MILTON MACIEL
De longe o menino já escutou os gritos e o
choro. Era mainha e eram as crianças também. Lasquera, que disgraça será que assucedeu-se?
Saltou do jegue na soleira da porta e
entrou correndo. Dentro de casa, a mãe estava acocorada na sala de chão batido,
aos gritos:
– Valha-me Deus Nossa Sinhora! Acuda minha
filha, não deixe qui a disgraçera acunteça. Tenha dó da minha bichinha. Minha
filha inocente... Deus Nossa Sinhora!
A mulher tinha o rosto inchado e o lábio
inferior sangrando. Era evidente que aquele desgraçado tinha batido nela de
novo. A caro custo, Mundinho conseguiu entender o que a mãe dizia, entre
soluços e rogos:
– Ele levô sua irmã, meu filho. Dizque vai
vendê ela pro bandido do Naldão, dizque que Naldão vai dá um bom dinhero pela
bichinha. Dizque vai levá ela pra vendê pro fiho do coronel Justino.
– Vendê minha irmã, mainha?!
– Isso mesmo, meu filho. Dizque o home tá
na fazenda do pai de visita, é aquele qui é adevogado lá no Recife. Dizque ele tá
comprando minina novinha, pra botá na cama mais ele. Uma disgracera. I quem é
qui pode cum um filho do Coronel?
– Mas painho foi vendê a própria filha dele?
É isso?
– É. Eu supliquei, a Mariinha também, qui
num quiria i. Mas num diantô. Aí seu pai bateu em nós duas i levô sua maninha
pela corda, amarrada pelos pulso, qui nem bicho. Falô qui ela já tem 13 ano,
qui é idade di trabaiá pra ajudá nas dispesa, qui o que ele vai ganhá vendendo
ela é mais do que pode tirá num ano intero di vendê rapadura i melado.
– Arre égua, mainha! Mai eu num vô dexá
essa disgracera acuntecê cum maninha. Pra qui lado eles foram?
– Seu pai saiu pro lados das venda, mais
Mariinha. Faiz um tempão. Ainda arrenegô qui ocê foi montado no Tisnado pra
iscola, qui ele ia tê qui andá toda essa lonjura a pé, mais a minina. Foi
intregá ela pra Naldão. Qui Deus Nossa Sinhora, num dexe, num dexe!
Mundinho correu para fora, saltou de novo
em Tisnado e tocou a galope em direção à picada das vendas. Após alguns
minutos, viu ao longe que o pai já estava com Naldão. O menino parou o jegue
atrás de uns mandacarus e ficou observando. Viu quando o pai recebeu e contou o
que parecia ser dinheiro e, em seguida, transferiu a ponta da corda para o
comprador. Maninha tinha sido vendida que nem boi!
O velho Bastião seguiu contente em direção
à venda de Nicolau, que ficava a uns três quilômetros dali. Já Naldão, puxando
e empurrando Mariinha com alguma violência, tomou a estrada de terra em direção
oposta. Taí: ia levar maninha diretamente para a fazenda de Coronel Justino.
Mundinho esperou que o pai desaparecesse na
estrada e começou a seguir Naldão e Mariinha bem devagar, a uma boa distância.
Mas teve que acelerar o passo do jegue quando percebeu que o bandido estava
passando a corda ao redor de um mourão de cerca, prendendo Mariinha no aperto.
Então o homem levantou a saia da menina e começou a passar as mãos nela.
O menino viu tudo vermelho à sua frente e
arremeteu a toda velocidade para cima do homem, que, quando escutou o tropel de
Tisnado, afirmou os olhos para entender o que estava acontecendo e quem era
aquele doido a galope pela estrada. Perdeu muito tempo com isso, o suficiente
para que Mundinho se desviasse de repente,
chegasse até ele e lhe desferisse um tremendo golpe com a única arma que
tinha à mão: sua sacola de pano, onde levava meia dúzia de livros de escola.
Atingido na cabeça, mais por causa da muita
força do avanço do jegue do que por causa da pouca força braço do menino, o
jagunço rolou por terra, meio tonto. Quando começou a levantar, Mundinho já
estava em cima dele de novo. Desta vez o garoto pôde ouvir, nitidamente, o
estrondo da batida do joelho do jegue na cabeça de Naldão, que rolou uns dois
metros, e se estatelou no chão, já totalmente desacordado.
Agora
é ele ou nós! – pensou o menino. E fez tisnado se
afastar o bastante para voltar a galope para o ponto onde o homem estava caído.
Na primeira vez, o jegue pulou sobre o corpo. Mas Mundinho repetiu a manobra e,
nesta segunda vez, os cascos do animal pisotearam o corpo do bandido. Mundinho
repetiu diversas vezes a manobra, até ter certeza que o afamado Naldão, jagunço
de muitas mortes nas costas, tinha ido acertar as contas com seu patrão, o
Coisa Ruim, lá embaixo.
Saltou do jegue, desamarrou Mariinha, que
chorava e tremia apavorada, e a fez montar no animal. Examinou cuidadosamente
os pertences do jagunço. Encontrou uma adaga e um garrucha de dois tiros,
municiada. Tinha também material para mais três tiros. Colocou tudo em seu saco
de livros. Depois montou ele também e tomou o atalho para a vila, por dentro
dos pastos de Seu Eurico Benevides. Sabia muito bem onde deixar maninha.
Meia hora depois, os dois irmãos foram
ouvidos por um atônito padre Torelli. O velho sacerdote ficou indignado e
enfurecido, mal podendo acreditar que o pai daquelas crianças tivesse sido
capaz de tal vileza. Mas prometeu tomar conta da menina, levando-a para a casa
das irmãs Olivença, até que as coisas se esclarecessem. Mundinho podia voltar
para casa tranquilo quanto à segurança de sua irmã. Nunca mais o padre
permitiria que aquele pai desnaturado pusesse as mãos naquela filha.
O padre estranhou que as patas do jegue e o
seu ventre mostrassem manchas de sangue, mas Mundinho disse apenas que ele pedisse
explicações para Mariinha. E tornou a cavalgar seu fiel Tisnado de volta para
casa. Agora, mais do que nunca, sua mãe e irmãos iam precisar dele. Tinha
quatorze anos completos e, tudo indicava, acabava de matar um homem. E não
qualquer homem, mas um bandido perigoso, com vários assassinatos cometidos, um
matador de aluguel. Ele agora era Raimundo Nonato da Silva, também ele um
matador de homem.
Estava na hora de deixar de ser criança. A
vida o tinha obrigado a virar homem feito nesta tarde. Então estava também na
hora de enfrentar aquele outro bandido, que era o velho Bastião, seu próprio
pai. Era chegado o tempo de por um fim nos seus desmandos e nas suas violências
contra a família. Mundinho podia ter ficado amedrontado até hoje, tanto tinha
ele apanhado daquele pai desde bebezinho, tanto tinha ele visto a mãe e os
outros irmãos serem barbaramente espancados também.
Mas agora ele não era mais Mundinho. Era
Raimundo Nonato da Silva, cabra macho e matador de bandido. Agora o velho
Bastião ia ter que respeitá-lo e ele não deixaria que o maldito batesse em mais
ninguém de sua família. Palavra de Raimundo Nonato!
Quando o velho Bastião chegou da venda,
feliz da vida com a dinheirama no bolso e com os cornos cheios de cachaça como
sempre, entrou em casa antegozando a surra que ia dar na mulher. Sempre batia
nela quando chegava bêbado, mas os moleques
corriam de medo, quase nunca podia pegar um daqueles porcarias de jeito.
Covardes!
Mas, quando chegou na sala, quem estava a
espera dele era Raimundo Nonato da Silva. O velho, de fogo, deu um empurrão no
moleque Mundinho e foi em busca da mulher, que estava na cozinha. Já chegou
batendo. Deu só um tapa, porém. Em seguida sentiu uma dor horrorosa nas costas
e teve que se voltar: o filho acabava de lhe vibrar uma terrível pancada com a
pá de mexer o tacho de melado.
Velho Bastião ficou possesso, com o
atrevimento e com a dor que lhe desconjuntava os ossos. E partiu para cima do
garoto:
– Eu vô matá ocê, seu desabusado! – e
soltou um dos seus terríveis murros para acertar a cara do moleque.
Mas o menino, estranhamente, não estava
chorando e suplicando para não apanhar. Estava tranquilo, com um olhar frio e
penetrante, desafiador mesmo, que o velho Bastião nunca tinha visto naquele filho.
Eram os olhos experientes do matador Raimundo Nonato.
E este agora era um homem feito.
Esquivou-se agilmente do murro e, para
surpresa total do velho Bastião, contra-atacou com uma saraivada de socos
fulminantes. O menino estava possesso, batia com uma raiva acumulada durante 14
anos. Batia sem parar. Velho Bastião não tinha como se defender daqueles golpes
e acabou tomando uma enorme surra, apanhou durante mais de dez minutos. No fim
ficou enrolado no chão, defendendo o rosto com as duas mãos e esperando a
saraivada de pontapés que ia levar na barriga e nas costelas. Mas Raimundo
Nonato da Silva não fez nada disso. Apenas falou:
– Se eu fosse covarde qui nem ocê, véio
mardito, quebrava ocê a pontapé agora, como ocê sempre fez cum nóis, seu
nojento. Mais eu num sô covarde qui nem ocê. Si já cansô di apanhá, se alevanta
do chão e sai daqui, antes qui eu perca a cabeça i comece a le disancá di novo.
Para reforçar, apanhou do chão a pá de
mexer o tacho de melado. E completou:
– Di hoje em diante fique sabendo qui num
tenho mais medo di ocê. I é bom qui ocê
tenha medo di mim. Porque si ocê levantá essa mão suja outra vez para batê em
mainha o nas criança, eu acabo com ocê. Acabo, le mato, compreendeu?
Velho Bastião levantou do chão com
dificuldade e esgueirou-se para o lado de fora da casa. Sentou num banco do
alpendre e ficou horas ali, pensando. O que será que tinha acontecido com
aquele moleque, até ontem um covarde como os outros, que apanhava berrando e
suplicando? De onde ele tinha tirado toda aquela força? A verdade é que o rapaz
tinha mesmo crescido, estava praticamente da mesma altura que ele, mas era
magro e franzino. Mas, de qualquer forma, aquilo não podia ficar assim. Aquela
casa era a casa dele, era o seu terreiro e ali só podia cantar um único galo.
O velho esqueceu por um momento das dores e
da humilhação, quando levou a mão ao bolso e retirou dali o maço com os mil e
duzentos reais. Belo preço por um cabaço, apesar de que o bandido do Naldão
devia ter mentido e ficado com um bom naco para ele também. Mas o filho do
Coronel, aquele advogado gorducho e incompetente lá da capital, era mesmo
viciado em tirar cabaço. Se soubesse disso, tinha ido lhe oferecer a menina
muito antes, diretamente, sem precisar repartir nada com o patife do Naldão. A
essas horas o safado devia estar fazendo um bom uso da sua parte da dinheirama.
Mas não tinha importância, ele tinha mais
duas meninas em casa. Estavam muito novinhas, é verdade, mas com aquele
doutorzinho da cidade pagando bem daquele jeito, era só uma questão de mais um
par de anos e já podia negociar a primeira delas. E, um ano depois, vendia a
terceira. Eita negócio bão! Se
soubesse disso, tinha se dedicado a produzir filhas em quantidade e, não,
rapadura, melado e cachaça. Até porque a pouca cachaça que ele fazia, ele mesmo
se encarregava de consumir, toda ela, ao longo do ano.
Mas aí seu cenho franziu-se outra vez: Maldito
moleque! Tinha que dar um jeito nele. E tinha que ser essa noite mesmo. Velho
Bastião esperou que todos os candeeiros da noite se apagassem. Entrou
sorrateiramente em casa e viu que todos já estavam deitados. A mulher e as
crianças no quarto. O moleque, em sua enxerga, armada no chão da sala, ao pé da
cozinha. Mariinha era agora uma ausência, certamente estava esperneando essa
noite, conhecendo pela primeira vez o que era estrovenga de macho. Problema dela! Já tinha idade. Mulher só
servia pra isso mesmo: abrir as pernas pra dar, abrir as pernas pra parir e, de
resto, trabalhar muito para servir o homem que fosse o seu dono.
Mas o moleque desgraçado estava dormindo
ali à sua frente, de cabeça para baixo, um cabeção tão grande como ele nunca
tinha reparado. Lá fora fazia lua cheia e a visibilidade dentro de casa era
melhor que escuridão plena. Então o velho não teve mais dúvidas. Foi até a
parede, retirou o facão da bainha e se aproximou do insolente que dormia agora
a sono solto. Viu o cabeção que
sobressaia sob o lençol em que o moleque se enrolava sempre para dormir,
fizesse o calor que fizesse. Calculou direito a direção e a força do golpe e
desceu o braço com toda velocidade em direção á cabeça, tentando encontrar o
pescoço com a lâmina.
Estranhamente, o que viu foi algo parecido
com uma bola que pulou de dentro do lençol e quicou no chão. Imediatamente, de
trás da cortina que servia de porta para a cozinha, o velho viu um relâmpago de
luz e um trovão entrou-lhe pelos ouvidos. Junto com ele, entrou-lhe no peito
uma bala de garrucha.
O velho caiu no chão, estrebuchando, mas
ainda lúcido para ver que o moleque acendia um candeeiro e se aproximava dele
com uma garrucha na mão. E ainda conseguiu entender, antes que tudo ficasse
para ele definitivamente escuro, como escura era sua alma, o que o menino
dizia:
– Eu podia perdoá tudo em ocê um dia, quem
sabe. Quem sabe até ocê, meu pai, tê tentado me matá. Mas eu nunca que le
perdôo o que fez com minha irmã. Por isso, ocê morre agora.
E disparou o segundo tiro à queima roupa.
A mãe e as crianças chegaram na sala e se
depararam com o ato final. O velho ainda tinha o facão na mão. No chão, a velha
bola de futebol dos meninos estava encostada no suporte da talha de água.
– Mainha, eu achei que esse mardito ia
querê mi matá mesmo. E armei um eu falso, com um cobertor i a bola di futebol
como cabeça. Cobri cum o lençol. E ele, no escuro, achou que era eu. E, como
oçês pode vê, tentou cortar fora a minha cabeça. É o segundo bandido qui eu
mando pro inferno hoje. Agora só farta mais um.
– Como assim, meu filho, mais um? Porque
ocê fala em segundo bandido? E qual é esse mais um. Sua mainha não tá
entendendo nada.
– E nem carece di intendê agora, mainha.
Agora eu já posso le dizê qui eu num deixei o bandido do Naldão levá maninha
cum ele. Eu matei ele com a ajuda de Tisnado. Depois Mariinha le conta como
foi, qui eu vô parti agora, pra buscá ela pra casa amanhã cedinho. Deixei
maninha com padre Torelli, ela tá bem. Agora ocê manda os minino buscá cumpadre
Inácio no rancho dele, conta qui eu matei o velho Bastião i conta porque. Ele
vai sabê o qui fazê, inclusive cum puliça i tudo. Mas agora eu tenho que i,
mainha.
E Raimundo Nonato da Silva, cabra macho e
matador, matador de dois bandidos, um o seu próprio pai, montou Tisnado, o fiel
Tisnado e seguiu noite adentro, em direção à vila. Amanhã, quando Padre Torelli
abrisse a igreja para a missa das seis, teria uma surpresa. Ele e Tisnado
estariam ali para buscar maninha. E esta ficaria aliviada quando soubesse que o
velho Bastião nunca mais poderia vendê-la. Mas não contaria nada a Padre
Torelli sobre a morte do pai. Não queria perder tempo, nem queria que o padre,
com boas intenções, acabasse atrapalhando sua terceira missão. Tinha que
liquidar o terceiro bandido. Depois, seria o que Deus quisesse. Que os homens
fizessem com ele o que quisessem, também. Mas sua maninha e sua mainha estariam
para sempre livres de perigo, livres de bandidos. E isso era uma bênção para a
alminha de Mundinho, que amava demais aquela duas mulheres.
Às dez da manhã, Mariinha entrava
triunfante em casa. No galpão da casa de compadre Inácio, era feita a sentinela
do velho Bastião Silva. Mas ali não tinha ninguém. Só três velhas carpideiras, que
cobraram adiantado, choravam e faziam suas ladainhas com esmero profissional.
Pagos também tiveram que ser os dois homens que levaram o corpo na rede para o
cemitério do povoado. Ninguém mais quis saber de acompanhar o cortejo do homem
que tinha vendido a filha e tentado matar o filho.
O menino e seu jegue tiveram outra vez uma
curta estada em casa. Seu Inácio confirmou que se encarregava de tudo, seu
genro era sargento da polícia militar, ia dar um jeito. Iam livrar a cara do
garoto. Então o menino se despediu com um abraço apertado em mainha e outro
mais apertado ainda em Mariinha. Elas não sabiam, mas, para ele, era uma
despedida. Dentro de poucas horas, o futuro iria se fechar para ele. Mas
Mariinha não precisaria nunca mais temer o terceiro bandido.
Duas e meia da tarde, o menino Mundinho
apeava do resistente Tisnado, à entrada da casa grande da fazenda de Coronel
Justino. Um recado urgente de Naldão pro Dr. Amâncio, uma encomenda do doutor que vai demorar mais umas horas.
O doutor Amâncio chegou sonolento na sala,
onde o menino esperava. Não havia mais ninguém na casa. O advogado tinha sido
perturbado em sua sesta, estava de mau humor. Foi descontando no moleque:
– Então, seu porqueira, o que aquele idiota
do Naldão fez que não me trouxe a minha garotinha. Eu paguei bem, a pequena é
bonitinha mesmo. Qual é o recado dele, afinal?
– Este aqui.
Raimundo Nonato da Silva retirou da sacola
de livros a garrucha de Naldão.
Recarregada, perfeita. Olhou demoradamente, com olhos serenos, dentro
dos olhos arregalados do homem gordo. Então o terceiro bandido rolou por terra.
Missão cumprida. Ninguém tinha ouvido nada, percebido nada na casa vazia.
O rapaz voltou a montar em Tisnado e os
dois partiram em direção ao futuro. Qual futuro? Mundinho não sabia. Raimundo
Nonato não se importava!
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