ficha-limpa, descente, trabalhadeira,
culta, escreve livros, foi professora universitária, é hoje uma campeã de
vendas, ganha uma fortuna por mês na Teles Automóveis. Fora o fato de que é uma
mulher lindíssima. É mesmo uma pessoa pra gente sentir orgulho de ter como
esposa.
– Pode ser tudo isso, mas é uma negra!
– Uma negra honesta que vale mais que cem
bandidos Adolfos.
– Muito bem, chega então deste assunto, não
vamos chegar a nada. Não tem volta, não é? Você está decidido mesmo?
– Completamente.
– E já tem uma previsão de quando você quer
cometer essa asneira?
– Bem, foi isso mesmo que eu vim lhe comunicar.
Vamos casar neste sábado. Vai ser só no civil, dispensamos as igrejas.
– Já?! Neste sábado?! Deus do céu! Mas e os
documentos, os proclamas, os prazos?
– Eu entrei com os papeis já faz tempo. Vai
ser neste sábado. E vai ser no Clube dos Imigrantes.
– O que?! No Imigrantes?! Mas como eles vão
permitir uma barbaridade dessas, o único clube de elite da cidade?
– Pra você ver que os tempos são outros, minha
mãe. Os velhos brontossauros racistas, como você e seu marido, não mandam mais
no clube. Aliás, vocês não têm qualquer importância hoje para ele, Adolfo
Schlikmann é que seria barrado, como criminoso que é, se pudesse ousar entrar
lá. Mas eu sou importante demais para o clube, mãe. Porque eu sou o diretor de
futebol, o dono do time que é o orgulho do clube. E eu sou o melhor jogador do
time, viu? O Imigrantes não precisa e tem vergonha do Schlikmann Adolfo, mas precisa e tem orgulho do Schlikmann Leon. E o Schlikmann Leon escolheu
casar no Imigrantes para afrontar os outros racistas miseráveis como vocês, que,
infelizmente, ainda há muitos deles por lá. Vou mandar convite para cada um
deles, pessoalmente. Para todos os sócios, na verdade. Assim, anotando os que
comparecerem, já sei onde estão os amigos e quem são os inimigos.
– Pois sim! Aquilo vai ficar às moscas, ninguém
vai comparecer a esse vexame!
– Bem, fora o prefeito, o vice, o presidente da
Câmara, um monte de políticos e empresários, a diretoria quase toda do Clube,
todo o pessoal do Celso Teles que, sozinho, já enche meio salão. E vão meus
jogadores do Delfim e todos os meninos dos outros dois times, o Bandeirantes e
o Nacional. E, pode contar, a maioria dos sócios do Imigrantes.
– Isso eu duvido. E vocês
vão ver o monte de desfeitas que vocês vão receber, mais do que merecidas.
– Não tem problema, não.
Pra esses a gente tem a Lei Afonso Arinos. E um delegado moderno, pronto a
encanar, e de forma inafiançável, quem ofender a Jenny. Aliás, muito cuidado
com o que a senhora disser em público a partir de hoje, minha mãe. Porque qualquer
um pode denunciar a senhora por injúria racial ou por racismo, não precisa ser
só a pessoa ofendida. Muito cuidado.
– Cruzes, a que ponto chegamos neste país! Correr o risco de ser presa por chamar um
negro de negro!
– Bom, como a senhora mesma disse, chega desse
assunto todo, não vai dar em nada. Nem eu nem a senhora vamos mudar, não é
mesmo? Então fica aí o comunicado. E o convite, feito de boca, depois vou
mandar um pra senhora pelo correio.
– Pra que essa bobagem, se você sabe que eu não
vou?
– Mesmo assim, eu vou mandar.
Pela primeira vez Marion baixou a guarda.
Pareceu, de repente, estar muito, muito cansada. Largou a mangueira finalmente,
puxou uma cadeira do corredor ao lado e sentou. Ficou um tempo em silêncio,
como que escolhendo bem as palavras e finalmente falou:
– Eu não vou estar aqui para receber.
Os olhos verdes, idênticos aos de Leon, que um
dia tinham animado o rosto de uma moça muito bonita e muito alegre, encheram-se
de lagrimas pela primeira vez.
– Como assim, mãe? O que a senhora quer dizer
com isso?
– Que eu vou embora de Amarante também, como
fez a comadre Diva. De fato, você tem razão, o que o seu pai fez deixou a
cidade toda contra nós, o ar daqui ficou irrespirável. Na única vez que eu
ousei ir ao supermercado, ouvi coisas horrorosas, passei o maior vexame, nunca
mais saí depois disso.
– Puxa, mãe, eu não tinha pensado nisso. A
barra pesou pra senhora também.
– Muito. Muito mais do que eu posso aguentar.
Eu vou fazer duas coisas. A primeira é que eu vou embora daqui, vou voltar para
o seio da minha família em Luiz Alves. Lá os Schroeder têm a mesma boa fama que
sempre tiveram, são gente de respeito, nunca se envolveram em falcatruas,
roubalheiras ou crimes de morte. Ser um Schroeder em Luiz Alves é motivo de
orgulho. Um orgulho que eu vi crescer quando virei uma Schlikmann. Mas que seu
pai foi tratando de fazer desaparecer, ano após ano.
– Mas a senhora estava
defendendo ele minutos atrás com tanta veemência...
– Eu estava tentando salvar o pai perante o
filho. Já vi que é impossível. Talvez eu estivesse tentando me enganar também.
Mas isso também é impossível. Depois de ouvir tudo o que você falou, coisas
horríveis vindas da boca do próprio filho dele, eu terminei de desabar. Não dá
pra cobrir o sol com a peneira. Eu não só vou embora, como não quero mais
carregar esse sobrenome. Vou deixar de ser uma Schlikmann, meu filho. Fica esse
fardo só para você.
– Mas o que a senhora pretende fazer
exatamente?
– Simples. Chego em Luiz Alves, onde meu irmão,
seu tio Alfred, é o prefeito. Ele me arranja um bom advogado e eu entro com o
pedido de divórcio. Vou deixar de ser uma Schlikmann, vou voltar a ser Marion
Schroeder. E sumir de Amarante para sempre, deixar aqui as lembranças boas do
passado e as lembranças horríveis dos últimos tempos. E vou deixar você também,
meu filho. Vou deixar você viver sua vida como pretende, com a mulher que você
escolheu. Vá em frente, seja feliz, se isso for possível com essa mulher, eu
não vou mais me meter, nem falar mais nada.
– Puxa, mãe, eu estou chocado... Nem sei o que
dizer...
– Pois não diga nada. Mas não se assuste, nada
vai mudar na questão dos bens. Fica tudo sob a sua administração. Você pode
fazer o que quiser, pode vender o que quiser, como sei que está querendo vender
os automóveis. Para mim está bom. Já estou velha, 68 anos, não tenho muito tempo de vida
pela frente; então pra mim as posses não têm mais importância, o que importa é
ter paz. E isso eu não vou conseguir em Amarante nunca mais, por causa das
vergonhas que seu pai nos fez passar. E, sendo muito sincera com você, não vou
conseguir paz tendo uma nora negra.
– Está certo, mãe. Eu compreendo você.
Paciência. Mas como vai ser agora?
– Já conversei muito ao telefone com seu tio Alfred
e com minhas irmãs mais moças. Nós ainda temos cinco irmãs e irmãos vivos em Luiz Alves, contando comigo vamos ser seis. Eu vou morar com sua tia Hilda, que
é viúva agora e não tem filhos. Ela ficou superfeliz com a ideia, fica muito
deprimida de ficar sozinha naquele casarão enorme, onde todos nós nascemos e
que ficou para ela e o marido na partilha. Eu vou para lá, se ela precisar de
dinheiro eu ajudo. Se não der certo morar com ela, eu dou um jeito, posso até
comprar algo pra mim lá, é muito mais barato do que aqui em Amarante.
– Claro, mãe, quando a senhora quiser, a gente
dá um jeito e libera o dinheiro necessário para você.
– Eu sei, meu filho. Eu sei que você,
diferentemente de seu pai, é e sempre foi uma pessoa honesta e correta. Por
isso eu fiz questão de deixar tudo sob sua gestão. Nessa área a gente sempre
vai se entender bem. De resto, você já sabe que eu não volto a Amarante nunca
mais. Então, se você quiser ver sua mãe, é só dar uma chegadinha em Luiz Alves,
não é longe demais afinal. Vai ser uma festa para os seus tios e primos, verem
você de novo. Só quero pedir que você, quando for... Se quiser ir...
– Sim, mãe, já entendi: que
eu vá sozinho, não é?
– Sim. Algum problema?
– Não, tudo bem. Fica combinado assim. E quando
a senhora vai embora?
– Bem, eu ia na semana que vem, mas com a
pressa desse seu casamento, eu vou antecipar minha ida para depois de amanhã.
– Entendo. Quer alguma ajuda? Quer que eu vá
junto?
– Não, não precisa. Você nem tem mais carro
aqui. Seu tio Alfred vai mandar o carro dele, com o motorista, para me pegar
aqui. Eu vou ficar estes dois dias inteiros separando e empacotando coisas, só
as coisas que me interessa levar e despachar. O resto fica aqui, você faz o que
quiser. E, se você quiser levar minha opinião em consideração, faça uma coisa:
venda esta casa, este verdadeiro museu da imigração dos Schlikmann. Com dois
quarteirões no centro exato da cidade, ela vale muito, muito mesmo. Nós dois
vamos precisar desse dinheiro para nos mantermos no futuro, basta que você
saiba aplicá-lo bem. Venda e deixe tudo no seu nome. Sempre que eu precisar eu
lhe peço alguma coisa. O que você acha da ideia?
– Puxa, mãe, maravilhosa! Era o que eu adoraria
fazer, mas eu nunca ia ter coragem de lhe propor algo assim, pensei que a
senhora tivesse apego a este imóvel, o símbolo maior da opulência passada dos
Schlikmann.
– Pois agora você está sabendo o que eu penso,
meu filho. Eu não quero mais ser uma Schlikmann, o símbolo maior dos Schlikmann
para mim não vale mais nada. Venda isso, livre-se desse mausoléu de más memórias,
garanta o seu futuro e o meu.
– Pois pode deixar que hoje mesmo eu começo a
providenciar a venda, mãe. Depois de me aconselhar com o tio Rondelli e com o
Celso, é claro.
– Faz muito bem, filho. Felizmente você, além
de honesto, tem o juízo de recorrer a gente honesta e competente como Fúlvio
Rondelli e esse paulista, que é tão bom empresário e que tantos benefícios já
trouxe para esta cidade. Ainda bem que o louco do seu pai não conseguiu acabar
com a vida dele.
– Então, tá, mãe. Vou pegando a reta, eu vim pra
cá de táxi, estava com pressa. Mas agora eu vou andando, estou fazendo questão de
caminhar, de não pegar nem carona. Quero dar valor a ter um carro e quero
sentir o que as pessoas que não têm carro sentem todo dia. Nunca na vida eu
precisei passar por isso. Agora quero uns dias assim, é importante pra mim. Vou
andar de volta até a Teles Automóveis, vou perturbar tio Rondelli outra vez.
Marion ficou sentada vendo seu filho se
afastar. Menino bom aquele! Não tinha maldade alguma, era um verdadeiro
Schroeder, embora carregasse aquele sobrenome Schlikmann e sua pesada tradição
nesta cidade. Estava se tornando um verdadeiro homem agora e ela fizera questão
de dar-lhe o empurrão que faltava, deixando todos os bens nas mãos dele. Com
tal prova de confiança cega, ela tinha certeza que ele ia fazer o possível e o
impossível para aprender a fazer uma gestão muito mais competente do que a
desastrosa gestão de seu pai. E ele já estava mostrando que soubera fazer a
coisa certa. Quem melhor que Rondelli e o paulista Teles para o ajudarem a
fazer tudo direito?
Não voltaria mais a Amarante. O Doutor Lobo lhe
havia dito que Adolfo Schlikmann não tinha a menor chance agora. Ficaria em
Amarante enquanto não fosse transferido para um manicômio judiciário. Embora já
tivesse 75 anos, estava classificado como um homem com uma demência perigosa,
que poderia matar ou mandar matar mais gente, se ficasse em liberdade. Ela o
visitaria no futuro, quando estivesse no manicômio fora de Amarante. Mas,
disse-lhe o Doutor Lobo, o psiquiatra de Joinville achara em Adolfo Schlikmann também um quadro de arteriosclerose e de mal de
Alzheimer, ambos em muito rápida evolução. Fazia todo sentido isso!
Ela iria embora para sempre de Amarante, não
tinha como aguentar os comentários e os olhares das pessoas em geral. Ficaria
afastada do filho, mas isso era também inevitável, já que ele estava mesmo
determinado a casar com aquela negra e, pior, ia fazê-lo ainda esta semana.
Isso lhe dava somente dois dias para preparar sua viagem.
Dirigiu-se ao telefone fixo da sala e ligou
para seu irmão prefeito. Acertou a chegada do motorista com o carro de Alfred
para dali a dois dias, às 14 horas.
Efetivamente, menos de 48 horas depois daquele
denso diálogo com seu filho Leon, Marion Schroeder saiu de Amarante para
sempre, deixando para trás o filho, o marido, uma longa história de vida e o
sobrenome Schlikmann, até há pouco ilustre e enobrecedor, doravante um fardo pesado
demais para ela poder carregá-lo.
Leon esteve presente a sua despedida da casa e
da cidade. Quase não falaram nada a não ser sobre bens, móveis, quadros,
valores enfim. E sobre as perspectivas de venda da grande propriedade da
família. Leon quis acompanhá-la no automóvel, até que ele chegou nos limites da
cidade. Então trocaram um rápido abraço, compatível com uma relação que não
primava pelo carinho, e Marion disse que o esperava em Luiz Alves, que
aparecesse quando quisesse, não havia pressa. E, naturalmente, que fosse sempre
sozinho.
CONTINUA
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