JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO
MILTON MACIEL
Extraído de “DE
FRANÇA E BRASIL, o Pau de Tinta Vai à França”, VOL 1. Publicado, com adaptações, em
SAGANOSSA (edição Associação Confraria das Letras - Joinville, 2014)
Os ventos
chegaram rápidos e muito rápidos cresceram, surpreendendo até os mais
experientes marinheiros e comandantes. Com eles vieram as nuvens carregadas e
das nuvens carregadas desabou o dilúvio. Relâmpagos iluminaram a
escuridão que se fez em pleno dia e as ondas subiram, agigantando-se muito mais
altas que as caravelas. E justamente aquela em que João Ramalho estava foi a
única que não resistiu ao empuxo das ondas. A caravela foi a pique e afundou já
às vistas da costa brasileira.
Então João
Ramalho teve certeza que a praga de Catarina de Balbode se cumpria: "Filho desobediente e cabeçudo, bicho da terra, o mar castiga!" Ainda
assim decidiu que não entregaria a carcaça facilmente à morte. Agarrado a um pequeno
pedaço de trave, conseguiu manter-se boiando e foi nadando com um esforço
sobre-humano em direção à costa que avistava, iluminada pelos coriscos. Quando
estava quase chegando, no entanto, as forças se lhe esvaíram e João Ramalho
aceitou o inevitável. Era o fim. Não conseguia mais manter os olhos abertos, os
músculos lhe doíam como se tivessem agulhas por toda a extensão do corpo. João
largou a trave e fez uma última arremetida desesperada em direção à areia
branca. Tarde demais, no entanto: a exaustão dominou-o e ele começou a afundar,
engolindo água e não conseguindo mais respirar. Tudo ficou totalmente escuro. A
praga de sua mãe voltou-lhe uma última uma vez à memória:
– Como
engajar-te, ó gajo sem juízo?! Tu nunca entraste num navio, o dia que fizeres
isso vais dar-te muito mal. Não foste talhado para ser homem do mar, criatura.
Tu és bicho da terra como teu pai e meu pai. E bichos da terra o mar não aceita
de bom alvitre. Eu t’o proíbo, ouviste bem? t’o proíbo! E, se um dia me
desobedeceres, então hás de encontrar que o mar vai engolir-te, perecerás numa
tempestade. É assim que o mar castiga filhos desobedientes e cabeçudos como tu.
Se me desobedeceres, perecerás numa tempestade!
O último lampejo
de vida lhe trouxe à lembrança os eventos daquele final do ano de 1512, em sua
cidadezinha natal de Vouzela, Portugal:
– Não vais, não
vais e não vais! Está decidido! Eu sou tua mãe e tu me deves obediência. Não
vais! Eu não t’o permitirei ou não me chamo Catarina Afonso de Balbode. E não
se fala mais nisso!
Catarina de
Balbode estava realmente furiosa. Ora, ir-se o seu filhote para Lisboa! Ainda
mais com aquela estúpida ideia de engajar-se num navio que demandasse a
América. Onde já se viu! Aquele filho era mesmo cabeçudo como o pai. Na certa,
se ela deixasse, iria meter os pés pelas mãos. Ah, que dois gajos mais
parecidos aqueles! Não havia dois mais parecidos em Portugal, não podia haver!
Tinha-se-lhes que trazer de rédea curta.
O marido, o
velho João Vieira de Maldonado, até que tinha aprendido a se comportar, com o
passar dos anos. Dera-lhe muito trabalho, é verdade. Mais moço, era dado a
correr atrás das cachopas e a enrabichar-se por elas. Não que Catarina se
importasse, os homens eram todos iguais, conhecia-se um, conhecia-se todos.
João Maldonado não era nem um pouco diferente daquele bode velho sempre no cio
– seu pai, Joaquim Balbode, que tantos bastardos tinha espalhado pelos
arredores todos de Vouzela.
Já temendo por
isso num filho tão parecido com o pai – e que, ainda por cima, poderia sair ao
avô mulherengo – decidira casá-lo bem moço com uma rapariga séria e de boa
família. E, acima de tudo, de cuja virgindade ninguém duvidasse por ali. Ora,
essa Catarina Fernandes, baixota e gorducha, com um belo buço preto maior que o
da própria futura sogra, como esta de respeitável feiúra também, não era
exatamente o sonho dos rapazes do lugar. Muito menos de João Maldonado Filho. A
penúltima coisa que um rapaz podia querer era casar aos dezoito anos. A última,
é que fosse com Catarina Fernandes.
Mas acabou tendo
que casar. Quando Catarina Afonso de Balbode botava uma coisa na cabeça, não
havia cristo que conseguisse tirar. Pressionou o marido e o filho por mais de
seis meses. Por fim recorreu ao velho artifício de sempre: as pontadas! Caiu de cama com as célebres pontadas no coração, tão
fortes que, às vezes, ela chegava a se enganar de lado, acusando-as do lado
direito do peito. Queixava-se em altos brados, para que toda a vizinhança
pudesse ouvir:
– Ai, que me
morro! Que me morro! Mata-me este filho ingrato. Vou-me desta sem ter o gosto
de segurar um netinho ao colo. Ai, que morro de pesar!
E redobrava os
gritos, os ais, os gemidos. O velho Maldonado, por mais que soubesse que aquilo
era manha, era teatro, acabava cedendo. Uma, porque não suportava escândalos e
gritarias. Outra porque, por mais que desacreditasse das cenas de Catarina,
acabava sempre ficando na dúvida: E se dessa vez fosse verdade? E se a mulher
morresse mesmo, se o ataque desta vez fosse verdadeiro? Sempre havia uma
primeira vez. E o pobre João Maldonado acabava cedendo.
Quando a pressão
do pai veio somar-se à da mãe, já por si irresistível, João Maldonado Filho
capitulou. Estava bem, casava-se com aquela moça sem graça, pela qual não
sentia nada, absolutamente nada. Ao menos, também não lhe tinha antipatia. E
quando soube o valor do dote da moça, ficou entusiasmadíssimo. Valia a pena,
sem dúvida. Deitava-se com a rapariga, fazia-lhe o filho que a mãe tanto queria
para neto e ficava livre. Inventava uma viagem ou um trabalho bem longe, em
Lisboa, se conseguisse. E aí ia ficando por lá, gozando a vida. Ou embarcava,
resoluto, para os brasis!
A vida de casado
não caiu nada bem ao rapaz. Não só perdeu sua liberdade de ir e vir à hora que
quisesse, como também ganhou uma segunda Catarina em tudo igual à primeira. A
esposa era uma cópia perfeita de Catarina de Balbode. Sempre de cara fechada,
sempre reclamando de algo, sempre achando defeitos para colocar em tudo e em todos.
E mandona! Mandona como Catarina velha! Que desastre, onde fora amarrar seu
burro!
Na cama era uma
verdadeira negação. Não no sentido de que se negasse. Mas não participava de
nada. Era como um pedaço de pau. Logo o rapaz perdeu o pouco de desejo que,
nessa idade, um homem sente até por buraco de fechadura. Foi parando de
procurá-la e ela nunca se queixou disso. Talvez por isso, ou talvez por outra
causa, nunca tinha engravidado. A velha Catarina vivia atormentando o filho por
esse motivo:
– Me sais um
frouxo, nem trepar em cima de uma mulher sabes, para emprenhá-la. Que negação!
Me fazes morrer sem ter um neto. Me fazes morrer! Aí, as pontadas!
Mas, num certo
dia de sábado, as duas mulheres foram cedo para a missa das seis. Então pai e
filho tiveram um conversa decisiva:
– Meu pai,
dize-me tu, como aguentas viver com uma esposa como essa, por todos esses anos?
Eu estou começando a ver as mesmas coisas na minha e já não suporto mais.
Decidi: vou-me embora de Vouzela!
Para sua grande
surpresa, o pai não só apoiou sua decisão, como deu-lhe todo o dinheiro que
vinha escondendo de Catarina mãe, há muitos e muitos anos, na esperança de um
dia ter coragem de fugir, ele também, do seu martírio.
Dois meses
tinham-se passado desde aquele sábado memorável para João Maldonado filho. Ou
João Ramalho, como o próprio pai passara a chamá-lo daquele dia em diante. Até
que era bom, se as pessoas se acostumassem com esse nome, nunca iriam
confundi-lo com o do pai. Gostava: João Ramalho, João barbudo, João da barba
crespa e arreganhada, da barba ramalhuda!
Pois agora
Catarina mãe estava tendo um dos seus velhos ataques de pontada, entremeado de
terríveis momentos de falta de ar e dor de estômago. Com se tonta estivesse, a
gorda mulher se escorava nas paredes e gritava:
– Ah, mais tu
não vais, não, senhor João Ramalho! Então porque tens uma barba ramalhuda já te
consideras um homem capaz de desobedecer tua mãe? Ah, mas deixa que, antes que me
mates do coração, dou-te eu mesma o corretivo, filho ingrato!
E Catarina mãe
arrancou o avental da grossa cintura e ameaçou bater com ele, enrolado, na
cabeça do filho, que saiu de casa rindo. Passou por Catarina esposa, que
assistia a tudo atentamente da entrada da casa. João encarou-a com um sorriso
estranho e ela o olhou com deboche, dando toda razão à sogra, evidentemente.
João voltou-se
para a casa e encarou as duas Catarinas. A moça, roliça e feia, do lado de
fora; a velha, feia e roliça, na soleira da porta. E João, o ramalhudo,
sentindo-se um grande homem, falou bem baixinho para si:
– Até nunca
mais, suas rolhas-de-poço de maus bofes! Quedem-se por aí a retorcer seus
bigodes! Adeus!
Mas agora, três
meses depois disso, a praga da mãe tinha se cumprido: filho desobediente, o mar castiga! Bicho da terra, o mar engolia-o,
impiedoso, inclemente, frio, escuro. Morria...
Depois de um
longo tempo, João Ramalho teve a sensação de estar como que despertando de um
sonho. Então aquilo é que era morrer! Havia morrido afogado e
agora estava deitado de barriga para cima em algum lugar que não sabia o que
fosse. Estava completamente seco e um calor agradável tomava conta de todo seu
corpo. Que delícia para quem, momentos antes, lutava como um louco contra
aquela água gelada. Um calor gostoso, que chegava a lhe dar quentura até nos
ossos! E uma ardência diferente na pele. Ah, se morrer era assim, então morrer
era bom! A praga de sua mãe se cumprira, mas ele não estava infeliz. De olhos fechados,
continuou desfrutando daquele calor amigo, que parecia vir de algum sol que
existia também no outro mundo.
Então
pareceu-lhe ouvir algo como cochichos e risadas leves de pessoas e uma sombra
toldou-lhe a visão de luz avermelhada, que se infiltrava através de suas
pálpebras fechadas. João Ramalho abriu os olhos e o que viu deixou-o extasiado.
Sim senhor, estava morto e bem morto!
Mas estava no Paraíso! Pois além daquele
calor maravilhoso, além daquele sol dourado, o que ele viu logo acima de sua
cabeça lhe deu essa certeza:
Uma ratinha!!!
Sim, não havia
dúvida! Era mesmo uma ratinha, aquela mimosa rachinha que as mulheres têm no
meio das pernas, só que essa não tinha aquele tufo de pelos negros e crespos,
tão ramalhudos quanto sua própria barba. Era uma ratinha sem pelos. Aí mesmo é
que João Ramalho teve certeza que estava no Paraíso. Pois essa era sua
concepção de Paraíso há muito tempo: um lugar onde um homem chega e encontra
uma mulher maravilhosa e jovem a esperá-lo. Uma só? Não, o que João via agora,
a pairar sobre ele, era uma nuvem de ratinhas, todas peladinhas, todas do
Paraíso. Muitas mulheres muito jovens andavam ao redor dele, conversavam e
riam.
Uma delas, mais
decidida, ajoelhou-se ao lado dele e começou a puxar a sua barba. Logo muitas
outras fizeram a mesma coisa. E João viu que elas estavam todas entusiasmadas
com sua barba ramalhuda.
Que sorte que
tivera de morrer! Será que era verdadeira a história que o Tio Xavier lhes
havia contado, numa noite de chuva e bebedeira? Era uma história que dizia que
os árabes que morrem em batalha vão direto para o paraíso e lá recebem pelo
menos vinte jovens virgens para amar, mulheres que nunca envelhecem, nunca engordam
e não têm umbigo.
Mas as donas
daquelas lindas ratinhas sem pelos tinham umbigo! Então, o que queria dizer
aquilo tudo?
No instante
seguinte, quando as mocinhas o tomaram pelos braços e o fizeram erguer-se, João
Ramalho compreendeu a verdade: ele não tinha morrido, estava vivo, vivíssimo! E no meio de um grupo de indiazinhas
tagarelas e totalmente peladas. Que raparigas formosas! Que cor maravilhosa de
gente saudável, sem aquelas brancuras flácidas de sua mulher Catarina. E sem
aquele monte despropositado de pentelhos a tudo atrapalhar. Estas aqui andavam
nuinhas em pelo, quer dizer, nuinhas sem pelo, coisas mais formosas nunca lhe
fora dado observar em vida. E como, vistas e sentidas tão de perto, delas não
se exalavam aqueles cheiros azedos que vinham de sua mulher descuidosa e pouco
dada às higienes?
As indígenas
cheiravam a pele! Exalavam um aroma
sutil e adocicado de pele limpa e saudável, de jovens fêmeas em cio. E
hom’essa, que gente mais bem humorada, pois se é! Onde, em todo Portugal, poderia
ele imaginar gente assim tão amistosa, sorridente, e dada por demais ao rir e
ao brincar?
As moças o foram
puxando pelas duas mãos e o empurrando suavemente pelos ombros, até que ele
entendeu que queriam que caminhasse com elas numa certa direção. João seguiu
com elas, enquanto as comia com os olhos, vendo aquele festival de corpos
perfeitos e desnudos, algo com que jamais tinha sequer sonhado na vida. As
indiazinhas percebiam claramente a excitação do português e o atiçavam ainda
mais, parecendo divertir-se muito com aquilo tudo. Conversavam e riam às
gargalhadas. Com a breca, estavam completamente à vontade, nuas daquele jeito
na frente de um homem!
João compreendeu
claramente que havia sobrevivido ao naufrágio. Mas, se isso tinha acontecido,
fora por um verdadeiro milagre, pois a última lembrança que tinha é que havia
desistido de lutar e começara a afundar e a beber daquela água salgada e fria.
Então havia perdido os sentidos. Ora, isso tudo só podia ter acontecido no
exato momento em que seu corpo havia dado à areia. A própria água o havia
jogado na praia e depois, com o recuo da maré, ficara ele ali exposto ao sol,
que devia ter surgido logo depois da tempestade. Esta devia ter sumido tão
rápido quanto aparecera. E ele tinha acordado seco e com aquela sensação
maravilhosa de estar aquecido até à medula dos ossos.
Então aquele
grupo de adolescentes índias o havia encontrado, puxado sua barba ramalhuda e,
fazendo-o levantar-se, elas o tangiam agora em direção a algum lugar, talvez à
aldeia em que viviam. E foi exatamente isso o que se confirmou, quando, minutos
depois, mais indígenas, mulheres de todas as idades, homens e crianças,
começaram a aparecer e a cercar o pequeno grupo jovem em marcha. Eram, todos
eles, simpáticos, sorridentes e amistosos.
E foi assim que
João Ramalho começou a sua longa história por esses brasis de Nosso Senhor,
onde haveria de ser o fundador de Santo André, de São Vicente, com Martim
Afonso e de São Paulo, com Manoel da Nóbrega.
MILTON MACIEL é escritor
profissional, com 29 obras publicadas em três idiomas. É conferencista
internacional, ghost writer e criador
dos cursos THE PUBLISHABLE WRITER, nos Estados Unidos, e O ESCRITOR PUBLICÁVEL,
no Brasil, cursos que formam escritores auto-editores independentes, nas áreas
de ficção, não-ficção e marketing de livros. Vive em Miami (USA) e Joinville
(SC).
e-mail: miltmaciel@gmail.com
editora: www.ideleditora.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário