segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

LUA  OCULTA – 72   
MILTON MACIEL 

72 – MEGANEGÓCIO-1 EM AMARANTE 
Fim do cap. 71:  "Nesse ínterim, os dois adversários, por serem os malandros que eram, só podiam cair e se complicar mais e mais, o que se pode normalmente esperar de quem sempre apronta mais uma."

Encaminhadas, com sucesso, as futuras carreiras públicas dos ex-noivos eternos de Amarante, Celso Teles teve tempo e energia mental para se dedicar a duas grandes operações que vinha arquitetando em silêncio há muitos dias, via internet e telefone. Muitos telefonemas e teleconferências de negócios, envolvendo dois grandes escritórios imobiliários e dois grupos especializados de grande porte, todos de São Paulo, capital e interior.

Com base em todos os dados coletados e propostas prévias intercambiadas, mantidas sempre por Celso no maior sigilo, como era do seu feitio, o grande dia chegara. O representante do grupo empresarial que ele havia selecionado estava chegando nessa manhã em Amarante. A empresa já tinha estudado a fundo o negócio, aceitara as condições de Celso e agora mandava seu diretor com plenos poderes para assinar o contrato com os vendedores. Como estes eram só dois, mas um deles tinha procuração para representar plenipotenciariamente o outro, tudo o que o paulista precisou fazer foi convocar com urgência uma certa pessoa, por telefone:

– Leon Schlikmann? Bom dia. Como é, ainda obstinado em andar sempre a pé? Nada de carro?

– Oi, Celso. Que legal você me ligar. Tou com saudade, cara. Quando é que nós vamos bater uma bolinha, meu treinador? Bem, quanto ao carro, agora mesmo é que eu não preciso. Agora eu sou gigolô de uma gata que tem carro, um carrão legal. Casei com ela por interesse, justamente por causa disso. Então eu sigo a pé e, quando é inevitável ou bate preguiça, aí eu filo uma carona com a Sabá.

– Ah, tá bom! E você, pelo jeito está em casa, aí no apart-hotel.

– Estou, sim, estou estudando pacas, o Lucas é jogo duro, mandou vir uns livros de São Paulo e atochou em mim sem dó nem piedade. E me passou uma relação de um monte de sites da Internet. Uma montanha de coisa de administração pública e de história econômica e política do Brasil, um massacre. E sabe da maior? Cara, eu tô adorando! É fascinante. Quanto mais eu leio, mais vejo a besta que eu era em quase tudo. Pô, esse Lucas é um gênio, vá ser culto assim na puta que pariu! E ali, quietinho, naquela modéstia toda dele, como se fosse só um peão...

– É cara, meu pessoal é todo assim, tudo gente competente demais, todos eles, todas elas, pessoas que são o top, o máximo naquilo que fazem. Basta você considerar a Sabá. É outro geniozinho. E modesta também, apesar da beleza e do patrimônio que já alcançou com o trabalho dela. E de toda a cultura dela. Ela já lhe mostrou os escritos dela?

– Jamais, cara! Não deixa eu ver nada, tem senha no computador onde escreve, acho que são contos, não tenho certeza. Mas ela não deixa ninguém, ninguém mesmo ver o que escreve. Ela me disse que é porque ainda não tem o que mostrar, porque ainda não está bom o suficiente, ainda não está bem-acabado.

– Pois é, mas a Jenny já era assim lá em Ribeirão Preto. Quando a Carmen convidou a Jennifer para vir trabalhar com a gente, ela já tinha um monte de coisas escritas, era professora universitária, ensinava literatura de Portugal. Mas você precisava ver como era ciosa dos seus segredos. Ninguém, nem mesmo a espanholita-mãe, que foi e é o anjo da guarda da Jenny, jamais teve acesso aos textos dela. Não se surpreenda, portanto.

– Pois é, direito dela, não é? Mas ela me prometeu uma coisa: o dia em que ela achar que acabou tudo, então ela vai mostrar em primeira mão pra duas pessoas ao mesmo tempo: justamente pra Carmen e pra mim. E aí, se a gente gostar, ela nos autoriza a mostrar pra você e pro resto da turma.

– Garota de ouro! Você tirou a sorte grande, Leon.

– E eu não sei! Cara, tem noite alta que eu acordo, ativo a luzinha do celular, virada pra parede, só pra ficar olhando pra ela, dormindo linda, linda, ali do meu lado. Cara, só falta eu me beliscar pra saber que não estou sonhado. Poxa, Celso, eu sou um rabudo mesmo, puta sorte, sorte grande, como você disse; não fiz nada pra merecer essa mulher, cara.

– Ah, fez, sim, Leon. Enfrentou seus velhos, enfrentou Amarante inteira, entregou sua vida toda nas mãos dela, largou a galinhagem por causa dela, começou a trabalhar por casa dela, está andando a pé por causa dela. Cara, você fez muito bem a sua parte, está fazendo por merece a sua Rainha de Sabá. E pode ter certeza, ela sabe reconhecer tudo isso muito bem.

Leon não respondeu nada, o silêncio do lado de lá mostrou a Celso que a emoção o impedia de falar. Mudou para o assunto real de sua ligação:

– Pois bem, cara rabudo, agora é que você vai descobrir que nasceu mesmo com o dito cujo virado pra lua. Pode largar tudo que está fazendo e corra pra cá. Daqui a uma hora deve chegar um homem que você tem que conhecer, o cara vem de Piracicaba só pra isso. Posso mandar alguém pegar você de carro ai.

– Ops, legal. Deve ser coisa quente. Mas, não, pode deixar que eu vou andando. Aliás, vou trotando. Não, não é muita distância, em uma hora dá pra fazer folgado. Ah, até parece!... E você? Pois você não corre doze quilômetros todo santo dia, faça chuva ou faça sol? Caminhadinha moleza, já, já tô aí.

E Leon desligou, fechou o livro, calçou o tênis e vestiu o macacão mais leve. Aí já aproveitava e ficava por lá mesmo, depois da uma da tarde era a vez de seu turno de aprendiz com Tio Rondelli na oficina. As pessoas por quem passava na rua voltavam-se para ver o herdeiro dos Schlikmann andando a pé e vestido com macacão de mecânico. Caramba, que mudança!

Tio Rondelli e Lucas tinham estabelecido a rotina de Leon dessa maneira: segunda, quarta e sexta de manhã ele ficaria em casa, estudando as matérias de Lucas. Terças e quintas, de manhã também, ele viria à Teles apresentar os seus trabalhos a seu instrutor e receber avaliações e novas tarefas. Na parte da tarde, ele pertencia de corpo e alma a Tio Rondelli e seus motores e câmbios maravilhosos. Teoricamente sairia às seis, mas Tio Rondelli, graças a Deus, era caxias demais, saía as sete ou mais tarde.

Sabá largava as vendas às seis, fazia um tempo com as meninas e depois vinha esperar por Leon na oficina, onde só estariam ele e Tio Rondelli. Sabia que, fazendo assim, conseguiria levar seu homem para casa mais cedo. Se deixasse por ele, ficaria grudado no tio e nas máquinas sabe-se lá até que horas. Sabia que, ao ver sua rainha, ele começava a se derreter e os motores perdiam a parada. Seu casamento iria bem enquanto ela conseguisse vencer a competição com as máquinas. O dia em que seu Copinho começasse a achar mais encanto em engrenagens e pistões do que nas ancas sinuosas e nos lábios sensuais de sua Sabá, então o fim teria chegado. Competia a ela, com seu calor oriundo das savanas e desertos africanos, não se deixar superar por aquelas frias peças de metal. Jamais!

O Homem de São Paulo

Quando, 50 minutos depois de sair de casa, Leon Schlikmann entrou no escritório de Celso Teles, já havia um homem alto e um tanto robusto com ele. Estavam em pé, ao redor da grande mesa de reuniões e ambos vieram recebê-lo e apertar-lhe a mão.

Leon não perdeu a oportunidade, largou a mão de Celso e deu-lhe um abraço apertado e longo:

– Bom dia, Celso. Cheguei atrasado?

– Não, fui eu que cheguei adiantado, meu senhor.

– Celso, este é o Doutor Bernardo Hellis, diretor de novos investimentos da Souza Hellis Empreendimentos Imobiliários S.A., de Piracicaba. É uma das três maiores empreendedoras do mercado de shopping centers no Brasil. Doutor Hellis, este é o Leon Schlikmann, que o senhor veio conhecer pessoalmente.

– Hum...Legal. Muito prazer, doutor. Me conhecer pessoalmente, é? Puxa, será que é pra me contratar pra centroavante do Quinze de Novembro de Piracicaba?

– Não, Leon, o Doutor Hellis não tem nada a ver com futebol. O negócio dele é shopping centers pioneiros.

– Com assim... pioneiros?

– É o seguinte: nós construímos e administramos shopping centers em cidades de porte menor, entre 50 e 100 mil habitantes, assim com a sua Amarante. Cidades que ainda não têm um shopping, mas são prósperas, têm boas perspectivas de crescimento e estão em uma região de bom potencial de desenvolvimento também. Por isso os chamamos de pioneiros. Nós queremos ser os primeiros e criar o padrão que vai ser emulados pelos futuros concorrentes. Essa é a nossa política.

Que legal, Celso. Quer dizer que essa empresa vai estudar a construção de um shopping aqui em Amarante.

– Não vai, Leon. Já estudou. Faz duas semanas que a gente está discutindo isso. O Doutor Hellis está aqui para fechar negócio.

– Bárbaro, cara! Quer dizer que você vai investir em shopping com eles, Celso. Que demais!

– Não, eu não vou. VOCÊ é que vai, Leon!

– Eu?! Mas como eu?

– Pois é só se virar e estudar essa planta enorme que está ocupando quase toda a minha mesa de reuniões. Reconhece essa área? E aquela casa colonial?

– Cacete! É o Mausoléu Schlikmann! Não me diga que...

– O homem está aqui para comprar a propriedade, Leon. Um negócio muito bom para todo mundo: para você e sua mãe, para a empresa dele e para Amarante. Nós discutimos isso durante quase duas semanas, foi proposta pra lá, proposta pra cá, minuta de contrato que ia e voltava pela Internet, O Lucas e eu quebrando a cabeça em cima da coisa, até que chegamos a um denominador comum.

– Bárbaro! Mas você é demais, meu irmão que eu não tive! Quer dizer que eu devo fechar o negócio, é? Onde é que eu assino?

– Calma, rapaz. Você nem sabe qual é o preço ainda.

– Nem me interessa saber, se você sabe. Se você aceitou o negócio, só pode ser coisa boa. E se você acertou o preço com eles, só pode ser o melhor que essa joça pode atingir. Por mim está perfeito. É só dar a papelada que eu assino.

O Doutro Hellis comentou, admiradíssimo:

– Caramba, meu jovem, isso é que é confiança em alguém!

– Quando esse alguém se chama Celso Telles, doutor, o senhor pode assinar de olhos fechados, não precisa ler contrato nenhum. Eu estou pronto pra assinar.

– Calma, cara! Obrigado pela confiança, eu sei que mereço e vou sempre merecer. Mas faço questão que você leia tudo até o fim, antes de assinar. Aqui estão os papéis do contrato de compra e venda, estão em quatro vias. E o funcionáriodo tabelionato já está lá fora esperando para entrar, assim que tudo estiver sacramentado e assinado no contrato inicial.

– É esse calhamaço aqui, Doutor Hellis? Vou perguntar pro senhor, que é mais razoável que esse paulista turrão: onde é que se assina?

O diretor da grande empresa mostrou os lugares nas quatro vias e mostrou também onde Leon teria que rubricar as outras páginas.

Pois Leon não só não se deu ao trabalho de ler coisa alguma, como não se deu ao trabalho de sequer sentar. Em pé mesmo como estava, curvou seu corpo de quase um metro e noventa e assinou e rubricou todas as páginas com a velocidade de um centroavante escalando rumo ao gol.

Hellis e Celso ficaram estáticos, boquiabertos, vendo a atitude de Leon.

– Cara, você é louco! Você nem sabe por quanto nem de que jeito está vendendo a maior parte do seu patrimônio!

– Mas eu já disse, Celso: você sabe! Pra mim isso é tudo o que importa. Estou fazendo o melhor, o único negócio que eu posso fazer com aquela joça toda. Você sabe, minha mãe e eu queremos vender o Mausoléu. O resto é detalhe. Do resto tudo você cuidou. E o pior, Doutor Hellis, o senhor não vai acreditar, ele não aceitou receber comissão alguma pela intermediação do negócio. Depois ele diz que o louco sou eu!

– Gente, eu estou embasbacado! Chocado mesmo! Um assina sem ler, o outro faz uma negociação desse valor enorme e não quer receber comissão! Mas o que é que vocês são? Irmãos? Só pode ser, porque pai e filho não podem, as idades não permitem.

– Ele é meu irmão mais velho, Doutor. De outra família, de São Paulo, mas eu nomeei o Celso meu irmão. Sabe, eu sempre quis ter um irmão mais velho, nunca sonhei ter irmão ou irmã mais moços que eu; eu brincava que tinha um irmão mais velho imaginário e ele é que me protegia dos outros moleques e me ensinava tudo. Só que, por azar, sempre fui filho único. Mas quando encontrei esse cara eu resolvi: esse é o irmão que eu sonhava, essa cara vai ter que seu meu irmão, nem que seja na marra. E agora o senhor está vendo que ele é.

Celso adiantou-se a abraçou Leon carinhosamente:

– Menino, se você ainda não tivesse me ganhado como já ganhou, olhe... Pois hoje, depois dessa sua assinatura no escuro, eu ia no cartório e pedia para adotar você como meu irmão. A Lissinha vai adorar saber de tudo isso.

– Meu irmão, tudo, mas tudo mesmo o que aconteceu de bom na minha vida me veio através de você. A mudança de vida de Tio Rondelli, que eu adoro. Os campos de futebol de Amarante. O  torneio Hanashiro Ito. O time profissional de Amarante. O meu futuro no futebol. O meu futuro como aprendiz de Tio Rondelli, O meu futuro na... naquela coisa do futuro de Amarante. A felicidade de Lissinha. A chegada de Jenny mudando a minha vida da água pra vinho. E que vinho! A prisão do meu pai. A partida da minha mãe, o que deixou esses bens todos só no meu nome. E agora, a venda dessa tralha toda. É de cair a bunda de qualquer um, não é doutor?

– Caramba, tudo isso? Realmente, esse aí vem sendo muito mais do que um irmão, então. Mas tem uma coisa que eu acho que ouvi errado. Você falou, Leon, algo como a prisão do meu pai. Foi isso mesmo?

– Isso mesmo, o senhor ouviu bem. Pois o desgraçado do meu pai mandou matar o Celso. Por graça de Deus, o matador contratado foi e contou tudo pro Celso. Aí o delegado daqui, um batuta moderninho, armou toda uma arapuca e deram um flagra no velho e no outro mandante. Agora este outro está morto e o meu velho está em cana. E pirou de vez. Foi declarado incapaz. Minha mãe então passou a administração dos bens todos pra mim. Se o velho não estivesse em cana e doidão, a gente não tinha fechado este negócio, nem eu tinha assinado nada dessa tralha aí na mesa. Quer dizer, também isso foi graças ao Celso.

O Doutor Hellis passou um lenço na testa, afrouxou a gravata e abriu o paletó, liberando a oprimida barriga. E desabou na cadeira, levando os outros dois a seguir-lhe o gesto e sentarem também. O diretor comentou:

– Olhem, seu eu contar isso tudo lá em Piracicaba, o pessoal vai achar que eu estou mentindo. Ora, eu tenho mais de 30 anos de negócios, mas estou de queixo caído com vocês dois...

– É que o senhor só conheceu irmãos comuns, doutor. Aposto que é a primeira vez que o senhor conhece um irmão nomeado pelo outro.

Celso sorriu satisfeito:

– Esse é o meu irmãozinho caçula! E o senhor precisa ver esse carinha no meio da área, é o terror dos zagueiros, bate um bolão no ataque, cabeceia como ninguém.

– Ele fala isso de mim, mas o senhor precisa ver esse meu irmão no meio-campo, doutor. É um arraso, dá dez Leons numa perna só.

– Ah, quer dizer que os dois jogam futebol, é?

– E muito bem, modéstia à parte – grifou Leon, todo orgulhoso.

– Tá bem, mas agora vamos voltar ao negócio que o louco do meu irmão fechou sem saber nem como nem por quanto. Vamos levantar de novo, para ver a planta direito.

Os três se ergueram novamente e Celso e o Doutor Hellis passaram a mostrar todo os detalhes da transação para um Leon cada vez mais admirado e satisfeito.

Em resumo, o negócio fechado por Celso implicava na venda de todo o grande terreno no centro da cidade por um valor tão alto que Leon chegou a duvidar que tivesse ouvido certo. Nunca poderia imaginar que o Mausoléu e seu terreno pudessem chegar a um valor tão alto. A forma de pagamento era também muito diferente do convencional. Uma parte em dinheiro, uma parte em lojas no shopping (e que lojas Celso escolhera!), uma parte em apartamentos na torre residencial, uma parte em escritórios na torre comercial.

Assim Leon ficou sabendo que, após a demolição do casarão dos Schlikmann (o que ele mais adorou saber na hora foi que o mausoléu desapareceria totalmente!), seria construído um grande shopping center com três andares, mais estacionamentos no subsolo e em área descoberta frontal. E que o grande quadrilátero seria encimado por duas torres, uma de escritórios comerciais, outra de apartamentos residenciais. Todos com entradas e seguranças independentes da área do shopping.
Se Leon aceitasse o negócio – o que ele já havia feito de forma automática e irrefletida – o diretor lhe entregaria no ato o cheque administrativo do Banco Bradesco que trouxera de São Paulo, nominal a Leon Schlikmann. E que, na verdade, já estava na mão de Celso Teles. Quando este o entregou a Leon, ele custou a entender aquele número enorme. Precisou conferir no valor por extenso:

– Puta que pariu! Mas tudo isso é só a entrada? E isso é só 30% do valor total, o resto vem em imóveis? Cacete, aquele assassino burro do meu pai podia ter feito um negócio assim muitos anos atrás e passava a viver que nem um marajá, como ele sempre sonhou!

– Olhe, Leon, eu lhe garanto que não faria. Para arrancar da gente um negócio tão bom assim para o vendedor, só sendo uma fera como esse seu irmão Celso Teles. Ele negociou o tempo todo com a gente e com o nosso maior concorrente. Fez um leilão e bateu o martelo com a minha empresa porque a gente abriu mais as pernas pra ele do que a outra firma. Doeu, viu.

E caíram todos na gargalhada, a esculhambação chegou geral na linguagem. Doutor Hellis aproveitou a deixa e tirou o paletó.

– Caramba, não é calor, o seu ar condicionado está perfeito aqui, Celso. Mas ou eu paro de engordar, ou paro de usar paletó. Confesso que a ideia de deixar de usar paletó é bem mais atraente.

Então a alegria foi geral. Estavam todos contentíssimos. Agora era comemorar. Só que antes admitiram ali o enviado do tabelionato, que tomou todas as notas necessárias, fotografou os documentos pessoais com o celular e foi para o cartório para lavrar o registro do contrato de compra e venda e preparara as fichas de assinatura. Depois do almoço, eles passariam por lá, assinariam no livro e recolheriam as certidões.  

Naturalmente, foram comemorar na Churrascaria de sempre, a Estrela dos Pampas. A corte foi toda junto: Jenny, Larissa, Gládis, Carmen, Paula, Lucas, Rondelli. No caminho, pararam no Bradesco e Leon depositou aquele impressionante cheque em sua conta pessoal. O gerente e todos os funcionários que puderam se liberar por um minutinho vieram adorar aquele pedacinho de papel que faria qualquer um sonhar! Cheque executivo do banco, dinheiro em caixa na hora!

De repente Leon estava rico na prática, isto é, tinha um monte de dinheiro disponível, o que não acontecia antes, quando só podia dispor dos rendimentos dos aluguéis do galpão e das duas casas. Ele costumava dizer, gozador:

– Foi por isso que eu casei com essa aqui. Agora sou gigolô profissional. Ela tem casa e carro, eu não posso gastar com isso. Sou um sem carro e agora um sem teto.

Agora é que iam pegar no pé dele, quando o vissem andando a pé por Amarante. A notícia da venda e da dinheirama já teria corrido a cidade toda até o fim do dia. Agora, quando o vissem como andarilho, iam passar a chamá-lo de mão-de-vaca. Estava na hora de um fusca laranja pra ele também.

Ou na falta dele, qualquer coisa de mesmo valor, garantida pelo olho clínico revisor de Tio Rondelli. Mas ele é que não ia enterrar dinheiro em automóvel caro, novo. Se dependesse dele, seu mano Celso quebrava com seus flamantes novos e seminovos. Aprendera a lição bem aprendida. Para quem anda a pé, qualquer carrinho velho é uma Ferrari. Um Porsche, como ele tivera, parecia-lhe agora a coisa mais sem propósito deste mundo.

CONTINUA


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

LUA  OCULTA – 71   
MILTON MACIEL 

71 – A BOA NOVA 
Fim do cap. 70:  "Celso Teles, então, fez um sinal para que todos prestassem mais atenção e falou:"

– Muito bem, que vai dar certo eu afirmo e Gládis garante. Isso é suficiente. Agora vamos ao que interessa: Vocês vão começar a passar pelo Lucas, para ele dar a vocês as primeiras lições e as primeiras leituras sobre administração pública e política geral. Já o Leon, que vai sair na frente, vai ter que enfrentar as feras dentro do partido, caras que que são sujos e jogam sujo. Então os instrutores vão ser o Dr. Luzardo e o Marcelo, sobrinho dele e nosso prefeito. Você vai aprender todos os meandros, todas as curvas, todas as chicanas, todas as armadilhas. Você, sim, Leon, vai ter que aprender a conviver com políticos.

– Por que, exatamente?

– Porque você tem que ganhar uma convenção partidária. Essa vai ser a grande eleição para você. A que vem depois, aquela em que o povo vota, essa você já ganhou.

– Por que você afirma isso, amor?

– Lissinha, em primeiro lugar porque o partido do governo, graças ao trabalho do Doutor Luzardo e do Marcelo, tem a preferência fácil do eleitorado. E só corre risco de perder se o candidato deles for um daqueles dois ordinários, que o povo sabe que não valem nada. Por isso o desespero do Doutor Luzardo.

– E em segundo lugar?

– Em segundo lugar, meu bem, porque a marqueteira da campanha dele está aqui bem na minha frente, uma espanholita que é uma fera imbatível no marketing.

– PQP, chefe! É covardia! Já ganhou, pode encomendar o diploma de posse. Com Carmen De Rios no marketing, Leon Schlikmann pode ser eleito até papa no Vaticano. E sem precisar sair de Amarante.

Carmen deu um rápido beijo na face risonha de Paula:

– Paulinha, sua exagerada!...

– E tem mais ainda, amor?

– Tem, sim, querida. Em terceiro lugar, porque Leon ganhou as boas graças do povão, é gente boa, tem a pureza que vocês mencionaram e ainda por cima é o ai-jesus da mulherada.

– Verdade, chefe. Em candidato bonito, milhares e milhares de mulheres votam com a buceta.

– Paulinha! Isso são modos de falar, menina?

– Ora, são modos de falar a verdade, Carmen! Veja o caso daquele Color de Mello, daquele Aécio Neves, uns Zé-bonitinhos que ganhavam votos da mulherada só por causa do tipão. Isso não é verdade, gente?

Lucas concordou:

– Verdade certinha e transparente, Paula. Não se pode negar. Ponto para Leon Schlikmann, portanto.

Paula fechou magistralmente, dentro do seu melhor estilo:

– Ponto para nosso Zé-bonitinho de Amarante, recebendo os votos das periquitas em fogo desta cidade.

– Mas a coisa não para só nisso, pessoal – foi a vez de Gládis reforçar – Tem muito mais ainda. Porque, além do apoio do cara que o povo de Amarante adoraria ver na prefeitura, o atual ídolo deles, nosso jefito Celso Teles, vai ter ainda a participação de uma outra pessoa que o povo desta cidade simplesmente adora de paixão desde criancinha: sua eterna Miss Amarante.

– Eu, Gládis? Que participação? - quis saber a eterna Miss.

– Sim, meu amor – quem respondeu foi Celso – Nós temos a ideia de que você seja uma importante peça no governo de Leon Schlikmann e vamos anunciar isso durante a campanha. Queremos que você seja uma secretária municipal, mais exatamente de Agricultura e Abastecimento.

– Deus do céu! Minha nossa! Que incrível! Eu secretária disso tudo?...

– E essa indicação nem foi do Celso ou minha, Fofa, foi da Maria Amália! Ela deixou a caminha pronta para você deitar nos louros, sua danadinha.

– Maria Amália? Mas ela acha que eu sou capaz disso tudo, então?

Celso sorriu-lhe a resposta:

– Com certeza, senhora dona agrônoma que já cultiva os campos do meu coração. Agrônoma e secretária municipal de Agricultura e Abastecimento.

Larissa sentiu as pernas tremerem, detectou o perigo, podia apagar de novo:

– Ai gente, é demais pra mim... Me abraça forte, amor... Forte, forte. Assim. Ai... Agora tá  melhor... Ai, é demais, é muita coisa boa junta. Eu podendo trabalhar  por todas as pessoas desta cidade... Que perspectiva maravilhosa, dá uma vontade de viver, de se matar no estudo e no trabalho, de começar agora mesmo!

Leon exultou:

– Legal, Lissinha, a gente vai poder trabalhar juntos. E você já vai aprendendo tudo na prática, quando chegar a sua vez, você está pronta. Grande ideia, Celso... Quer dizer, grande ideia, Maria Amália Lasson!

 Celso retomou o comando:

– Muito bem, turma. Estamos entendidos então? Passou o susto, Lissinha? Leon?

O sim foi geral. O entusiasmo era evidente, o mais exultante de todos era Fúlvio Rondelli, que mal cabia em si de tanto contentamento.

Ah, sua anjinha loira, sua menininha sofrida e frágil, agora a caminho de ser uma mulher casada, uma mãe, uma agrônoma, uma secretária de Agricultura, uma futura prefeita! Uma fortaleza, uma líder, um modelo de ser humano. Ah, como ele estivera certo em sempre acreditar nela, em ter sempre certeza que ela haveria de desabrochar do meio de seus medos para se tornar uma pessoa notável e fantástica, no dia em que começasse a ser ela mesma.

Subitamente o italiano, alto e espigado, ele mesmo parecendo uma fortaleza, fraquejou. Levou as duas mãos aos olhos, cobrindo-os, e não segurou o choro. Larissa imediatamente abraçou-se com ele e beijou com carinho e gratidão. Ah, como era bom ser amada e cuidada assim, a vida inteira, por um homem maravilhoso como padrinho Fúlvio!

A comoção foi geral, aquele era mesmo um momento mágico, nada nem de longe parecido havia acontecido até então no recinto da Teles Automóveis. Para Gládis, com sua imensa antena estendida para o infinito, era como se uma força superior descesse sobre eles e os envolvesse a todos, uma força que tinha a ver com a preservação coletiva de Amarante. Também ela estava radiante de felicidade. Sua Fofinha ia ser aquilo tudo que ela pressentira e que Maria Amália confirmara a partir de seus estudos.

Um enorme alivio tomou conta de Celso. Não, ele não podia ser prefeito de Amarante. Mas conseguira arranjar um substituto à altura para o cargo. O futuro de Amarante estava garantido. Leon Schlikmann e Larissa Silva, juntos e em sequência, garantiriam esse futuro. Amarante seria salva e progrediria ainda mais, graças às suas duas crianças de ouro, seus anjos loiros preservados e cobertos do ouro de suas heranças, para que pudessem ser preparados para se tornarem gestores probos e competentes dos recursos do seu coletivo.

A Boa Nova!

Celso pensou que estava na hora de dar a boa nova a quem mais ansiava por ela. Tirou o celular do bolso e ligou para o doutor Luzardo Assunção, deixando todos os presentes antenados na conversa que anteviam pelo lado de Celso Teles:

– Alô, doutor? Celso Teles. Estou com a sua resposta.

– Pelo amor de Deus, me diga que mudou de ideia, homem! Me diga que aceitou ser o nosso candidato!

– Pois eu lhe garanto que tenho uma grande surpresa para o senhor. Só que vai ter que vir aqui para a Teles. E agora mesmo. Se não estiver cortando ou costurando nenhuma barriga, por favor, pare qualquer coisa que estiver fazendo e venha para cá imediatamente.

– Urra! Eu iria nem que tivesse que levar mesa de cirurgia e paciente juntos. Já estou correndo para aí. Ahnn... Posso passar na prefeitura e pegar meu sobrinho? Arranco ele na hora do que estiver fazendo, pode ter certeza que ele está inda mais ansioso por sua resposta do que eu.

Quinze minutos depois, quando cafezinho e suco corriam soltos na sala de reuniões, os dois políticos entraram afoitos e aflitos pela novidade. Na meia hora que se seguiu, Celso e Gládis, secundados por Carmen, Rondelli e as outras pessoas presentes, explicaram o grande plano em todos os seus pormenores. Por fim o médico falou:

– Você tem razão, Celso. Não foi o que eu queria, o que a gente queria. Foi ainda melhor! A gente queria um candidato limpo e imbatível para esta eleição. Mas vocês nos entregaram mais 16 anos do futuro de Amarante de bandeja.

O prefeito falou, então, muito animado:

– E nos surpreenderam com essas duas criaturas fora do comum, que a gente não tinha condições de ver como o grande potencial que são. Mas é certo, eles são o futuro, eles garantem o hoje e o amanhã.

–  E o mais batuta – afirmou o Doutor Luzardo – é que nós vamos ter você, Celso Teles, o tempo inteiro com a gente, como o regente dessa orquestra incrível que vocês montaram. Que coisa extraordinária! Olhem, vocês nos transportaram do inferno direto para o céu. Quero ver aqueles dois pilantras se imporem agora na convenção contra Celso Teles, contra Leon Schlikmann e contra Miss Amarante em pessoa! Candidatos ricos, que não precisam roubar e que nunca roubariam por que são honestos e ficha-limpa. E contra toda essa baita estrutura que vocês têm aqui, com marketing e tudo. E, claro, sem esquecer a nossa bruxinha de plantão, para nos corrigir quando a gente perder o rumo.

Gládis meneou graciosamente a cabeça de longos cachos negros em agradecimento. O prefeito, que nunca tinha visto a espanholita-filha tão de perto, estava sem respiração. Que morena absurdamente bonita! E vistosa, alta, imponente, soberana. E, ele lembrava muito bem, instrutora de autodefesa, a lutadora que tinha surrado Valdemar Silva e treinara Miss Amarante, a criaturinha mais frágil e delicada deste mundo, para surrar Adolfo Schlikmann. E, como se tudo isso ainda fosse pouco,  que bailarina! Babara por ela, assistindo sua apresentação no De Rios Flamenco, na cerimônia de casamento de Leon com sua bela Jennifer.  Essa Gládis era mesmo uma mulher completa! Se aquela gata concorresse em qualquer eleição, por qualquer partido, estaria eleita na hora para qualquer cargo!

Quem sabe um dia poderiam convencê-la a filiar-se ao partido e concorrer a alguma vaga do executivo ou do legislativo por ele. Ah, os tempos agora eram outros, cada vez mais as mulheres viriam ocupar um espaço que pertencia a elas por direito e competência, mas que lhes foi sempre sonegado pelo velho machismo das oligarquias da velha política. 

Marcelo tinha duas filhas, de 9 e 11 anos. E ali, em frente a seus olhos embevecidos, estava a criatura que ele queria fosse o único e grande modelo de vida para suas meninas. Seu tio lhe havia falado sobre algo que iria ser implantado na Academia de Celso Teles, um curso de autodefesa para mulheres e meninas. Dirigiu-se a Gládis e perguntou–lhe diretamente sobre isso. Ela respondeu:

– Vamos ter, sim, senhor prefeito. Começamos no mês que vem a formar a primeira turma. É só para mulheres, é claro. Isso lhe interessa?

– Interessa demais, como pai de duas meninas de 11 e 9 anos. Ainda teria vagas para elas?

– Certamente que sim. Ainda não começamos a divulgar nada, elas ficam com nossas primeiras duas vagas, portanto. Mas... a mãe delas concordaria? Isso é fundamental para nós e para as próprias meninas.

– Sem dúvida, nós já conversamos sobre isso. Aliás, ela me disse que, se não for inconveniente, também ela gostaria de aprender, de participar do curso como aluna. Isso é possível?

– Com toda certeza, prefeito. Tome, pegue aqui o meu cartão, peça para sua esposa ligar para mim aqui na Teles e a gente acerta os ponteiros.

Marcelo Assunção agradeceu muito a Gládis e se afastou prudentemente dela. Sim, quem tinha que ficar em contato com essa espanhola, esse poço sem fundo de sensualidade e atração, era sua mulher. Ele trataria de se manter o mais distante possível. 

Aquela mulher era a garantia do fim de qualquer casamento! Nem precisaria fazer nada, aceitar sequer um marido alheio. Esse é que ia começar a ficar embeiçado, fascinado e teria cada vez mais dificuldade de manter o interesse em sua esposa. Imagine só para ele, com 14 anos de casado! Gládis De Rios era um perigo ambulante.

Para buscar um antídoto, colocou os óculos escuros e passou a olhar disfarçadamente por trás deles, algumas vezes, para Larissa Silva, a belíssima Miss Amarante. Sim, aquela loirinha era ainda mais bonita que a morena, por mais incrível que isso pudesse parecer. Mas não tinha o mesmo potencial de perigo, não era uma destruidora potencial de casamentos, uma devoradora potencial de maridos enlouquecidos. Era só... bonita demais. Só isso...

No fim da grande reunião, bem à brasileira, foram todos para Churrascaria Estrela dos Pampas, onde comeram e beberam do melhor e, seguindo as ordens de Carmen De Rios, a marqueteira da futura campanha, ninguém podia falar absolutamente nada sobre candidaturas, ao menos em voz alta. 

O Doutor Luzardo e o prefeito Marcelo concordaram imediatamente com isso. Sigilo agora era tudo, até que todas as providencias tivessem sido tomadas e eles pudessem partir como um rolo compressor para cima dos dois pilantras, que já se sentiam com domínio total sobre a futura convenção partidária.
Não havia razão alguma para açodamentos, tinham quase 18 meses de preparação pela frente. Nesse tempo, Celso e sua equipe dariam formação completa ao par de loirinhos, os herdeiros riquinhos de Amarante. Eles progrediriam e subiriam. Nesse ínterim, os dois adversários, por serem os malandros que eram, só podiam cair e se complicar mais e mais, o que se pode normalmente esperar de quem sempre apronta mais uma.

CONTINUA

sábado, 20 de fevereiro de 2016

LUA  OCULTA – 70   
MILTON MACIEL 

70 – A PESSOA ESCOLHIDA
Fim do cap. 68:  "Ora, carcamano – respondeu Celso, rindo – um outro mecânico, um torneiro, chegou a presidente neste país. Não é esse o problema, portanto. E você é brasileiro naturalizado, logo..." 

– Mas eu sou mecânico! Mecânico, cáspite! E eu digo isso porque eu gosto de ser mecânico, toda a minha vida eu fui mecânico, só mecânico, desde molequinho. E eu não quero ser outra coisa. Muito menos ser prefeito. Nem vereador. Nem porcaria nenhuma que não seja mecânico. Eu vivo do cheiro da graxa, do carinho das engrenagens, da doçura dos pistões nos cilindros, eu...

Celso interrompeu-o, rindo todo contente:

– Um poeta! Eu já disse, mais de uma vez, que você é um poeta, italiano: Carinho das engrenagens, doçura dos pistões... Demais!

– Poeta só se for de motor e de câmbio, doutor. Mas eu, com toda certeza, posso só ser o pior prefeito que Amarante jamais terá em toda a sua história. Estou fora, me desculpem!

Foi a deixa para Gládis entrar em cena:

– Calma, Rondelli. Relaxe. Tranquilo. Não foi você a pessoa escolhida.

Rondelli arregalou os olhos, soltou um sonoro “Ufa, graças a Deus!” e olhou para Celso Teles, no que foi secundado por todos os presentes. Então Celso disse:

– Isso mesmo, Rondelli. Eu não ia cometer essa maldade com um grande amigo. Além do que, é claro, não posso ficar sem o meu mecânico chefe, eu sou egoísta pra burro, não cedo você pra Amarante, mesmo sabendo que você é o salvador da pátria.

Todos caíram na gargalhada, enquanto Fúlvio Rondelli finalmente sentava – ou melhor, desabava sobre a cadeira. Celso Teles, rindo e gozando-o, era sinal seguro que daquele fantasma ele estava livre. Então, mais aliviado, raciocinou e comentou:

– Mas isso quer dizer que, eliminado o italiano aqui, só sobram estes dois meninos, Larissa e Leon. Faz sentido, doutor?

Foi Gládis De Rios quem respondeu:

– Todo sentido do mundo, Fúlvio. Olhe bem para essas duas cabeças loirinhas e você está vendo o futuro de Amarante.

– NÓS?! – estranhou, incrédula, Larissa, arregalando as duas joias de água-marinha desmesuradamente.

– NÓS? – falou Leon, mais incrédulo ainda – Isso é brincadeira, pegadinha na certa. Imaginem eu, de playboyzinho inútil a prefeito em dois anos. Que desastre não ia ser! Gente, eu não sei fazer NADA! Rigorosamente nada, nunca fiz.

– E nem eu – reforçou Larissa – Quer dizer, agora eu aprendi a vender carros, é a primeira coisa que eu faço na vida. Mas de vendedora de automóvel a prefeita... Claro que é gozação deles pra cima de nós, Leon.

Mas Gládis, a infalível Gládis, sorria para eles e fazia que não com o dedo, o que os deixou desconcertados. O que significava tudo aquilo, então?

Celso organizou as coisas:

–  Bem, aqui ninguém está brincando, não. Não dá para brincar com o futuro da nossa cidade, a coisa é séria. Então, número um: não é brincadeira. Número dois: só tem Rondelli, Leon e Larissa. Número três: não é Rondelli. Número quatro: só sobram Leon e Larissa. Número cinco...

E deixou, divertido, a coisa no ar. Obviamente era o convite para que Gládis assumisse. Agora a coisa ficava melhor com uma pitonisa. E ela falou:

– Número cinco: são Leon e Larissa juntos! Os dois. Mas não simultaneamente, tipo prefeito e vice-prefeito. Quer dizer, não simultaneamente, mas sucessivamente.

Paula interrompeu:

– Peraí, peraí, chefia! Agora fundiu. O que quer dizer isso?

Gládis respondeu:

– Sucessivo quer dizer um depois do outro, esqueceu mocinha?

– Claro que não, não é! Mas expliquem logo esse mistério, está me dando nos nervos.

– Nossa, Paula, se está dando nos seus, imagine nos da gente. Eu não estou entendendo é nada.

– E eu menos ainda, Lissinha – reforçou Leon.

Carmen entrou na conversa pela primeira vez:

– Olhem, eu acho que sei onde vocês estão querendo chegar. E, se for isso, caramba, é a coisa mais maluca que eu já vi nesta cidade. Só que, se parte de Celso Teles e tem o aval da nossa bruxinha, então a coisa só pode dar certo. É uma coisa de preparar para o futuro, não é Celso? Foi por isso que você falou que o tempo, um ano e meio, dois anos até a posse, conta a favor nosso, não é?

– Isso mesmo, espanholita-mãe. Você já entendeu tudo.

– Mas a tapada aqui ainda está por fora.

Foi Lucas que respondeu para Paula:

–  Dois anos pode ser um tempo bem razoável para formar um administrador, desde que, é claro, esteja em mãos de uma grande equipe de formadores e seja... bem, seja...

Celso ajudou:

– Honesto! Pode dizer, Lucas, é isso mesmo. É por isso que esses dois estão na jogada: por causa da matéria prima que eles representam.

Ele fez sinal a Gládis, que levantou novamente e conduziu a conversa:

– Deixem que eu abuse um pouco da lógica com vocês. Agora é papo além da lógica, envolve futuro. Vocês já conhecem os nossos herdeiros riquinhos de Amarante, que nasceram em berço de ouro, que nunca fizeram nada, que nasceram as criaturas mais bonitas desta cidade, que tiveram como pais homens horrorosos, os quais queriam, por que queriam, que os dois casassem na marra. E nunca deixaram nenhum deles trabalhar. Mas se há uma coisa que eu posso dizer deles, de ambos, é que eles são do Bem, da Grande Luz.

A voz de locutora de rádio aparteou:

– Ah, isso eles são mesmo, Gládis. Meu copinho é um ingênuo sem maldade, nem parece que cresceu sob a influência daquele pai dele, daquela família toda cheia de preconceito de tudo que é tipo. A prova maior? Euzinha aqui: simplesmente esposa dele! E a Fofinha, então?  É a nossa criança, o nosso anjo, a nossa alma pura.

– Limpa, honesta, transparente, sincera, generosa...Sim, uma alma pura, Jenny – completouCarmen.

– Então, gente - continuou Gládis - o que isso tudo quer dizer para vocês? Que essas duas criaturas foram mantidas como que suspensas, fora da realidade completa, preservadas, eu diria. Preservadas, para que fossem entregues a nós no momento certo: Larissa entregue a Celso, a mim, a todas nós. Leon entregue a Jennifer, a Celso, a Rondelli. Mas preservados, entendem?

–  Sim, Gládis – interveio Paula –  faz sentido agora. Faz sentido. Matéria prima de primeiríssima. Mármore de Carrara, coisa fina. Onde se pode talhar as mais belas esculturas.

Caspite, vocês têm razão! Essas crianças mantiveram uma pureza de caráter que não se encontra mais por aí. É como se eles estivessem programados para começar só agora. Sim, é isso, porca miséria! Eu estive com eles quase desde o começo. Eu acompanhei os dois, eu amparei os dois, eu vi os dois crescerem. E então vocês chegaram. E revolucionaram tudo aqui nesta cidade. E revolucionaram a minha vida. E, agora, a vida destes meninos aqui.

– É isso, Rondelli. Eles são, como a Paulinha disse, blocos de mármore de Carrara. Preservados... – disse Carmen.

– Pois então agora todos podem compreender o que vem a seguir. Prestem atenção. É como se houvesse um plano muito maior do que todos nós, um plano para esta cidade toda. Um plano para preservar Amarante da desagregação, usando suas crianças-prodígio, as crianças que a população aprendeu a amar, que o povo viu que não saíram aos pais bandidos, mas que, ao contrário, são exemplos de caráter e de luta contra a opressão desses pais.

– Pois vejam – seguiu Jenny – Leon sai de uma família alemã ariana pura para casar com uma negra. Isso o coloca claramente do...

– Do lado do povo! – completou Lucas.

– Pois é por aí mesmo, camarada – disse Celso. Esse aí caiu em desgraça com os racistas, mas aterrissou nos braços do povão, pode ter certeza.

– Como eu já ouvi algumas vezes: “O Schlikmann sangue bom”. “O carinha mais legal”. “Um senhor centroavante”.

Leon perguntou, surpreso:

– Você ouviu essas coisas, é, Lissinha?

– Isso e muito mais, Leonzinho. Gente, se o Leonzinho for o nosso candidato, metade da mulherada vota nele, porque deve ser o número de mulheres que ele levou pra cama nesta cidade.

– Ah, tá, não exagera, Lissinha! Eu não tava com essa bola toda. Oi, Jenny, não vai atrás da Lissinha, é exagero.

– Exagero, nada, seu galinhão, você passou o rodo por atacado que eu sei. Mas não tem importância, ainda sobrou muito pra mim, tá dando pro gasto.

O comentário de Jennifer tirou todos do sério, provocando gargalhadas, inclusive em Leon e Larissa, que ainda estavam muito perplexos e assustados com o rumo da conversa.

Celso fez sinal para que Gládis continuasse. E ela finalmente anunciou:

– A proposta do Celso é a seguinte: Leon Schlikmann vai ser o nosso candidato. E Larissa Silva vai ser a sua sucessora, quando chegar a hora.

Larissa agarrou-se a Celso Teles, um tanto em pânico:

– Mas eu, amor?! Mas o que eu sei fazer? Nossa, uma prefeita tem que saber tudo, tudo,.. Eu não sei nada, nada.

– Mas você vai ter DEZ longos anos de preparação, meu bem.

– Dez anos? – estranhou Paula.

– Sim. Dois anos até o Leon assumir. Mais oito anos dos dois mandatos do Leon como prefeito. Então, depois disso, vêm os seus oito anos, seus dois mandatos.

– Gládis!!! Mas isso é loucura, é impossível até de imaginar!

– Pois não imagine, Fofinha, apenas se entregue. E eu juro que você vai ser tudo isso e muito mais. Entregue-se a nós e entregue-se a Amarante e seu povo. E tudo vai acontecer. Deixe a sua preparação com o Celso e todos nós. Nesse oito anos você vai estar casada com o Celso, vai ter seus filhos, que você tanto quer, eu sinto. E vai aprender a levar sua vida de adulta, de mãe, de amiga e, principalmente, de centro de força e de amor.

– Como assim, Gládis?

– Deixe isso com a sua amiga bruxa aqui, Fofinha, eu estou escrevendo na tela do seu futuro, mas uma boa parte disso eu discuti antes com Maria Amália. Ela viu muito disso no seu mapa astrológico e eu vi no inexplicável, com sempre vejo.

– Mas... Mas...

– E tem mais: Maria Amália disse que é para incentivar você imediatamente a desenvolver a profissão que o seu coração escolheu. Pois é com essa profissão que você vai fazer muito, muito, por esta cidade e seus habitantes.

Larissa deu um dos seus proverbiais gritinhos pulados:

– Agrônoma?!

– E tem outra? Vai querer ser supervendedora de automóveis o resto da vida?

– Não, não. Seu eu puder escolher, não tenho dúvida. Você fica chateado, amor? Quer que eu fique na Teles direto?

– Não, meu anjo. A Maria Amália já me preparou para isso. Eu quero você na Teles só para ficar curtindo você, adorando você. Mas eu estou pronto para deixar que você alce o seu próprio voo. Amo você demais para prender você egoisticamente a mim. Vá ser agrônoma, essa é a sua vida, amor. O que Maria Anália e esta bruxinha aqui falam, a gente assina embaixo sem precisar ler. Eu até já pensei como você pode dar começo na sua profissão.

– Como? Como?

– Ora, o óbvio. A gente compra uma FAZENDA e põe ali tudo o que você quiser produzir. E você aprende a fazer fazendo, se especializa, se realiza.

Larissa gritou, apertou Celso num abraço de quase sufocá-lo, resistiu o que pôde, mas acabou entregando os pontos e desfaleceu. Era emoção positiva demais para ela e é assim que os anjos da Terra reagem ao contentamento e à gratidão excessivos. Ninguém se assustou ou impressionou com aquilo, já estavam acostumados. Celso apenas a susteve e esperou pelo clássico tempo de um minuto, após o qual Larissa voltava inteiramente ao normal, como se nada houvesse acontecido. Os anjos são assim, são diferentes, não são como as pessoas comuns.

Após o tal minuto, do qual Larissa emergiu para beijar Celso apaixonadamente, Gládis continuou:

Leon Schlikmann, você é o nosso candidato! Como Lissinha, você vai ter sua família e seus filhos e vai amadurecer graças a esta rainha maravilhosa que você ganhou de Deus e às crianças de vocês. Enquanto isso, mestre Celso e toda a sua equipe vão investir tudo na sua preparação. Nós queremos você, Leon, porque você é limpo, sincero e HONESTO.

– Limpo? Eu?

Celso explicou:

– Limpo quer dizer que você não tem um passado, Leon. Deferentemente do todos os políticos por aqui, você é zero quilômetro, rapaz. É bonitão, é uma simpatia e caiu nas graças do povo ao mandar seu pai pro quinto dos infernos e casar com Sabá. Cara, você está pronto para começar a sua campanha. E, claro, com o apoio deste outro cara que agora, neste momento, os eleitores votariam nele maciçamente: Celso Teles.

– Putz, mas é duro de ver algo assim na minha vida, Celso. Eu sou tão cru, tão inexpressivo e...

– Quieto, meu copinho! Não se diminua. Você é tudo o que há de bom. E é inteligentíssimo, vai aprender tudo com a maior facilidade.

– Você acha mesmo, Jenny?

– Ora, claro que acho, meu amor. Tenho certeza absoluta. Gente, objetivamente, com quem ele começa?

Gládis saltou na frente com a resposta:

– Ora, com quem o coração de Leon vibra em silêncio. Vamos lá, Leon, escolha um destes mestres para começar. Fale sem receio, ninguém vai achar inadequado. Todos nós queremos investir tudo em você, nosso prefeito de Amarante.

– Bem... Posso pedir dois? Eu queria que o Celso me ensinasse muito de... bom, não tem nada a ver com coisa de prefeito, mas é... futebol.

– Ah, mas isso já estava nos planos, Leon. Pode começar já. E também dó Ibope com o povo. Quanto mais perfeito jogador você for, mais a massa vai admirar você.!E o outro é?

– Tio Rondelli! Eu... bem eu queria aprender mecânica de automóvel com o tio. Acho bárbaro o trabalho dele, nas vezes que vou à oficina, eu fico doido de vontade de meter a mão na graxa, de mexer nas ferramentas, nos motores, de entender as coisas... É inconveniente?

– Mas claro que não, bambino. Comece amanhã mesmo, se quiser. Tudo certo, chefe?

– Mas com certeza, Rondelli. Uma maravilha, Leon, parabéns.

– Sabe, gente, eu quero começar a fazer algo forte, pesado, que dê resultados concretos, na hora, que faça bastante barulho. Assim, eu que fui sempre um vagal, vou me sentir útil e importante para os outros. E aí eu posso chegar em casa morto de cansaço e com orgulho do meu trabalho. E posso olhar nos olhos da minha rainha e me sentir bem, me sentir à altura dela. É isso, tio. Eu quero ser mecânico como o senhor, ao menos até chegar a hora de ser prefeito, se essa é mesmo a minha sina. E depois também, não é? Ninguém é prefeito a vida inteira. Depois eu posso voltar a ser mecânico. Que tal?

– Perfeito, rapaz. Beleza.

– Ai, Leonzinho, olhe só o que está acontecendo com a gente: de uns incompetentes a gente vai passar a ser alguma coisa: você mecânico, eu agrônoma. E, ainda por cima, eles querem que a gente vire político.

Gládis cortou na hora:

– Não, não, meu amor! Não mesmo! Ai você não entendeu. A gente não quer que vocês sejam políticos, a gente quer que vocês seja administradores de Amarante. É muito diferente. Vocês, a rigor, não estão aqui para fazerem carreira na política, mas para fazerem carreira como gestores honestos e competentes. Findos os mandatos, você caem fora e voltam para suas vidinhas doces de sempre. Nada de político e politicagem profissional. Está claro?

– Ah, assim é muito melhor, muito melhor mesmo! Olha que, se vocês vão preparar a gente e sendo vocês quem são, se o maestro é o Celso e a guru é a Gládis, bem, eu começo a acreditar que a metamorfose é possível. De vocês eu não duvido mais nada! O que você acha, Lissinha?

– Eu ainda acho inacreditável, Leonzinho. Mas se são eles... Se o meu amor diz que pode. Se a minha bruxinha  diz que está vendo a coisa certa lá no futuro, então... Ai, minha nossa, eu vou ter que fazer um esforço enorme para poder acreditar nisso!

– E a gente faz a parte prática, não é Rondelli? A rotina, a graxa, os números...

– Falou e disse, amigo Lucas. Treina os músculos da garotada.

Celso Teles, então, fez um sinal para que todos prestassem mais atenção e falou:

CONTINUA