segunda-feira, 24 de março de 2014

O BONDE   

MILTON MACIEL 

Quem é bom de amor e de briga?
Na ensolarada manhã de Porto Alegre, o bonde transitava mansamente pela Avenida Protásio Alves, as rodas de aço arrancando dos trilhos o característico som sibilante de metal contra metal. Feita a curva, entrou na Avenida Osvaldo Aranha e parou, guinchando os freios, bufando ar comprimido. Foi então que um jovem ansioso e feliz entrou bonde adentro, procurando avidamente com os olhos a musa dos seus sonhos.

Lá estava ela, exatamente como combinado! Parecia um sonho: Cecília estava sentada em um dos bancos da parte traseira e, mais incrível ainda, com um lugar disponível ao lado dela. Ah, dia de glória, dia de felicidade, dia abençoado! Era hoje que Abelardo esperava se dar bem.

Meses da paciência, de excitação, de dúvidas, de sofrimento... Aquela deusa de olhos verdes, cobiçada por todos, corpo de deixar até padre enlouquecido, rainha da beleza desde a escola primária... Positivamente, era areia demais para o seu caminhãozinho. Meses suspirando por ela, esticando para ela olhos súplices de lobo em pele de cordeiro, os mesmos olhos com que todos os homens a desnudavam famintos. E ela indiferente, divertida, a todos ignorando com um ar de superioridade mal disfarçada ou, ainda mais comum, com uma atitude que parecia de total indiferença, como se fosse uma distração extrema, uma quase alienação.

Isso fazia Adalberto sofrer ainda mais. Como teria ele alguma chance, se todos a olhavam daquele jeito? Inúmeras vezes havia tentado disfarçar, mostrar-se diferente. Ou melhor, indiferente: ignorá-la, para não sofrer ainda mais. Só que isso resultava sempre impossível. Como não ver, não tremer, não sucumbir à visão celestial que se oferecia a seus olhos?

Intenções vencidas, Adalberto deixava-se ficar a contemplar a deusa, a acompanhá-la após passar por aqueles olhos indiferentes e distantes, por aquele quase sorriso permanente nos lábios perfeitos. Voltava-se então, para se extasiar com a vista traseira. Que bunda, meu Deus! O que era aquilo?! Que abuso de perfeição, de desenho, de delicadeza, o torneado perfeito descendo até os pés. Sim, cheio, sem exageros ou qualquer desproporção, o menear sensual, sem afetação, totalmente natural, absurdamente feminino. Ah, e as coxas, as pernas, brilhando suavemente bronzeadas sob a saia curta! Até mesmo os pés eram de uma beleza toda própria, a perfeição caminhando...

Essa era Cecília, uma inconteste deusa. Uma jovem fêmea consciente de todo o seu poder e seu fascínio. Mas, paradoxalmente para muitos, uma estudante de primeira, uma mente brilhante, célebre pela rapidez de suas respostas desconcertantes. E dona de um inacreditável bom humor. Do alto de seus 20 anos, contemplava o mundo como uma rainha; e os homens, como seus vassalos submissos.

Nesses seis meses de agonia e paixão, Adalberto sofrera todas as agruras e cruéis pontadas do amor não correspondido. A deusa o desconhecia. Como, aliás, desconhecia todos os demais. Algumas vezes, seu padecer chegava ao insuportável. Era quando a via conversando com algum colega mais bonito ou mais famoso por suas muitas conquistas. Ou quando a via de carona com algum rapaz em um automóvel, algo que ele nem podia sonhar ter. Aí seu coração sangrava, o desespero batia fundo, a revolta assomava, a imaginação disparava.

Nesses momentos angustiantes, ele a antevia na cama com algum daqueles apolos, deixando explodir toda a sua sensualidade nos braços de algum atleta sexual inigualável, que a haveria de submeter e subjugar, fazendo-a apaixonar-se irremediavelmente. Com isso, qualquer fiapo de esperança que pudesse ter se esvaía. Quem era ele, afinal, para competir com aqueles garanhões jovens, ora bonitos, ora ricos – quando não as duas coisas ao mesmo tempo?

E isso sem falar em outro tipo de tormento, um agonia mortal, quando a sabia na mira de homens mais maduros, bem sucedidos economicamente em seus negócios ou empregos importantes, alguns deles casados até. Ah, que amargo na boca, quando a imaginava vendida a um rico senhor, amante teúda e manteúda, coberta de jóias e serviçais, a escritura da cobertura lavrada em cartório, as viagens à Europa se repetindo ad nauseam.

Ou então vinha um daqueles malditos, jovem ou maduro, e a convertia em esposa, enchia-lhe o mimoso ventre com aquelas bolas de deformação, os rígidos seios enlouquecedores desabando enormes, lactação após lactação. Não, não, aquilo era crueldade demais. Sua musa tornada mãe, com babás, governantas e fedelhos ranhentos em séquito a segui-la, socialite e dondoca, roupas de grife, freqüentando as colunas sociais e os clubes de madames.

Sim, ruminava ele nas noites mal-dormidas, o destino dela só podia ser esse! Ele mesmo, se tivesse condições, seria o primeiro a lhe propor casamento ou manteudato, atulhando-a de bens e presentes, única maneira de compensar sua falta de atrativos para as mulheres. Ah, pudesse ele, e a cobriria de luxos tantos até que tivesse o direito de tomar posse do loiro tesouro, ainda que o soubesse comprado. Qualquer coisa, qualquer coisa, meu Deus, seria melhor do que perdê-la!

Mas, estranhamente, a visão da musa com o concorrente nunca se repetia. Por algo com que ele não podia atinar, Cecília não se prendia a ninguém, simplesmente nunca tinha namorado fixo. E não tinha, porque, evidentemente, não queria ter. Assim como, mais compreensivelmente, não tinha amigas.

Quando Abelardo a viu dentro do bonde da Cia. Carris Porto-alegrense, Cecília lia um livro. Quase lá no fundo, com a maioria dos assentos ostentando passageiros, era um verdadeiro milagre que sobrasse um lugar ao lado dela. Ele se aproximou com o coração aos pulos, mais inseguro do que nunca.

– Oi – balbuciou com a voz entrecortada, muito menos potente do que desejava – então você veio mesmo.

– Ué – respondeu a moça – eu não disse que vinha? Bom dia!

– Si, sim, claro, desculpe, eu não quis dizer... quer dizer, eu não pensei... eu.. eh... Ah, bom dia!

Pronto, lá estava ele de novo embasbacado, quase gaguejando, prestes a jogar fora a oportunidade mais incrível de sua vida.

– Ora, deixe disso – Cecília o socorria com um sorriso que se irradiava de um semblante muito sereno – Sente aí logo, antes que alguém queira o lugar.

Adalberto jogou-se inteiro no banco, veloz como um raio, deselegante como um polichinelo. Imagine, perder aquele lugar bendito, aquele lugar sagrado. Nunca!

– Calma, menino, assim você se machuca – os lábios mais lindos do mundo agora riam francamente.

– Desculpe, acho que me desequilibrei – mentiu ele – E é mesmo um milagre ter este lugar aqui, bem ao seu lado.

– Milagre nada, seu bobo. Eu é que guardei este lugar para você.

  GUARDOU?!!

Adalberto gritou tão forte que todo mundo se virou para trás para ver o que se passava. Logicamente, ele não sabia mais onde enfiar a cara.

– É, guardei, sim. O que isso pode ter de estranho? Você não disse que queria conversar comigo sobre literatura e nós não marcamos de nos encontrar neste bonde das 10? Então eu guardei seu lugar, ora.

– Guardou para mim... –ele repetiu a frase mecanicamente, mais como uma carícia, uma música suave para os seus ouvidos, que vinha reforçar sua imensa, sua inesperada, sua agradável surpresa. Ela guardou para mim, para mim, me esperou mesmo... Isto é um sonho, um sonho...

– Então? – era a voz suave da deusa, trazendo-o de volta do devaneio.

– Então? Bem, é que... Quer dizer...eu...eu...

– Adalberto!? – a voz suave agora misturava calma com autoridade.

  Sim. É sim? – respondeu o rapaz, certo de que estava fazendo papel de idiota outra vez.

– Adalberto, calma. Você não precisa sair falando, respire, se acalme, a gente tem toda esta viagem e mais o tempo que for preciso fora deste bonde, tá bem – e, olhando para fora pela janela, comentou:

– Olhe lá o Instituto de Educação. Como ele está bem cuidado agora, você não acha?

– Acho – concordou ele mecanicamente, olhando para um prédio sem ver nada, só o seu tumulto interior. Mas agradeceu aquela chance maravilhosa de poder ficar olhando para fora, de disfarçar sua cara de pateta, de se acalmar, com ela dissera. Puxa, precisava parecer menos afoito, menos atrapalhado. E completou, dando-se ares de arguto apreciador:

– Muito melhor agora. Limpo. As cores novas...

– Adalberto, o Instituto de Educação fica do outro lado! Do lado esquerdo. E agora nós já passamos.

Oh, Deus, porque não existem buracos nos bondes, buracos enormes, onde a gente possa sumir por completo, enterrar-se para nunca mais reaparecer, sumir sem deixar vestígios!

– Ah... Puxa, desculpe. Eu nem sei o que lhe dizer agora.

– Menino, o que é que você tem? – o sorriso-luz estava lá de novo.

– Eu... Bem, eu estou nervoso, é isso. – agora a confissão irrompia.

– Ué, mas nervoso por quê? Por minha causa?

– É...

Não havia mais como segurar, melhor deixar tudo fluir, ouvir uma resposta gentil dispensando-o. Acabar de vez com aquela agonia e aceitar o sofrimento que viria depois. Era hora de ser macho e enfrentar a situação.

– Mas por que, insistiu a garota.

– Porque eu fico todo sem jeito com você, porque eu não acreditei quando você aceitou o meu convite para conversarmos no bonde, porque eu vivi uma noite inteira de aflição e porque... porque eu sou um imbecil mesmo. Pronto. É isso. Saiu!...

– Ora, mas o que é isso? Eu deixo você assim?

– Cecília, você sabe muito bem que você deixa qualquer homem assim – e surpreendeu um sorriso maroto no rosto da moça – Qualquer um... Porque não eu? Eu também sou seu fã. Não tenho como evitar isso, embora reconheça que, para você, eu deva ser um dos menos interessantes e mais insossos...

– Ei, devagar! – a voz da deusa soava cada vez mais humana – Não ponha conclusões suas na minha cabeça.

– Você vê, eu sou mesmo inseguro e fico muito, muito mais quando ao assunto é... você. Mas agora que eu tive coragem de começar, me deixe terminar. Vai ser um enorme alívio. E, no fim, você me diz o que quiser. Pode ter certeza que eu estou preparado para aceitar conformado o que vier.

E continuou:

– É claro que você nota que eu sou como os outros. Não, que eu sou mais tonto que os outros. Porque eu sofro calado a sua indiferença e nunca ousei me aproximar de você pra valer. Lógico, pela certeza da rejeição, pela certeza da dor da rejeição, é isso.

Então fechou os olhos, inspirou, pensou um pouco, soltou um longo suspiro e reuniu coragem suficiente para prosseguir:

– Olhe, Cecília, eu sei que você percebeu logo que o meu papo de discutir literatura com você era furadíssimo, era só pretexto. Rezei não sei quantas vezes... é, rezei mesmo, não ria! Rezei de ajoelhar, justo eu que não acredito em nada. Rezei para que você não desconfiasse e acreditasse na minha sinceridade. Que sinceridade! Eu estava mentindo, é lógico. O que eu queria era estar uns instantes com você, poder apenas conversar com você, com naturalidade, poder olhar você assim bem de perto. Era isso, só isso, juro. Nunca imaginei que eu estaria dizendo isto agora. Esta confissão que salta de dentro de mim agora não estava nos meus planos, eu não teria coragem de fazer isso. Mas agora...

– Agora você está tendo essa coragem, não é?

– Sim, estou. E isso vai me acalmando, sabe. Afinal, são tantos meses de muda adoração, de sofrimento calado, de desesperança e, paradoxalmente, de sonhos dourados a seu respeito.

Cecília encarou Adalberto com um olhar enigmático, com se estivesse olhando para dentro de si mesma. Quando se preparava para responder ao rapaz, o bonde parou com estardalhaço e passageiros começaram a descer e a subir.

Adalberto desconcentrou-se por instantes e olhou por um momento para a porta da frente, por onde embarcavam passageiros especiais e... Céus! Não!!! O Alemão! O Alemão Bauer!!!

Sim, quem acabava de entrar no bonde era ninguém mais, ninguém menos que o divertido e temidíssimo Alemão Bauer, seu colega de classe. O Alemão era célebre por suas brincadeiras pesadas e de péssimo gosto. Das quais a mais conhecida era a do “Maridooo!”

  Maridooo!  – gritava o Alemão, quando via um colega ou amigo acompanhado de uma garota. E partia para cima, fazendo voz e jeito de bicha, com trejeitos exageradíssimos, voz de falsete, gritinhos esganiçados, escandaloso como só.

Adalberto tremeu nas bases. Deus, não deixe ele me ver, por favor, ele vai acabar com o meu cartaz com a Cecília, nunca mais que ela... – e afundou no banco, escondendo-se atrás da ampla cabeleira da passageira da frente.

– Céus – exclamou Cecília – o que é que você tem? Ficou branco, parece que viu fantasma.

– Pior. Vi o Alemão Bauer! Só espero que ele não tenha me visto...

Mas era tarde demais. Impiedoso, o sorriso sarcástico crescendo no rosto, que já se transformava em caricatura de mulher, o Alemão se aproximava pelo corredor.

– Maridooo! – gritou o gozador, a voz efeminada mais escandalosa do que nunca – Seu traidor! Seu falso, sua víbora! O que você faz com essa perua do seu lado, hein?

Adalberto só engolia em seco, o corpo todo a tremer, o rosto vermelho de vergonha. Não tinha coragem de olhar para Cecília, só imaginava o olhar de decepção e de asco que ela devia estar lançando sobre ele.

– Então é assim, não é? É assim. Eu feito uma louca, esperando por você na nossa casinha e você aí com essa mocréia, com essa sua mania ridícula de querer enganar que é hétero, sua bicha nojenta! Você fica enganando essas putinhas e eu é que sofro. É, isso, eu que me arrebente, que trabalhe feito uma escrava naquela máquina de costura pra sustentar os seus luxos, seu monstro. Olhem só, gente, essa camisa novinha, quem foi que fez? Euzinha aqui! E essa calça apertada de bicha que ele está usando? Também foi a Amélia aqui, a Escrava Isaura aqui quem fez.

E fazendo que chorava, olhando para todos, enquanto o bonde não fechava a porta e voltava andar:

– Vocês estão vendo, gente? Vocês são testemunhas da crueldade desse homem. Ele diz que me adora, que não vive sem mim e a besta aqui acredita. Mas olhem só o que ele está fazendo, me enganando e enganando aquela putinha loira ali. Isso é bicha, minha filha! Tricha. Milicha. Seu traidor, covarde!

Foi a gota d’água. Adalberto viu que estava perdido. Aquele desgraçado tinha acabado com qualquer chance de ele ser, ao menos, amigo de Cecília. Estava perdido. Acabado. Aquele maldito, com aquela brincadeira imbecil... E, quando o ouviu chamar a moça outra vez de putinha, Adalberto deu um urro e pulou do banco, arremessando-se com toda a força, com os dois pés, na barriga do Alemão.

O alemão rolou pelo chão e caiu fora do bonde. Levantou, limpou a roupa e falou, agora com uma voz sinistra, que não tinha nada mais a ver com a da bicha escandalosa de segundos atrás:

– Ah, então você quer dar uma de machinho, é, seu merda? Pra cima de mim é que não. Não sabe brincar, é, seu idiota? Pois então eu vou te ensinar. Desce aqui, se você é homem, desce desse bonde e vem apanhar como um homem. Se não descer, é porque é mesmo a bichinha que parece.

Adalberto só agora se dava conta de sua situação. Explodira com raiva e atacara um sujeito que era um verdadeiro armário, duas vezes mais forte e um palmo mais alto que ele. E famoso por ser bom de briga. Aliás, era por causa disso mesmo que ele fazia suas brincadeiras absurdas, porque sabia que ninguém ia ter coragem de brigar com ele de verdade. Mas agora aquele franguinho de merda...

Adalberto não tinha saída, tinha que descer e brigar. Ou seja, descer e apanhar. Preparou-se para descer, andou até a porta. Mas foi retido por um par de mãos que o seguraram pelos ombros. Era Cecília:

– Não desça, Adalberto! Eu sei que você não é nada disso. E, se fosse, eu não ia deixar de aceitar você como amigo. Não desça. Você não tem que provar nada para ninguém. E muito menos para mim. Não vá, não aceite a provocação. Não precisa brigar.

Adalberto voltou-se e encarou os dois olhos verdes que o fitavam com preocupação e receio. Por uma fração de segundo, perdeu-se naquele olhar. Ela se preocupa comigo. Que maravilha! Obrigado alemão maldito!

E tratou de justificar tudo o que aprendera, desde criancinha, sobre ser um macho gaúcho. Saltou incontinenti do bonde e parou em frente ao Alemão Bauer. Junto com ele desceram os passageiros, o cobrador e o motorneiro. O bonde ficou abandonado nos trilhos, ninguém queria perder uma boa briga. Se bem, que o frangote...

O frangote já começou apanhando. O enorme alemão deu-lhe um tapão no peito e outro na cara. O rapaz se desequilibrou a caiu. Aí o enorme opositor puxou-o do chão e prendeu um dos braços dele para trás, com uma chave de braço. A dor que Adalberto passou a sentir era insuportável. Aí o alemão falou, voz grossa e cavernosa:

– Vai usar tipóia pra aprender a respeitar um homem de verdade, seu garnisé. Eu vou quebrar esse seu braço pra você nunca mais esquecer da besteira que fez me atacando, seu imbecil. E vou assinar o seu gesso, palhaço.

E começou a forçar ainda mais o braço, para quebrá-lo na articulação efetivamente. Mas, nesse momento, alguém que não tinha descido do bonde, que estava no estribo superior, deu um grito e saltou nas costas dele. Todos se voltaram a tempo de ver aquela impressionante massa de cabelos loiros esvoaçantes se abaterem sobre a cabeça do alemão. Oito unhas afiadas acabavam de abrir oito lanhos profundos na cara dele. Os lanhos vertiam sangue vivo.

Quando alemão viu que sangrava ficou possesso. E avançou em direção à garota loira, que já tinha descido das costas dele e o encarava parada próximo ao bonde, com uma posição esquisita, meio arqueada, e com um olhar de inacreditável tranquilidade. Alemão Bauer preparou seu soco, que era um verdadeiro coice de mula, e desceu o braço raivoso, em direção á cabeça da mulher.

Mas, no segundo seguinte, tudo o que aconteceu foi que o seu enorme corpanzil se estatelou de encontro ao estribo do bonde. A moça tinha apanhado o braço dele no ar, interposto seu corpo de sereia na trajetória e o tinha feito subir e girar no ar.

“Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco afinal” – Alemão Bauer estava encolhido de encontro ao estribo, gemendo de dor nas costas, na barriga, nos braços e na cara. Ah, sim na cara toda lanhada! Quando se apercebeu do ridículo de sua situação, que uma mulher tinha feito aquilo com ele, ficou ainda mais endoidecido. Todo mundo estava debochando dele e ele era um brigador respeitado. Ah, não aquela desgraçada ia ver o que era bom.

Apesar da dor, levantou de um salto só e avançou para a mulher, que estava no centro da roda formada pelas dezenas de pessoas que tinham se disposto para desfrutar da briga entre os dois homens. O Alemão percebeu que a loira estava de novo naquela atitude esquisita, meio encurvada, os braços meio levantados. Calculou e mandou-lhe o maior murro na barriga.

De novo, com uma velocidade difícil de imaginar numa pessoa, a menina se desviou para o lado, colocou a perna direita em frente ao corpo do homem enorme que avançava com enorme impulso, viu seu coice de mula se desmanchar no ar e, antes que o alemão caísse totalmente, vibrou-lhe um tremendo golpe de cutelo atrás do pescoço. O homem caiu desacordado.

Ah, essa Cecília loirinha!

Colegas de faculdade ela as tinha aos montes. Mas só colegas, amigas, não. Como poderiam as outras conviver com tanta beleza, tanta força de atração e tanta... nobreza (sim, nobreza, por que não admitir a realidade do porte de rainha?) e não morrerem de inveja? As que tinham namorado ou interesse em algum rapaz a viam, naturalmente, como a mais terrível concorrente, a certeira mulher fatal, ávida e pronta a roubar-lhes o homem, com um mínimo olhar ou gesto de provocação.

Falavam mal dela tudo o que podiam. O que concluíam, o que imaginavam e, principalmente, o que inventavam. Uma putinha, com certeza. Não ficava com nenhum, porque queria ficar com todos. Uma pistoleira, na certa se virava na noite pra faturar uma grana preta. Garota de programa, estava na cara, daquelas que se anunciavam: “Jovem universitária, completa, atende casais.” Que nada, afirmava outra: sapatão, minha filha, lésbica das boas, olha o jeitão, só não vê quem é cego; essa nunca me enganou, pensa que eu não vejo os olhos que ele põe em mim?



Algumas, feias, chegavam a se aproximar, mas a motivação era sempre a mesma: ciscar nos restos, ver se sobrava algum cara desiludido ou despeitado pra elas, entre aqueles que enxameavam atraídos pela Bela. Desprezados, poderiam se consolar com as companheiras menos dotadas, quem sabe. De vez em quando uma colega bonita também se aproximava. Mas era sempre a mesma coisa: vigiar o inimigo de perto, conhecer-lhe os passos e as intenções, tentar descobrir seus segredos possivelmente escabrosos. E atirar verdes, descobrir algo e, depois, romper com a libertina, descarregar na cara dela todo o vocabulário de raiva e inveja, lavando a alma, tendo o que contar para as outras, destilar e compartilhar veneno, sentirem-se todas regiamente vingadas.

Mas acontece que – e isso ninguém sabia – Cecília tinha um dom que, embora bastante comum nas mulheres, era muito mais exacerbado nela: a intuição. Desde pequena aprendera a confiar naquela certeza, naquela voz interior que lhe dizia quem era a pessoa que se aproximava dela, que intenção trazia e no que resultaria a aproximação. Por essa razão, não dava muito estímulo ao desenvolvimento das falsas amizades. E, exatamente por esse motivo, permanecia indiferente aos homens, ainda que aceitando uma eventual companhia de um, uma carona de outro, um gentileza sincera de alguém, algo muito raro. Mas ninguém sabia disso, desse seu raro dom. Daí todos os tipos de conjecturas, de conclusões erradas, de maledicências escancaradas.

A estas Cecília se acostumara também desde cedo. Com o tempo, acabou desenvolvendo uma certa imunidade. Já que era inevitável que pensassem e falassem mal dela, precisou construir uma espécie de blindagem que a defendesse. Primeiro tentou se refugiar na religião, mas acabou decepcionada com o sectarismo e a estreiteza mental de todas elas. E também com as investidas de um padre e de dois pastores, ora veladas nos olhos cobiçosos e nas palavras melosas, ora escancaradas, descaradas e até agressivas.

Acabou se conformando, acreditando que aquele era um dos preços a pagar por sua beleza incomum. Ou, em outros momentos, acreditando que as pessoas eram mesmo todas assim, uma conclusão ainda mais amarga.

De qualquer forma, tudo isso serviu para que ela conseguisse construir suas defesas. Tanto quanto se tornara imune aos olhares e gracejos, mesmo aos mais pesados, aprendera a não se deixar afetar nem pelas falsas amizades, nem pelos falatórios a seu respeito. Afinal, estes eram tantos, tão disparatados, tão maldosos que, se não soubesse se desvencilhar deles psicologicamente, teria que passar por decepções e sofrimentos todos os dias, sem exceção.

Colega participativa, inteligente, bem informada, leal, sempre pronta a colaborar nos trabalhos de grupo e a ajudar colegas em dificuldades nos estudos, seu envolvimento pessoal a isso se limitava. Ninguém conseguira penetrar na sua intimidade, nenhuma pessoa fora jamais aceita em sua casa, por mais que se insinuasse ou se oferecesse como convidada. Vinham sempre aquelas célebres tiradas-relâmpago, frases instantâneas irrespondíveis, desconcertantes e descon-versantes.

No centro de tudo e de todos, dos olhares, desejos e comentários, Cecília, por sua beleza e por sua intuição, fizera-se uma solitária. Mas, acostumada a isso desde criança, ela até apreciava essa solidão. O velho dito “antes só do que mal acompanhada” era um dos seus constantes refúgios da alma. O outro refúgio era a leitura. Ela era uma leitora voraz, veloz, quase compulsiva. Lia no mínimo dois livros por semana.

CONTINUA...

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