quarta-feira, 26 de março de 2014

O BONDE - (conclusão) 
MILTON MACIEL  
Fim da 2a. parte:
No fim o delegado relaxou a prisão do Alemão. Que, no dia seguinte, com um braço na tipóia e a cara toda cheia de curativos, uma bandagem de gaze na cabeça, foi visto na estação rodoviária pegando um ônibus para o interior. Era humilhação demais para um macho gaúcho! Largou Porto Alegre, largou a faculdade e levou mais de um ano até voltar. O castigo foi de fato arrasador!

3a. parte: E o Adalberto, como fica?
Quando saíram da delegacia, já passava de meio-dia. Havia uma praça em frente e um providencial carrinho de cachorro quente, com um vendedor simpático e prestativo. O homem carregou nos acessórios, colocou duas salsichas e serviu um autêntico banquete para dois estudantes famintos. Adalberto apressou-se a pagar a conta, no que foi imediatamente impedido por Cecília, que estendia também uma nota ao vendedor:

– Você nunca mais ouse querer pagar uma conta minha. Nunca mais, entendeu. Cada um paga a sua parte.

O tom de voz da moça foi tão imperativo, que o vendedor apressou-se a fazer o troco dela primeiro. Adalberto esperou sua vez, com um sorriso amarelo de um moleque que acaba de levar uma descompostura da mãe.


Cecília, o macho-alfa inconteste do bando, encaminhou-se para um banco disponível e fez sinal para Adalberto sentar. Só então sentou-se também e falou:

– E agora vamos comer em silêncio, que eu estou morta de fome, o exercício com o seu amigo me abriu demais o apetite. Depois de comer a gente conversa.

Adalberto fez que sim com a cabeça e começou a comer. O cachorro quente tinha mostarda, ketchup, maionese, queijo ralado e batata-palha, que sobressaiam ao pão francês como se fossem um outro pão. Naturalmente desastrado, o rapaz deixou cair os molhos no roupa, lambuzou-se todo, cara e mãos, tendo que levantar e voltar ao carrinho para pedir mais guardanapos. Extremamente atencioso, o vendedor ofereceu-lhe um pano molhado, para que ele passasse em sua roupa e limpasse melhor as mãos. E disse:

– Olhe, é melhor a gente tirar isso tudo de cima do seu cachorro-quente ou você vai se lavar todo de molho outra vez – e já foi tirando os tais excedentes, enquanto comentava: Rapaz, que menina mais bonita essa sua amiga, eu acho que nunca vi uma coisa assim!

Adalberto agradeceu muito ao homem e voltou para Cecília mais tranquilo, embora, outra vez, morto de vergonha. Ele tinha se lambuzado que nem um porquinho, ao passo que ela, com toda a classe desse mundo, estava conseguindo comer aquele exagero de cachorro-quente sem nem ao menos lambuzar o rosto.  Como é que ela conseguia fazer isso? É, classe é classe, pensou, acho que a pessoa já nasce com isso. Já eu não passo de um cachorro guaipeca, devo parecer até sarnoso pra ela.

E comeu o resto do seu sanduíche em silêncio, tratando de imitar os movimentos da moça, dando mordidas muito menores e mais bem calculadas, como a via fazer, observando-a com o rabo do olho. E enquanto comia, uma bola desagradável começava a tomar conta do seu estômago: Meu Deus, assim que a gente acabar vem o pior. Ela vai me dizer, com todas as letras e bem na cara, como já vi que é o jeito dela, que não vai querer nada comigo. Ah, porque que eu tinha que me abrir daquele modo no bonde, confessar o meu amor? O que uma deusa como ela vai querer com um sapo como eu? Sim, porque eu sou só um sapo, vou ser sempre um sapo, a princesa que me beijar vai ter a maior decepção, só vai conseguir é gosto de batráquio na boca. E, coerente com seus pensamentos, Adalberto esticou tudo o que pôde daquele cachorro-quente. Que pena que não faziam cachorros-quentes infinitos...

Cecília, que já tinha terminado a seu há um bom tempo, observava-o com seu ar sereno e divertido. Viu quando Adalberto, olhos baixos, terminou de engolir a última das partículas em que havia desintegrado seu sanduíche nos últimos dois minutos. Era evidente que ele estava ganhando tempo, esticando o tempo. E ela, é claro, sabia muito bem por que. Finalmente, quando o rapaz não tinha mais escapatória, ela começou:

  Adalberto, agora agente precisa falar sério.

Ele teve um sobressalto e praticamente gritou:

  NÃO! –  e em seguida tentou corrigir o efeito do seu gesto:

– Quer dizer, antes eu preciso lhe agradecer muito pelo que você fez, ainda não tive oportunidade de lhe dizer. Você me salvou daquele brutamontes, ele ia quebrar o meu braço de verdade. É claro que eu não sou de briga, nunca fui. Na verdade, pode até parecer mentira, mas eu nunca briguei com ninguém na minha vida, nem quando moleque. O Alemão ia acabar comigo. E de repente você salta em cima dele e me salva. E aí eu fiquei embasbacado, paralisado, vendo ele atacar você e incapaz de me mover, de pular em sua defesa.  É claro que eu ia me meter, mas acontece que eu sou assim, é um grande defeito meu, eu demoro um tempo enorme a reagir a qualquer coisa. Então, antes que eu pudesse sequer entender o que se passava á minha frente, você já tinha colocado o cara fora de combate duas vezes.

Cecília nada falou, apenas riu seu riso cristalino de dentes perfeitos.

– Então o pessoal cercou o cara e veio com aquela ideia de linchar o homem. Quando o motorneiro foi buscar aquela enorme ferramenta, eu pensei: Pronto, vão matar o Alemão! Coitada da dona Ingeborg, que não tem culpa da boçalidade do filho. Mas aí você me desperta do meu transe e me chama no meio da roda. E me manda chamar a polícia e sai em defesa do cara. Cecília, você é a mulher mais maravilhosa que eu já conheci, porque esta manhã eu percebi, pela primeira vez, que você é o ser humano mais maravilhoso que eu já conheci, muito, muito acima da beleza que possa ter.

– Nossa, muito obrigada!

– Não, não agradeça, não. Sabe, até hoje eu amava você com a força de uma fantasia que eu construí, baseada apenas na sua beleza extrema. Ou seja, até hoje, você tinha a dimensão de uma musa na minha imaginação. Mas esta manhã, depois de conversar com você, depois de ver você lutando com um homem enorme pra me salvar e, por fim, depois de ver você salvando aquele mesmo homem da multidão enfurecida, eu acordei. Você deixou de ser uma musa irreal e inalcançável para mim. Você passou a ser uma mulher forte e admirável; e um ser humano integral, nobre, generoso, um exemplo para mim e para todos.

– Ora, você não está exagerando, não, nesse seu entusiasmo?

– Não Cecília, eu estou apenas acordando, caindo na real, vendo você como uma pessoa pela primeira vez. Como eu lhe disse, eu me apaixonei por uma visão, uma quimera, uma musa, a mulher de beleza ideal que só existe na imaginação dos poetas. Bem, você sabe, eu não me considero um poeta, mas me arrisco a escrever e publicar alguma coisa medíocre por aí. Pois agora eu compreendo que me apaixonei por você por causa do seu envoltório exterior, como qualquer outro homem pode se apaixonar por uma mulher excessivamente bonita. Ou seja, eu estava orbitando ao redor de um sonho.

– E agora?...

– E agora, quando eu vi suas coxas todas de fora, apertando o corpo daquele homem enorme, quando você montou nas costas dele, pela primeira vez eu não as admirei com o desejo lúbrico de sempre, mas as admirei pela força dos músculos que eu vi delineados nelas, algo que nunca aparece quando você apenas caminha. E eu me dei conta que você é uma pessoa forte em todos os sentidos, a começar pela força física. E, ao admirar a sua força física, os seus músculos, você passou de musa a mulher para mim. E mais, quando você atacou e depois defendeu aquele gigante, eu entendi a alma intimorata e generosa que você tem. Foi isso, Cecília, eu percebi seus músculos e, ao mesmo tempo, apreendi sua alma, sua essência. E foi então que eu acordei. Deixei de amar a musa e a quimera. E percebi que eu amaria você de qualquer jeito, que por ser essa criatura integral que você é, eu a amaria agora independente de qualquer beleza exterior. Porque, pela primeira vez, hoje, eu percebi que você é ainda mais bonita por dentro do que por fora. E entendi, numa fração de segundo, que eu seria capaz de amá-la daqui a cem anos, quando você fosse uma velha enrugada e trôpega, sem mais nada dessa sua beleza deslumbrante.

Cecília continuou sem falar, seu meio-sorriso desenhado nos lábios perfeitos. Apenas que, nos seus olhos verdes, pairavam agora duas lágrimas crescentes.

Adalberto percebeu que estava falando demais e achou que era hora de concluir:

– Puxa, desculpe, eu sou mesmo desajeitado. Comecei a falar sem parar, nem ouvi você mais. Mas então me deixe concluir esta xaropada: eu quero lhe dizer que, porque agora eu acordei, estou muito mais preparado para ouvir o seu não. Porque eu não vou sofrer mais à maneira do proverbial poeta tísico rejeitado. Agora que eu vi você como uma mulher e não como uma musa, como um ser humano admirável e não como uma imagem abstrata de perfeição, eu acho que me tornei um homem inteiro também. E vou poder aceitar sua rejeição com muito mais maturidade e compreensão, Cecília. Porque hoje eu aprendi a amar você muito, muito mais. Se eu tivesse tido a capacidade de perceber QUEM você é há mais tempo, eu a teria amado profundamente, ainda que você fosse a mulher mais feia da face da Terra.

Adalberto parou alarmado: Cecília tinha as duas mãos ocultando o rosto e chorava copiosamente, de seu corpo estremecer inteiro. Após alguns momentos, ela retirou as mãos dos olhos, mostrando uma face toda lavada em lágrimas e procurou algo dentro da bolsa de tecido que trazia presa ao corpo e que não caíra dele durante a briga. Dali retirou um caderno pequeno e, abrindo-o, falou com voz entrecortada:

– Autografa pra mim?...

Adalberto mal pôde acreditar no que seu olhos viram: folheando o caderno, encontrou ali, uma por uma e sem faltar nenhuma, coladas nas folhas com extremos capricho, todas as poesias e todas as crônicas e artigos que tinha publicado, desde as matérias mais despretensiosas no jornal do Centro Acadêmico, até as poesias e as duas crônicas que tinham sido aceitas para publicação no jornal Correio do Povo, o mais importante da cidade.

Adalberto terminou de folhear o caderno e olhou para Cecília atônito. Viu que ela o contemplava de um modo diferente, muito humano, muito morno, sem a indiferença de sempre, como se o estivesse vendo de verdade, pela primeira vez. Ela repetiu:

– Autografa pra mim? Cada uma delas, sem esquecer nenhuma, tá...

E ela agora lhe sorria, a face mimosa ainda lavada em lágrima, mas os olhos verdes dizendo alguma coisa que  fez o coração de Adalberto disparar e sua mente insegura dizer imediatamente que não. Só o que conseguiu foi perguntar, vacilante:

– E escrevo o que?...

– Escreva só: “Com amor, Adalberto”

Ele começou a autografar, meio mecanicamente, sentindo um aperto no peito. Será que podia ter alguma esperança? Não, ela só estava sendo gentil, dizendo que aceitava o seu amor. Mas não que corresponderia a ele. Ah, se ela pudesse imaginar que suas melhores poesias, justamente as que haviam sido aceitas pelo jornal, eram todas inspiradas por ela...

Quando terminou, ele estendeu o caderno para ela, que examinou cada uma das páginas e sorriu, satisfeita:

– Muito obrigada. Você escreve muito bem. Muito bem mesmo. E as suas poesias, essas do Correio do Povo, são uma verdadeira maravilha.

– Cecília, eu estou de queixo caído. Nunca imaginei que você pudesse ter encontrado essas coisas por aí.

– Adalberto, eu leio TUDO! Tudo mesmo que exista por aí. Encontrei sua primeira matéria no jornal da faculdade. Achei legal e me interessei muito pela segunda também. Aí resolvi clipar o que viesse de você, porque você era um colega de universidade e escrevia tão bem, E então você publicou a primeira poesia no jornal. E a minha intuição me disse que EU estava ali. Recortei e continuei esperando por outras. E, à medida que elas apareceram, mais eu me convenci que aquela era eu. Estou errada?

– Certíssima – foi tudo o que ele conseguiu responder, emocionadíssimo.

– Pois é, a partir daí fui montando este caderninho e esperando o dia em que eu ia poder conversar com você e pedir o seu autógrafo. Você diz que é meu fã há mais de seis meses, por causa da minha beleza. Pois deixe que eu lhe diga: Eu sou sua fã há mais de seis meses, por causa da sua inteligência, da sua sensibilidade, por ser o escritor e o poeta que você é.

– Mas Cecília, eu não sou escritor e nem poeta, só escrevo essas coisas aí...

Foi obrigado a calar-se, porque a moça cobriu-lhe a boca com a mão. Era uma mão macia, delicada, cálida...

– Nunca mais diga isso na minha frente, entendeu? Nunca mais! Você é escritor e é poeta e vai ser muito importante e famoso nesse país.

– Cecília! Agora é você que está exagerando.

– Não, não estou não, você é que é um exagero, um campeão mundial de insegurança. Pois se o jornal mais importante do Estado vem publicando você regularmente, o que você acha?

– Bem, acho que eles são camaradas, que gostam de dar chance para novatos, que...

De novo a mão delicada fechou-lhe os lábios:

– Pare de dizer bobagens. Eles publicam você porque você é MUITO bom. Só por isso.

– Você acha mesmo, é?

– Claro, eu tenho certeza. Você é que precisa acreditar mais em você mesmo. É inseguro demais. Você não achou estranho que eu aceitasse de cara o seu convite para discutir literatura, feito naquele bilhete que a Sarita me trouxe?

– Na hora, para ser sincero, eu nem acreditei que você tivesse aceitado. Se bem que eu caprichei, disse que achava o texto que você publicou no jornal da faculdade muito bom e que queria lhe dar algumas sugestões. E achei que você tinha mordido a isca. Além do que, como eu já lhe confessei, eu cheguei a rezar ajoelhado para você não perceber minhas reais intenções.

– Que eu percebi na mesma hora, é claro.
– Mas, se foi assim, porque você aceitou então?

– Porque era o mesmo que todos os outros homens querem, só que isso vinha de um cara que eu admirava pela inteligência e pelo talento. Então eu achei que podia ser bom conhecer você e trocar ideias sobre literatura, como você sugeriu. E porque, no final, depois de ver se valia a pena conhecer você, de ver se você não era um babaca como os outros, eu queria lhe pedir esses autógrafos.

– Quer dizer que você não me achou um babaca, portanto?

– Não achei, não. No nosso encontro no bonde você me pareceu atrapalhado, confuso e inseguro. Se eu não soubesse quem você era, se já não tivesse este meu caderninho comigo, isso teria sido suficiente para descartar você até como amigo. E depois, quando teve a briga lá fora, na plataforma...

– Aí o que eu pareci para você?

– Um banana! Um completo banana. E foi aí que eu comecei a ficar mais interessada em você ainda.

– O que?! Mas como?

– Não se ofenda, mas de homem metido a machão, como aquele idiota do Alemão, eu estou farta até a raiz dos cabelos. Por causa de homens assim foi que minha tia me obrigou, felizmente, a fazer um fantástico curso de autodefesa feminina. Que você viu em funcionamento hoje.

– Sim, admirável sob todos os pontos de vista. Você teve toda a razão quando disse para o delegado que toda menina devia fazer um. Mas, quer dizer que você não gosta de homem machão, mas gosta de homem banana, é?

– Não de qualquer homem banana. Apenas de um em particular, meu banana favorito, meu banana escritor e poeta.

– Ai, Cecília, não brinque comigo, não me faça ter esperanças que não podem se concretizar, que...

Lá veio a mãozinha delicada sobre seus lábios de novo, ele já estava adorando isso, devia falar mais um monte de besteiras só para receber aquele toque dela em seu corpo. Cecília olhou-o profundamente dentro dos olhos e disse:

– Não estou brincando, Adalberto. Você me viu chorar muito, ainda há pouco.

– Sim. E não tive coragem de lhe perguntar o porquê.

– Pois eu lhe digo. Eu estava muito feliz de ser a sua musa, feliz e orgulhosa até. Nunca homem algum tinha me colocado em tal pedestal, ao menos por escrito. Mas quando você disse que o que eu fiz hoje na plataforma fez você despertar e que você deixou de ver em mim uma musa apenas, para ver a mulher que eu sou. E quando você falou com tanta clareza – e com tanto estilo literário, acrescente-se – que me amaria se eu fosse a mulher mais feia do mundo, que você amava a minha alma, QUEM eu sou, você disse, nessa hora você me ganhou.

– Eu... ganhei?...

– Sim, ganhou a minha admiração completa, ganhou a confirmação do que a minha intuição me disse, quando me fez aceitar o convite que estava naquele bilhete. E eu chorei muito, muito, porque, pela primeira vez na minha vida, um homem estava enfim me vendo POR DENTRO, me vendo como eu sou, independente desta carcaça bonita que dá, acredite, mais problemas do que vantagens. Foi quando você falou que a mulher era mais importante que a musa e que o ser humano era mais importante do que ambas, que você me comoveu. E aí eu tive certeza que podia, que devia, aceitar o seu amor.

– Você aceita, então que eu a ame? Não se incomoda com isso? Posso ver você com mais freqüência, posso ser seu amigo, ao menos?

– NÂO! Eu não quero ser sua amiga!

– Mas por quê?! Você acaba de falar que aceita o meu amor e...

Seus lábios foram calados pela quarta vez. Mas agora, para seu total espanto e felicidade, pelos lábios de Cecília. Que logo os afastou para poder falar:

– Porque eu quero ser o seu AMOR. A sua namorada. A sua esposa, entendeu?

– Minha... minha esposa?! Mas justo eu... Você tem certeza?

– Tenho, seu banana! E tem mais: neste momento eu peço a sua mão em casamento.

Adalberto quase caiu do banco, tão forte foi a vertigem que sentiu. Cecília amparou-o rapidamente e foi a primeira vez que seus braços o envolveram e a segunda que o protegeram.

– Emocionado, meu bananinha querido?

Adalberto recuperou um pouco do fôlego, mas não conseguia ainda acreditar que aquilo estava acontecendo de verdade:

– Muito, demais. Parece um sonho...

– Eu também estou, meu poeta e cantador. Muito emocionada. Até porque é a primeira vez que peço um homem em casamento.

E os olhos verdes tinham de novo lágrimas teimosas a banhá-los.

– Você quer casar comigo mesmo. No duro?

– Ah, sim! E ainda bem que você falou essa expressão. Sim: no duro. Isso quer dizer que nós temos que ir para a cama logo, para ver se a gente se afina ali também. Dando certo, pode deixar que eu mesma cuido dos documentos e dos proclamas. Sabe como é, minha família é caretésima, só vai aceitar um homem na minha vida se ele entrar pela porta do casamento. Opa, eu estou indo depressa demais, como sempre: você ainda não respondeu se aceita ser meu marido.

– Puxa, Cecília, é claro que eu aceito! Aceito, aceito comovido, agradecido, feliz como nunca na vida!

– Ufa, ainda bem. Bom então vamos combinar o seguinte: a gente casa assim que os documentos e os proclamas estiverem OK. Acho que leva algo entre um e dois meses. Enquanto isso a gente vira namorados, pra todo mundo ver.

– Puxa, ninguém vai acreditar que a princesa está namorando com o sapo e...

Quinto fechamento de lábios, desta vez com um enorme beijo de tirar o fôlego e de incendiar o sangue. Cecília, beijando-o na boca, o fez levantar, levantou-se do banco também e colou-se a ele totalmente. Ao final, Cecília disse, rindo:

– Um gostei disso, o tal de no duro mostrou que está vivo. Bem, para completar as decisões: o casamento lá pelo mês que vem e a lua-de-mel...

– A lua-de-mel no mesmo dia do casamento, por favor!

– Não, seu banana! A lua-de-mel HOJE! Hoje mesmo, à noite, no meu apartamento. Eu moro sozinha. Aliás, se você quiser, pode trazer suas coisas e se mudar pra lá comigo. Assim a gente faz um ensaio geral mais bem feito, monta um protótipo, como dizem os cientistas. Se não der certo até o dia do casamento, a gente desiste e tenta ficar bons amigos.

Adalberto deixou-se desabar no banco, incrédulo:

– Meu Deus. Cecília, como você é corajosa! O que o pessoal não vai falar de você...

– Garanto que não vai ser pior do que já falam todos os dias, meu amor.

  Meu amor! Você me chamou de meu amor! Que coisa maravilhosa...

– Ora, vá se acostumando. Sua Cecília é muito louca e muito rápida. A propósito, levante desse banco imediatamente eu quero outro abraço em pé, bem apertado. Colado total, entendeu, Quero sentir tudo, tudo no duro!

Os dois se abraçaram e trocaram um longo beijo, depois mais outro e depois mais outro. Um fogo incontrolável os envolveu e Cecília falou, arfante:

– Ai, amor, que delícia. Eu estou morrendo de tesão, estou na maior secura há mais de oito meses. A minha família careta pensa que eu sou virgem – e caiu numa gostosa gargalhada, enquanto se apertava ainda mais contra ele, sentindo-o inteiro, quente, volumoso.

– Eu também, estou que não me aguento. Mas é de felicidade, sabe. Poucas horas atrás eu estava tremendo ante minha musa, certo que nem teria coragem de confessar o meu amor. E agora...

– Agora nós vamos partir para os preparativos da nossa lua-de-mel. Banhos mil, depilação para mim, e outra cositas de mulher, sem muita frescura ou maquiagem. Ah, sim meu vestido de noiva esta noite vai ser só lingerie.

– Ah, eu vou correr para casa, fazer minha mala, levar umas três horas pra me acalmar e ter certeza que tudo isso está acontecendo. Acho que vou pegar uma sauna, para relaxar. E preciso me acostumar: de hoje em diante, vou ter uma mulher poderosa mandando em mim full time.

– Bobinho! Mas é melhor se acostumar, sim. Você é meio banana mesmo.

– Hum, progredi, agora sou só meio banana...

– Pois é, já está rebaixado, porque eu acho que nós dois, juntos, vamos conseguir muita, muita coisa mesmo. A começar pela sua carreira de escritor. Pode escrever e muito, que eu vou me encarregar de colocar essa sua careira nos trilhos. Bom, e agora chega de conversa. Vamos nos preparar que a noite logo, logo, está chegando e eu estou que não me aguento também.

Despediram-se com mais um logo beijo e mais labaredas subindo.

Uma fogosa noite de lua-de-mel e dois dias de falta à faculdade depois, o casal embarcou, no sábado, num ônibus para Camaquã, onde Cecília apresentou o noivo á família, comunicando que o casamento seria no mês seguinte, em Porto Alegre mesmo. A família já estava ganhando a concessão de um casamento formal. Era demais. Conheciam a filha e sobrinha muito bem, para saberem que não tinham o mínimo direito de opinarem sobre a escolha do noivo. Mas conseguiram, a caro custo, convencer a moça a trazer a cerimônia de casamento para a cidade do interior, com a colaboração do padre, que prometeu acelerar os procedimentos.

Dessa forma, em 28 de Abril, o estudante de Letras, de 22 anos e a estudante de Educação Física, de 20, casaram na igreja matriz de Camaquã. Voltaram na mesma noite para Porto alegre, tinham provas na semana seguinte. E ansiavam voltar para o seu ninho de amor, para o apartamento cujo aluguel agora rachavam, para continuarem sua lua-de-mel que, afinal, só tinha 45 dias de existência. Precisavam aprender como fazê-la eterna.           FIM

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