MILTON MACIEL
63 - De RIOS FLAMENCO
Fim do cap. 62: "O Juiz de Paz leu solenemente o novo nome completo da antes noiva, doravante esposa:
– Senhora Jennifer Oliveira Schlikmann!"
Leon
notou que Gládis e Carmen não estavam ali, nem assinando o livro, nem lhes
desejando felicidades. Onde estariam as espanholitas?
Foi
Celso Teles, ao abraçar Leon efusivamente, que solucionou o mistério, quando
ouviu a indagação do noivo:
– Olhe
para o palco, Leon. É ali que você vai ver as espanholas mais lindas e mais
incríveis deste país.
Como que
em sincronismo exato com isso, no momento em que Larissa apertava Leon forte em
seus braços, os inigualáveis faróis de azul água-marinha inundados das inevitáveis
lágrimas de felicidade, a grande cortina se abriu e o som de guitarras
espanholas explodiu num flamenco de andamento enérgico, apoiado por uma
perfeita percussão.
Sons de
castanholas inundaram o palco vindos de três diferentes pares de mãos: Ali
estava Gládis de Rios! E sua mãe Carmen de Rios. E sua avó Mercedes de Rios. Todas
com seus fantásticos vestidos longos e coloridos, com suas mantilhas, com suas flores
grandes no alto da cabeça, os cabelos negros em coques elaborados. Com todos os
seus músicos e bailarinos, o De Rios Flamenco fazia sua estreia triunfal na
cidade de Amarante!
As três
espanholas eram igualmente perfeitas em tudo, impressionantes, consumadas
artistas todas elas. Em seus movimentos ágeis, ritmados, síncronos, os dedos
nas castanholas, os pés no mais inacreditável sapateado, os braços como
serpentes envolventes, as belas faces iluminadas pelos sorrisos, as mantilhas
acompanhando cada detalhe da coreografia.
Havia
três guitarristas de altíssimo nível, todos espanhóis. E dois bailarinos,
também eles espanhóis, com suas roupas pretas de toureiro, faixas vermelhas nas
cinturas, chapéus pretos rasos completando o conjunto. Também eles dançavam e
sapateavam com extrema elegância e perfeição, evoluindo no palco em perfeito
sincronismo com a as três bailarinas.
O
público estava simplesmente pasmo. Nunca tinham visto nada assim, nem de longe
parecido, em Amarante. Balé espanhol para eles só aparecia em raros filmes na
TV e, muito mais raramente, no cinema. Mas eram de uma pobreza torpe, quando
comparados com a apoteose que se desenrolava aos olhos de todos ali, no grande
salão do Clube Imigrantes.
No
segundo número, um dos violonistas deixou a guitarra e passou a cantar uma
melodia cigana com uma voz e uma entonação totalmente incomuns, entusiasmando
ainda mais a plateia. Ele cantava e batia palmas simultaneamente, como se suas
mãos fossem os mais afinados instrumentos de percussão.
No
terceiro, houve um longo solo de Mercedes De Rios, com uma dança lenta, melodia
chorosa, desempenho comovente, a letra falando da solidão de um grande amor
perdido. Então o cantor deixou sua posição e assumiu de novo sua guitarra. E
outro violonista deixou seu instrumento e pulou no centro do palco, com um
salto acrobático impressionante. Então Mercedes deu um grito, ela e o bailarino
enlaçaram-se, o bailado e o sapateado aceleraram-se ao máximo, a nova letra
celebrava o retorno do homem amado, a retomada da relação interrompida. Era o
amor triunfante, a alegria de volta à cena.
Esse
terceiro episódio, sozinho, durou mais de quinze minutos. O público não se
conteve, interrompeu várias vezes com aplausos frenéticos, o que não
desconcentrava de forma alguma os artistas no palco, que seguiam seu desempenho
perfeito, como se nada ouvissem além da música dos instrumentos e de seus
próprios sons de vozes, castanholas e saltos.
O ato
seguinte foi interpretado por uma brilhante solista, com toda a trupe como
coadjuvante. As guitarras inundaram o palco com uma bela passagem do balé baseado na ópera Carmen, de
Bizet; e Carmen De Rios dançou a Habanera, numa versão para flamenco
extremamente sofisticada, longa e complexa. Novas explosões do público
celebraram a notável bailarina. Os homens sem respiração, vidrados no belo
corpo e na bela face onde uma boca extremamente voluptuosa os encantava. As
mulheres encantadas com a riqueza dos longos vestidos, das mantilhas, dos
corpos ágeis e esguios de Carmen e de todas as outras bailarinas.
O número
final, também ele muito longo, não foi menos apoteótico. A solista era Gládis
De Rios! Os guitarristas tocaram uma adaptação para violões perfeita de uma
parte do Capricho Espanhol de Rimsky-Korsakov.
Um balé espanhol de tirar o fôlego tomou conta do palco, todos os dezoito
membros da trupe em atividade atingindo seu máximo desempenho.
As
evoluções de Gládis De Rios eram marcadas por sua beleza impressionante: o
corpo alto, esguio, atlético, musculoso, as curvas, as ancas, os seios, os
glúteos saltando marcados pelo vestido vermelho, o rosto perfeito, os longos
cabelos negros cacheados, os braços dançando com vida própria, os olhos
expressivos como que falando, os hábeis pés marcando os compassos perfeitos de
um sapateado impressionante.
Os
homens ficaram sem fôlego: era beleza demais! Mas não era só beleza. O que
aquela jovem mulher exsudava era força!
Havia uma imensa energia que saía daquela figura em evolução, uma energia que
dizia a todos que aquela mulher era um autêntico centro de força.
Alguns não
puderam deixar de lembrar que aqueles pezinhos delicados, calçados com aqueles
volumosos calçados de sapateado, tinham bailado flamenco na cara e na cabeça de
Valdemar Silva. Sim, ali estava uma
estranha mistura de beleza, juventude, coragem e força. E agora viam que havia também
toda aquela graça impressionante, inigualável, da bailarina de flamenco. Uma
mulher sem igual, realmente!
A
apresentação do De Rios Flamenco acabou com uma apoteose final, com todas as
três grandes solistas e todos os músicos e bailarinos da trupe dançando e
cantando juntos. Um espetáculo absolutamente inesquecível para Amarante. No
outro dia e no final de semana, o diário local estampou fotos impressionantes, uma
delas um close sensacional de Gládis De Rios em um rodopio acrobático em pleno
ar. Os textos se desmanchavam em elogios e salientavam como era importante que
Amarante tivesse recebido esse espetáculo de gala do balé folclórico espanhol, graças ao que chamavam de “casamento do ano”.
Também
nas reportagens o casamento multirracial de Jennifer e Leon era exaltado como uma
demonstração de progresso e civilização da outrora rudemente racista sociedade
de Amarante.
Efetivamente,
nos dias que se seguiram, Leon e Jennifer praticamente não encontraram
manifestações de desapreço por parte dos racistas da cidade. É que havia corrido
pelos quatro cantos dela a história da surra que o grandalhão Aurélio tinha
aplicado nos homens que destrataram e agrediram Leon. E a ameaça que isso
deixava implícita para os que ousassem repetir a façanha dos fujões.
Havia
também as muitas vezes relembradas menções à Lei Afonso Arinos e à postura
francamente beligerante do Dr. Oliveira, delegado de Amarante, pronto a prender
de forma inafiançável quem cometesse crime de racismo.
Mas, a
bem da verdade, era preciso considerar que o que os possíveis ofensores mais
temiam era a terrível dupla de gigantes da Teles Automóveis e da Teles
Academia, Anselmo e Nicanor, cuja fama havia se esparramado aos quatro ventos,
depois das surras que eles deram nos capangas do finado Valdemar Silva. Ora, se
um irado Aurélio, amigo de Leon, já era um justiceiro indigesto, que dizer
daquele armário mulato que havia demolido o próprio Aurélio, de quem tinha
virado bom amigo agora, por incrível que isso pudesse parecer.
Quem
ousaria ofender Jennifer, uma das moças da equipe de Celso Teles, certamente
defendidas todas elas por aqueles sabujos gigantes? E não eram só os dois, a
equipe de segurança de Celso Teles era ainda maior, os bandidos de Silva que o
dissessem!
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