quinta-feira, 20 de março de 2014

OS REFLEXOS DO PEIXE BRILHANTE - Pirabeiraba Blues
MILTON MACIEL
(Do thriller de mistério baseado em Pirabeiraba, bairro de Joinville, SC - cujo nome indígena significa PEIXE BRILHANTE)

3) E então tudo mudou!

Às nove da manhã, quando saiu para ir à quitanda, a viúva e professora aposentada Dahlia Riechelmann viu que o portão do vizinho  estava arreganhado e a Blazer, lá dentro, mas fora da garagem, estava com a porta aberta.

Demorou-se mais na rua, foi também à farmácia e acabou passando na Zenilde, para apanhar umas costuras prontas. Conversaram um longo tempo, de forma que, quando a professora chegou de volta em casa, já passava de onze horas. Ia entrar para fazer o almoço, mas sua atenção foi chamada por algo realmente insólito:

O grande portão continuava arreganhado e a Blazer continuava no mesmo lugar, de porta aberta. Só aí, atravessando a rua até a calçada em frente e enfiando a cabeça pelo portão aberto, Dahlia Riechelmann percebeu que o motor da Blazer estava ligado. Sim, ela lembrou então, aquele mesmo ruído ela tinha ouvido às nove horas, só que não tinha dado importância ao fato, porque achou que era óbvio que o vizinho já ia sair e devia estar esquentando o motor do carro antes disso.

Mas agora a coisa estava muito esquisita! O portão escancarado como nunca ficava. A Blazer de porta aberta e o motor ligado por mais de duas horas! Não, agora aquilo não era normal. Algo havia acontecido com o homem de barba preta!

A professora atravessou resoluta o portão de entrada e caminhou até à Blazer. De fato o motor estava funcionando e estava muito quente ao redor dele. Ela decidiu que era seu dever entrar na casa e verificar se algo diferente tinha acontecido. Por que também a porta da casa estava completamente aberta.

– Olá! Com licença. Vizinho! Vizinho!

Como não teve resposta, entrou. A grande sala estava vazia. A cozinha também. Decidiu verificar a peça que teria sido convertida em biblioteca. E o vizinho estava lá!

Estava caído no chão, deitado de lado, voltado para a direita, mas de olhos abertos. Meu Deus, teve um enfarte! Ou um derrame! – pensou.

Aproximava-se para tentar reanimá-lo, quando notou a mancha de sangue sobre o tapete. Por baixo e ao redor da cabeça. Abaixou-se e percebeu que uma parte do crânio, um pouco acima da nuca e do lado esquerdo, tinha um afundamento discreto. Dali provinha o sangue, que vazara em quantidade limitada e já não mais escorria.

O coração da professora disparou! Percebeu que havia uma coisa com forma de martelo ao lado, tocando na mancha do tapete. Era uma marreta pequena, com um dos lados revestidos por borracha. Ali, naquele lado, havia sangue abundante. Céus, o homem foi golpeado com isso na cabeça. Foi atacado. E, ao que tudo indica, pelos olhos abertos... está morto!

Lembrou-se então que não podia tocar em nada, pois deixaria suas impressões digitais. E que não poderia alterar em nada a possível cena de um crime. Sua obrigaçào era correr e telefonar para a polícia. Aliás, era só pegar seu celular na bolsa. Sabia o número de cor.

Mas foi nessa hora que tudo mudou para Dahlia Riechelmann. Mudou dentro dela!

Foi quando ela lembrou seu fascínio pelas histórias de mistério e suspense, pelos thrillers policiais, seu encanto pelos livros de Agatha Christie, de Conan Doyle, de John Le Carré e de tantos outros autores que lia apaixonadamente desde muito menina.

Lembrou de sua adolescência, quando sonhava ser ela mesma uma famosa detetive particular. A vida respondera a esse sonho permitindo-lhe ser professora primária. E esposa de um argentino ruidoso e mulherengo.

Grandes investigações, descobertas científicas escondidas em ínfimos detalhes que só a mente arguta da grande detetive Dahlia Riechelmann podia perceber, ficaram relegadas aos devaneios e rebatidas para os fantásticos detetives dos livros e dos filmes. Ultimamente acompanhava a série CSI na televisão, mas ficava enojada com os shows baratos dos legistas e com as cenas por demais cruentas de violência. Faltava classe àquele tipo de investigadores modernos, concluía.

Mas agora ali estava a sua oportunidade. Se confirmasse a morte do homem, teria um cadáver só seu, um crime todo seu para investigar. Quem sabe não estava ali a oportunidade única de a grande detetive Dahlia Riechelmann sair das brumas dos sonhos e da imaginação?

Lembrou-se do espelhinho. Abriu sua bolsa, retirou-o e levou-o às narinas do homem de barba, de olhos muito abertos, contemplando o rodapé da parede em frente. Como imaginava, nenhum vapor condensou-se no espelho. Não precisava tomar o pulso ou ouvir o coração. O tórax não mostrava qualquer movimento respiratório. O homem estava MORTO mesmo!

Talvez estivesse morto há mais de duas horas, isso era perfeitamente possível. Então tomou a decisão final: Sim, aquele cadáver era seu! Ela o descobrira, ela se dava direito de investigar tudo na cena do crime. A polícia que esperasse. Se isso favorecia o ou os assassinos, não lhe importava. Não entrava na investigação para fazer justiça, entrava para descobrir quem era o criminoso, não para pegá-lo. Injustiça cometeria ela consigo mesma se, recebendo da vida – ou seria da morte? – essa chance única, fosse ligar logo, histericamente, para a polícia.

Só então pensou que qualquer das mulheres que conhecia, se se deparasse com um corpo sangrando, evidentemente morto, teria prorrompido no maior berreiro e saído a gritar por ajuda histericamente mesmo. Ela, não. Reagira com uma frieza que até a ela havia surpreendido. O fato de não ter o menor medo de mortos talvez ajudasse a explicar o fato. Estava acostumada a ver mortos desde pequena. Eram gente como ela, gente comum, nunca apareceram como espectros ou zumbis, como nos filmes. Com o tempo perdeu qualquer receio desses encontros fortuitos e involuntários. Perdeu todo medo de mortos, acostumou-se com eles, podia dizer. Depois que havia crescido, esse fenômeno escasseou até desaparecer, o que a deixou satisfeita. Mas, para ela, um morto era um sujeito como outro qualquer, não lhe impunha o menor medo, nem mesmo respeito.

Tal era o caso daquele homem encolhido de lado naquele tapete. Aquilo era só o corpo que tinha sido dele. Ele mesmo andaria por outros lados, sabe-se lá onde. E se aquilo era só o corpo, então aquele corpo a partir daquele instante, pertencia a ela.

Retirou o celular do bolso, um Samsung Galaxy, não para chamar a polícia, mas para fazer fotografias. Alegrou-se que as câmeras fossem agora tão acessíveis, que tivessem uma capacidade quase ilimitada de fotografar, porque não usavam mais filmes de rolo; que permitissem ver imediatamente como tinha ficado a fotografia. E que permitissem transferir tudo quase instantaneamente para o computador.

E, detetive particular autoconstituída, Dahlia Riechelmann saiu então fotografando tudo o que achasse relevante na cena do crime. Era quase meio-dia e a luminosidade na sala era exuberante. As fotos, com resolução de oito 

CONTINUA....

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