domingo, 16 de março de 2014

COMO DEIXAR DE SER CIUMENTA E POSSESSIVA
MILTON MACIEL

Marlene era a Moura de Veneza Brasileira. Explico: Marlene era mais ciumenta que dez Otelos e morava em Recife, a Veneza Brasileira. Era casada há pouco mais de cinco anos com Antonio Carlos, funcionário burocrático da Petrobrás.

Do marido de Marlene as pessoas sabiam essencialmente duas coisas; que ele era Peixes-Peixes e que era a vítima perfeita. A primeira coisa só fazia sentido para os versados em Astrologia; já a segunda era axiomática, ou seja, evidente por si mesma. Não havia, em toda Recife, quem já não houvesse testemunhado, pelo menos uma vez, alguma das furibundas cenas de ciúme de Marlene.

Na rua, um verdadeiro suplício. Antonio Carlos tinha aprendido a andar de olhos baixos, era mais prudente. Bastava que uma mulher minimamente atraente viesse em sentido oposto e os olhos de Marlene já se punham, vigilantes, sobre os olhos do marido. Se este fizesse qualquer menção de ter notado a sirigaita, lá vinha um daqueles dolorosos beliscões no braço. Com o tempo ele deixou de reclamar, era inútil. Doía-lhe na alma, muito mais do que no corpo.

Antonio Carlos pertencia a uma espécie ameaçada de extinção, que deveria ser tombada pelo Patrimônio Público e protegida pelo IBAMA: ele era o marido fiel de Pernambuco! Sim, por incrível que pareça, Antonio Carlos não tinha apenas medo de Marlene: ele a amava de verdade. Por isso agüentava seu cilício bravamente e tentava desculpá-la com os outros. Passava por inúmeros vexames, cenas de ciúme antológicas, nas quais Marlene o acusava publicamente das piores coisas, tipo “Você não presta mesmo”, “Os homens são todos iguais”, “Faz essa cara de santo, mas é um lobo em pele de cordeiro”, “Olha outra vez praquele espelho que eu vou lá e arrebento aquela vaca”. E, claro, coisas ainda piores, não mencionadas porque impublicáveis aqui, que brotavam da boca santa de Marlene, quando ela disparava seu alentado repertório de palavrões.

Várias vezes ela partiu para agressão a outras mulheres, as que ela achava que estavam olhando demais para o homem dela. Começava xingando e aí, conforme fosse a reação da outra, o coisa podia acabar até numa Delegacia de Polícia.

Depois de cinco anos assim, Antonio Carlos evitava ao máximo sair com a mulher. Restaurantes, nem pensar. Como também não podia sair com amigos (‘Todos uns sem-vergonhas, uns sem-caráter, uns putanheiros!”), resignava-se a ficar em casa, o mais das vezes na companhia de Sapeca, uma cadela vira-lata de porte médio, que o adorava. Assistiam televisão juntos, abraçados, todos os dias, sempre que isso era possível. Pois bastava Marlene estar por perto que a cadela sumia. Também ela tinha aprendido a respeitar o perigo e a ojeriza era recíproca. Sapeca viera com o casamento, já pertencia a Antonio Carlos antes. A sua presença em casa era uma das poucas concessões que Marlene fazia ao marido, apesar do ciúme que sentia do animal.

Então a vida de A.C. se resumia a um simples de casa para o trabalho e vice-versa. Ia de carro e Marlene lia o odômetro todos os dias, para conferir a quilometragem que ele fazia. Os amigos o apelidaram de A.C. por que isso lembrava Antes de Cristo e eles diziam que só alguém que tinha algo de Cristo podia agüentar a vida braba que ele levava com Marlene.

No trabalho é que morava o perigo (“Ah, ali tem dezenas de vagabundas, uma putas de saias curtas, com os peitos e as bundas quase saltando pra fora da roupa, umas oferecidas.”) É claro que deviam fazer carga em cima do homem dela. Mas aí era o único lugar onde Marlene sentia firmeza. É que, no mesmo escritório da Petrobrás, trabalhava Silvinha, sua prima-irmã, unha e carne com ela desde o ginásio. 

Silvinha era a encarregada de vigiar Antonio Carlos e manter as outras funcionárias – “Todas as outras, viu! Aquilo é uma récua de putas que não merece a menor confiança!”– bem afastadas do marido da prima. Umas três vezes por semana Marlene ligava para a carcereira, e cobrava o relatório completo do comportamento “daquele cínico” (“Os homens são todos uns cínicos, minha filha, não se iluda.”).

Examinar todas as contas de cartão de crédito, os contra-cheques de pagamento e as contas bancárias do marido era fichinha. Ela também fazia uma marcação cerrada nas contas de celular. E também o mais minucioso exame policial nas roupas do marido. Punha tudo sob luz forte e examinava com lupa. O nariz, pela prática diária, desenvolvera o faro afiado de um sabujo. E, se Antonio Carlos tivesse coragem de colocar ratoeiras nos bolsos de suas roupas no armário, há muito tempo que Marlene não teria mais nenhum dos dedos das mãos. 

No trabalho, Antonio Carlos só tinha dois amigos. Um era o Padilha, seu chefe, solteirão convicto, que todo dia enchia a orelha do amigo de ferozes catilinárias contra o casamento e contra o que chamava de “a psicopata da tua mulher”. A outra pessoa amiga era justamente Silvinha, que morria de pena do pobre marido “da louca da minha prima”. Ela simplesmente não se dava ao trabalho de vigiar um homem que sabia ser completamente fiel à esposa. Claro que muitas funcionárias o assediavam, afinal ele era um homem muito bonito. Mas não tinham a menor chance, ela o sabia. Mas não relatava nada disso à prima, senão ela viria fazer escândalo no escritório e prejudicaria a carreira do rapaz.

E assim transcorria a vida do pobre Antonio Carlos, a vítima perfeita, Peixes-Peixes sofredor. Amigo, só o Padilha; amigas, só Sapeca e Silvinha, nessa ordem para ele. A eles é que Antonio Carlos tinha coragem de confidenciar suas dores e mágoas, as injustiças que sofria, os poucos carinhos e a pouca cama que recebia da esposa, sempre de cara fechada, sempre desconfiada e pronta para armar uma encrenca em casa por causa de ciúmes “de um cínico que nem você”.
Marlene tanto fez que um dia encontrou o que queria. No bolso do paletó do marido, uma tirinha fina de chicletes, com um inconfundível perfume de mulher. Ah, a prova enfim! Os homens eram todos iguais mesmo! Excitada e trêmula, ligou para Silvinha e deu o serviço. A prima pediu um tempo para investigar, só podia ser uma mulher ali da firma. Precisava de uns dias.

Enquanto isso, Marlene começou a elucubrar sua vingança. Correu para a feira-livre, que acontecia naquela manhã a dois quarteirões de sua casa, e levou duas enormes facas de cozinha para afiar “como navalha, entendeu?”, numa das bancas de serviços. Enquanto esperava, sua mente não tinha sossego: Esta noite, depois que ele dormir, eu pego e tchac! Corto tudo de um golpe só! Na volta para casa lembrou, porém, que não podia ver sangue, desmaiava na hora. Guardou as facas na cozinha, seriam úteis em algum churrasco no futuro. Álcool! Isso: “Ele dormindo, ensopo as coisas dele de álcool e risco um fósforo. Adeus bagos, seu traidor duma figa! Queima, maldito!”. Foi ao supermercado e comprou uma garrafa de álcool.

Mas, já em casa, lembrou que a cama também ia pegar fogo. E o quarto. E o apartamento também. Aí não só ela perdia o imóvel que arrancaria do traidor capado a fogo, como o prédio todo poderia arder e ela iria em cana como incendiária. Precisava de um plano C.

Podia conseguir uma arma de fogo com o porteiro da noite, ele já havia oferecido mais de uma vez armas ilegais ao casal. Mas ela morria de medo de revólver, do barulho, tinha pavor da idéia de atirar. Não, não, não. Plano D: Veneno! Ah, isso sim! Ia nos livros de Agatha Christie, relia, procurava um veneno que não deixasse vestígio e... E, caramba, onde e como conseguir comprar o raio do veneno?!           Puxa, ela nunca tinha imaginado que fosse tão difícil capar ou matar um marido traidor.

O telefone! Era Silvinha. A prima recomendou que ela tivesse calma, muita calma, precisava ter sangue frio agora. “Sabe como é, vingança é um prato que se come frio. Finja, minha cara, finja. Trate ele bem, como se não houvesse nada. Eu garanto que vai valer a pena, pode acreditar em mim. Espere até eu lhe dar notícias, não faça nada antes.”

Estranhamente, as palavras da prima tiveram o efeito de acalmá-la. Quando o marido chegou, observou-o atentamente com outros olhos. “Meu Deus, como ele está bonito hoje, mais bonito ainda! E cansado, é, está com cara de cansado. Não, isso é cara de triste! Ele está muito triste. Será que está com remorsos, o safado? Duvido. Pensando bem, acho que ele tem sempre essa cara de triste, de cansado. Também, Peixes-Peixes!”

Pouco falaram naquela noite. Uma das poucas coisas que Antonio Carlos disse, com uma tristeza infinita, foi:
– Sabe, a Silvinha pediu transferência hoje, o Padilha concedeu, ela vai embora para o Rio de Janeiro. E já vai amanhã mesmo...

Marlene ficou sem entender, esperou o marido ir para o quarto e começou a caçar a prima no celular. Inútil estava desligado. Deixou zilhões de recados. Depois, foi para a cama; ele dormia ou fingia dormir, ela quase não conseguiu ter sono, acabou dormindo uma três horas, entremeadas, porém, de sonhos tenebrosos.

No outro dia de manhã, depois que Antonio Carlos saiu para o trabalho e enquanto ela própria se preparava para ir para o seu, recebeu a carta. Das mãos do porteiro. “Aquela sua prima deixou aqui comigo, estava num táxi cheio de malas, acho que vai viajar.” Marlene virou o envelope branco. Era mesmo de Silvinha. O que leu, a fez cair das nuvens:

“Marlene, sua louca, sua idiota, sua debilóide!
O Antonio Carlos tem uma amante sim. Faz cinco meses, sua anta! Você já vai saber quem é ela. Sabe, o coitado foi fiel a você por quase cinco anos, agüentou todas as suas loucuras, todas as humilhações, perdeu o amor-próprio, foi ficando cada dia mais infeliz. Você acabou com ele, sua estúpida, você é um caso pra hospício, sua maluca!  Pois saiba, imbecil, que eu nunca, nunca mesmo, fiquei vigiando ele pra você! Não precisava, sua indecente, esse homem era fiel e sempre te amou demais. Nunca teve olhos para outra mulher. Mas só eu sei o quanto ele sofria, ele só se abria era comigo e com o Padilha – que, aliás, te odeia! Eu também te odeio, maldita!

EU sou a amante do Antonio Carlos! EU! Sabe, de tanto ver ele sofrer por sua causa, de tanto ouvir ele chorar – chorava mesmo, ali na mesa do barzinho ao lado da firma, a gente saía um pouco mais cedo para que ele pudesse desabafar. O Padilha é o chefe dele, permitia, e disse que, se ele não botasse pra fora todo o fel que você enfiava nele goela abaixo, todo santo dia, o homem podia ter um infarto e morrer bem moço, 35 anos! Também, ninguém pode agüentar o inferno de viver ao seu lado, sua débil mental. O Padilha diz que você é uma psicopata e que, se tivesse coragem, estourava essa sua cabeça suja com um tiro de 45.

Eu fui aprendendo a gostar cada vez mais do Antonio Carlos, acabei me apaixonando por ele. Então um dia eu dei um porre nele. O coitado ficou ruinzinho. Aí eu botei ele no meu carro e disse que ia levar pra casa de vocês. Ele implorou que não, que se você o visse bêbado ia infernizar ainda mais a vida dele. Lembra que você o proibiu de beber qualquer coisa com álcool, sua víbora? Pois então eu o levei para a minha casa e o coloquei no chuveiro. Eu tirei toda a roupa dele, sua corna! Todinha! Dei um banho gostoso nele, todo peladinho. Aí eu não agüentei, tirei toda a minha roupa também e praticamente estuprei o cara ali no chuveiro. Como é que ele ia resistir? Você sabe que eu sou muito mais bonita que você; e muito mais gostosa de corpo do que você, sua balofa. 

A gente saiu do banheiro, caímos molhadinhos na cama e a coisa foi muito legal, muito legal mesmo. Maravilhosa! Ele se soltou por inteiro, me amou como homem nenhum fez comigo antes. Ele é um artista, priminha! E você desperdiçando um espetáculo de homem como esse, sua anta! Bom, aí sabe como é, porteira que passa um boi, passa uma boiada. A gente continuou a se encontrar aqui em casa. Sabe como, sua pateta? Pois o Padilha, o nosso chefe, nos dispensava mais cedo pra gente vir pra minha casa transar. Transar gostoso, sua trouxa! Pra você ver o ódio que o Padilha tem de você e que eu tenho também, seu monstro, por tudo que você fez com o coitado do Antonio Carlos. Sabe, eu era sua amiga antes, gostava de você de verdade. Mas agora eu te odeio mesmo, sua jumenta.

Só que tem um problema: o Antonio Carlos não consegue deixar de amar você, sua maldita. Isso não dá pra acreditar, o homem gosta mesmo é de sofrer, é bem Peixes-Peixes mesmo. Não tem um dia em que ele não se derreta de culpa por ter um caso comigo, agora ele chora é de remorsos. Mas aí o Padilha e eu convencemos o tonto que ele tem mais é que se vingar de você também, dar o troco de toda essa sua maldade. E eu vou me insinuando, me insinuando, passando a mão, sabe como é homem, não é? Aí ele não agüenta e eu me delicio. 

Mas agora chega. Eu estou apaixonada demais por ele e ele não consegue me retribuir, continua amando você, sua anaconda asquerosa. Então chega, eu vou embora, me livrar dessa paixão inútil. E você faça bom proveito da sua carniça, seu abutre, corvo nojento, pra mim chega! Eu é que não vou ficar mais à disposição de um homem fraco e masoquista. Pois é isso que é a relação de vocês, puro sado-masoquismo, você a sádica que adora fazer sofrer, ele o masoquista que adora ser a vítima. A vítima perfeita, como diz o Padilha. Bem Peixes-Peixes mesmo! Ora, vão vocês dois pros quintos dos infernos, vocês se merecem! Você continue a sugar o sangue dele, sua harpia. E ele que continue o mesmo songa-monga, pois só um anormal pode conviver com você e ainda dizer que a ama. 

E, do mais fundo do meu coração, desejo que você morra podre, aos berros, envenenada pelo seu próprio veneno, sua jararaca, sucuri, surucucu. E vê se morre logo, pára de infectar o mundo com tua presença, vampiro maldito!

Mas, se demorar a morrer, porque vaso ruim não quebra, então vê se se cura desse ciúme doentio que você sente, sua anormal. Se interna no hospício, pede choque elétrico, uma lobotomia é melhor. E aproveita que eu te dei o único remédio que pode curar o ciúme e a possessividade. O único na face da Terra! Um remédio que sempre tem que ser tomado em DOSE DUPLA. Sabe qual é o nome dele? 
Pois é PAR DE CHIFRES! Vá pro inferno, sua corna!”

Marlene não foi trabalhar, saiu para a rua a pé, caminhou horas e horas como um zumbi, enfiou-se num cinema e assistiu o mesmo filme duas vezes e meia, sem ter a menor idéia do que via. Quando chegou em casa, no fim do dia, Antonio Carlos já estava na sala. Ouvia uma música de Chico Buarque, Marlene entrou na parte que dizia:

“Te perdôo por te trair...”

Ele tinha os olhos vermelhos de chorar, abriu o jogo, contou tudo a ela em poucas palavras e esperou a hecatombe universal. Marlene não disse nada. Voltou a música para o início, ouvia-a toda até o final. Depois falou apenas isto:

– Preciso de um tratamento, de um psiquiatra. Me ajuda a arranjar um?

E foi se trancar no banheiro, até ter certeza que o marido dormia. Amanhã seria um novo dia, iria procurar ajuda. Será que ainda podia salvar seu casamento? Será que era verdade que Antonio Carlos ainda a amava, apesar de tudo? Pensou no irônico da situação toda: a única mulher em quem confiava, a única de que não tinha ciúmes apesar de sua beleza e juventude, sua prima querida, é que a havia traído com seu marido.

O mais chocante para ela é que, exposta à dura realidade que a carta de Silvinha apresentava, sua reação fora apenas de choque. Nem um pingo de raiva, de idéia de vingança, nada. No fundo, não conseguia nem querer mal a Silvinha. Ainda pensava nela com carinho. Sim, aquela carta talvez viesse a ser o começo de uma nova vida para ela. E, se fosse, ainda teria que ser grata à prima, pela carta e por tudo o mais. Era uma nova Marlene que começava a renascer ali das cinzas, no exíguo espaço daquele banheiro. Na sua cabeça, incessante, a letra da composição de Chico:

" Te perdoo por te trair ..."


MIL PERDÕES - Chico Buarque

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