domingo, 18 de maio de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO   
MILTON MACIEL 
Extraído de “DE FRANÇA E BRASIL, o Pau de Tinta Vai à França”, VOL 1. Publicado, com adaptações, em SAGANOSSA (edição Associação Confraria das Letras - Joinville, 2014)

Os ventos chegaram rápidos e muito rápidos cresceram, surpreendendo até os mais experientes marinheiros e comandantes. Com eles vieram as nuvens carregadas e das nuvens carregadas desabou o dilúvio. Relâmpagos iluminaram a escuridão que se fez em pleno dia e as ondas subiram, agigantando-se muito mais altas que as caravelas. E justamente aquela em que João Ramalho estava foi a única que não resistiu ao empuxo das ondas. A caravela foi a pique e afundou já às vistas da costa brasileira.

Então João Ramalho teve certeza que a praga de Catarina de Balbode se cumpria: "Filho desobediente e cabeçudo, bicho da terra, o mar castiga!" Ainda assim decidiu que não entregaria a carcaça facilmente à morte. Agarrado a um pequeno pedaço de trave, conseguiu manter-se boiando e foi nadando com um esforço sobre-humano em direção à costa que avistava, iluminada pelos coriscos. Quando estava quase chegando, no entanto, as forças se lhe esvaíram e João Ramalho aceitou o inevitável. Era o fim. Não conseguia mais manter os olhos abertos, os músculos lhe doíam como se tivessem agulhas por toda a extensão do corpo. João largou a trave e fez uma última arremetida desesperada em direção à areia branca. Tarde demais, no entanto: a exaustão dominou-o e ele começou a afundar, engolindo água e não conseguindo mais respirar. Tudo ficou totalmente escuro. A praga de sua mãe voltou-lhe uma última uma vez à memória:

– Como engajar-te, ó gajo sem juízo?! Tu nunca entraste num navio, o dia que fizeres isso vais dar-te muito mal. Não foste talhado para ser homem do mar, criatura. Tu és bicho da terra como teu pai e meu pai. E bichos da terra o mar não aceita de bom alvitre. Eu t’o proíbo, ouviste bem? t’o proíbo! E, se um dia me desobedeceres, então hás de encontrar que o mar vai engolir-te, perecerás numa tempestade. É assim que o mar castiga filhos desobedientes e cabeçudos como tu. Se me desobedeceres, perecerás numa tempestade!

O último lampejo de vida lhe trouxe à lembrança os eventos daquele final do ano de 1512, em sua cidadezinha natal de Vouzela, Portugal:

– Não vais, não vais e não vais! Está decidido! Eu sou tua mãe e tu me deves obediência. Não vais! Eu não t’o permitirei ou não me chamo Catarina Afonso de Balbode. E não se fala mais nisso!

Catarina de Balbode estava realmente furiosa. Ora, ir-se o seu filhote para Lisboa! Ainda mais com aquela estúpida ideia de engajar-se num navio que demandasse a América. Onde já se viu! Aquele filho era mesmo cabeçudo como o pai. Na certa, se ela deixasse, iria meter os pés pelas mãos. Ah, que dois gajos mais parecidos aqueles! Não havia dois mais parecidos em Portugal, não podia haver! Tinha-se-lhes que trazer de rédea curta.

O marido, o velho João Vieira de Maldonado, até que tinha aprendido a se comportar, com o passar dos anos. Dera-lhe muito trabalho, é verdade. Mais moço, era dado a correr atrás das cachopas e a enrabichar-se por elas. Não que Catarina se importasse, os homens eram todos iguais, conhecia-se um, conhecia-se todos. João Maldonado não era nem um pouco diferente daquele bode velho sempre no cio – seu pai, Joaquim Balbode, que tantos bastardos tinha espalhado pelos arredores todos de Vouzela.

Já temendo por isso num filho tão parecido com o pai – e que, ainda por cima, poderia sair ao avô mulherengo – decidira casá-lo bem moço com uma rapariga séria e de boa família. E, acima de tudo, de cuja virgindade ninguém duvidasse por ali. Ora, essa Catarina Fernandes, baixota e gorducha, com um belo buço preto maior que o da própria futura sogra, como esta de respeitável feiúra também, não era exatamente o sonho dos rapazes do lugar. Muito menos de João Maldonado Filho. A penúltima coisa que um rapaz podia querer era casar aos dezoito anos. A última, é que fosse com Catarina Fernandes.

Mas acabou tendo que casar. Quando Catarina Afonso de Balbode botava uma coisa na cabeça, não havia cristo que conseguisse tirar. Pressionou o marido e o filho por mais de seis meses. Por fim recorreu ao velho artifício de sempre: as pontadas! Caiu de cama com as célebres pontadas no coração, tão fortes que, às vezes, ela chegava a se enganar de lado, acusando-as do lado direito do peito. Queixava-se em altos brados, para que toda a vizinhança pudesse ouvir:

– Ai, que me morro! Que me morro! Mata-me este filho ingrato. Vou-me desta sem ter o gosto de segurar um netinho ao colo. Ai, que morro de pesar!

E redobrava os gritos, os ais, os gemidos. O velho Maldonado, por mais que soubesse que aquilo era manha, era teatro, acabava cedendo. Uma, porque não suportava escândalos e gritarias. Outra porque, por mais que desacreditasse das cenas de Catarina, acabava sempre ficando na dúvida: E se dessa vez fosse verdade? E se a mulher morresse mesmo, se o ataque desta vez fosse verdadeiro? Sempre havia uma primeira vez. E o pobre João Maldonado acabava cedendo.

Quando a pressão do pai veio somar-se à da mãe, já por si irresistível, João Maldonado Filho capitulou. Estava bem, casava-se com aquela moça sem graça, pela qual não sentia nada, absolutamente nada. Ao menos, também não lhe tinha antipatia. E quando soube o valor do dote da moça, ficou entusiasmadíssimo. Valia a pena, sem dúvida. Deitava-se com a rapariga, fazia-lhe o filho que a mãe tanto queria para neto e ficava livre. Inventava uma viagem ou um trabalho bem longe, em Lisboa, se conseguisse. E aí ia ficando por lá, gozando a vida. Ou embarcava, resoluto, para os brasis!

A vida de casado não caiu nada bem ao rapaz. Não só perdeu sua liberdade de ir e vir à hora que quisesse, como também ganhou uma segunda Catarina em tudo igual à primeira. A esposa era uma cópia perfeita de Catarina de Balbode. Sempre de cara fechada, sempre reclamando de algo, sempre achando defeitos para colocar em tudo e em todos. E mandona! Mandona como Catarina velha! Que desastre, onde fora amarrar seu burro!

Na cama era uma verdadeira negação. Não no sentido de que se negasse. Mas não participava de nada. Era como um pedaço de pau. Logo o rapaz perdeu o pouco de desejo que, nessa idade, um homem sente até por buraco de fechadura. Foi parando de procurá-la e ela nunca se queixou disso. Talvez por isso, ou talvez por outra causa, nunca tinha engravidado. A velha Catarina vivia atormentando o filho por esse motivo:

– Me sais um frouxo, nem trepar em cima de uma mulher sabes, para emprenhá-la. Que negação! Me fazes morrer sem ter um neto. Me fazes morrer! Aí, as pontadas!

Mas, num certo dia de sábado, as duas mulheres foram cedo para a missa das seis. Então pai e filho tiveram um conversa decisiva:

– Meu pai, dize-me tu, como aguentas viver com uma esposa como essa, por todos esses anos? Eu estou começando a ver as mesmas coisas na minha e já não suporto mais. Decidi: vou-me embora de Vouzela!

Para sua grande surpresa, o pai não só apoiou sua decisão, como deu-lhe todo o dinheiro que vinha escondendo de Catarina mãe, há muitos e muitos anos, na esperança de um dia ter coragem de fugir, ele também, do seu martírio.

Dois meses tinham-se passado desde aquele sábado memorável para João Maldonado filho. Ou João Ramalho, como o próprio pai passara a chamá-lo daquele dia em diante. Até que era bom, se as pessoas se acostumassem com esse nome, nunca iriam confundi-lo com o do pai. Gostava: João Ramalho, João barbudo, João da barba crespa e arreganhada, da barba ramalhuda!

Pois agora Catarina mãe estava tendo um dos seus velhos ataques de pontada, entremeado de terríveis momentos de falta de ar e dor de estômago. Com se tonta estivesse, a gorda mulher se escorava nas paredes e gritava:

– Ah, mais tu não vais, não, senhor João Ramalho! Então porque tens uma barba ramalhuda já te consideras um homem capaz de desobedecer tua mãe? Ah, mas deixa que, antes que me mates do coração, dou-te eu mesma o corretivo, filho ingrato!

E Catarina mãe arrancou o avental da grossa cintura e ameaçou bater com ele, enrolado, na cabeça do filho, que saiu de casa rindo. Passou por Catarina esposa, que assistia a tudo atentamente da entrada da casa. João encarou-a com um sorriso estranho e ela o olhou com deboche, dando toda razão à sogra, evidentemente.

João voltou-se para a casa e encarou as duas Catarinas. A moça, roliça e feia, do lado de fora; a velha, feia e roliça, na soleira da porta. E João, o ramalhudo, sentindo-se um grande homem, falou bem baixinho para si:

– Até nunca mais, suas rolhas-de-poço de maus bofes! Quedem-se por aí a retorcer seus bigodes! Adeus!

Mas agora, três meses depois disso, a praga da mãe tinha se cumprido: filho desobediente, o mar castiga! Bicho da terra, o mar engolia-o, impiedoso, inclemente, frio, escuro. Morria...

Depois de um longo tempo, João Ramalho teve a sensação de estar como que despertando de um sonho. Então aquilo é que era morrer! Havia morrido afogado e agora estava deitado de barriga para cima em algum lugar que não sabia o que fosse. Estava completamente seco e um calor agradável tomava conta de todo seu corpo. Que delícia para quem, momentos antes, lutava como um louco contra aquela água gelada. Um calor gostoso, que chegava a lhe dar quentura até nos ossos! E uma ardência diferente na pele. Ah, se morrer era assim, então morrer era bom! A praga de sua mãe se cumprira, mas ele não estava infeliz. De olhos fechados, continuou desfrutando daquele calor amigo, que parecia vir de algum sol que existia também no outro mundo.

Então pareceu-lhe ouvir algo como cochichos e risadas leves de pessoas e uma sombra toldou-lhe a visão de luz avermelhada, que se infiltrava através de suas pálpebras fechadas. João Ramalho abriu os olhos e o que viu deixou-o extasiado. Sim senhor, estava morto e bem morto! Mas estava no Paraíso! Pois além daquele calor maravilhoso, além daquele sol dourado, o que ele viu logo acima de sua cabeça lhe deu essa certeza:

Uma ratinha!!!

Sim, não havia dúvida! Era mesmo uma ratinha, aquela mimosa rachinha que as mulheres têm no meio das pernas, só que essa não tinha aquele tufo de pelos negros e crespos, tão ramalhudos quanto sua própria barba. Era uma ratinha sem pelos. Aí mesmo é que João Ramalho teve certeza que estava no Paraíso. Pois essa era sua concepção de Paraíso há muito tempo: um lugar onde um homem chega e encontra uma mulher maravilhosa e jovem a esperá-lo. Uma só? Não, o que João via agora, a pairar sobre ele, era uma nuvem de ratinhas, todas peladinhas, todas do Paraíso. Muitas mulheres muito jovens andavam ao redor dele, conversavam e riam.

Uma delas, mais decidida, ajoelhou-se ao lado dele e começou a puxar a sua barba. Logo muitas outras fizeram a mesma coisa. E João viu que elas estavam todas entusiasmadas com sua barba ramalhuda.

Que sorte que tivera de morrer! Será que era verdadeira a história que o Tio Xavier lhes havia contado, numa noite de chuva e bebedeira? Era uma história que dizia que os árabes que morrem em batalha vão direto para o paraíso e lá recebem pelo menos vinte jovens virgens para amar, mulheres que nunca envelhecem, nunca engordam e não têm umbigo.

Mas as donas daquelas lindas ratinhas sem pelos tinham umbigo! Então, o que queria dizer aquilo tudo?

No instante seguinte, quando as mocinhas o tomaram pelos braços e o fizeram erguer-se, João Ramalho compreendeu a verdade: ele não tinha morrido, estava vivo, vivíssimo! E no meio de um grupo de indiazinhas tagarelas e totalmente peladas. Que raparigas formosas! Que cor maravilhosa de gente saudável, sem aquelas brancuras flácidas de sua mulher Catarina. E sem aquele monte despropositado de pentelhos a tudo atrapalhar. Estas aqui andavam nuinhas em pelo, quer dizer, nuinhas sem pelo, coisas mais formosas nunca lhe fora dado observar em vida. E como, vistas e sentidas tão de perto, delas não se exalavam aqueles cheiros azedos que vinham de sua mulher descuidosa e pouco dada às higienes?

As indígenas cheiravam a pele!  Exalavam um aroma sutil e adocicado de pele limpa e saudável, de jovens fêmeas em cio. E hom’essa, que gente mais bem humorada, pois se é! Onde, em todo Portugal, poderia ele imaginar gente assim tão amistosa, sorridente, e dada por demais ao rir e ao brincar?

As moças o foram puxando pelas duas mãos e o empurrando suavemente pelos ombros, até que ele entendeu que queriam que caminhasse com elas numa certa direção. João seguiu com elas, enquanto as comia com os olhos, vendo aquele festival de corpos perfeitos e desnudos, algo com que jamais tinha sequer sonhado na vida. As indiazinhas percebiam claramente a excitação do português e o atiçavam ainda mais, parecendo divertir-se muito com aquilo tudo. Conversavam e riam às gargalhadas. Com a breca, estavam completamente à vontade, nuas daquele jeito na frente de um homem!

João compreendeu claramente que havia sobrevivido ao naufrágio. Mas, se isso tinha acontecido, fora por um verdadeiro milagre, pois a última lembrança que tinha é que havia desistido de lutar e começara a afundar e a beber daquela água salgada e fria. Então havia perdido os sentidos. Ora, isso tudo só podia ter acontecido no exato momento em que seu corpo havia dado à areia. A própria água o havia jogado na praia e depois, com o recuo da maré, ficara ele ali exposto ao sol, que devia ter surgido logo depois da tempestade. Esta devia ter sumido tão rápido quanto aparecera. E ele tinha acordado seco e com aquela sensação maravilhosa de estar aquecido até à medula dos ossos.

Então aquele grupo de adolescentes índias o havia encontrado, puxado sua barba ramalhuda e, fazendo-o levantar-se, elas o tangiam agora em direção a algum lugar, talvez à aldeia em que viviam. E foi exatamente isso o que se confirmou, quando, minutos depois, mais indígenas, mulheres de todas as idades, homens e crianças, começaram a aparecer e a cercar o pequeno grupo jovem em marcha. Eram, todos eles, simpáticos, sorridentes e amistosos.

E foi assim que João Ramalho começou a sua longa história por esses brasis de Nosso Senhor, onde haveria de ser o fundador de Santo André, de São Vicente, com Martim Afonso e de São Paulo, com Manoel da Nóbrega.

MILTON MACIEL é escritor profissional, com 29 obras publicadas em três idiomas. É conferencista internacional, ghost writer e criador dos cursos THE PUBLISHABLE WRITER, nos Estados Unidos, e O ESCRITOR PUBLICÁVEL, no Brasil, cursos que formam escritores auto-editores independentes, nas áreas de ficção, não-ficção e marketing de livros. Vive em Miami (USA) e Joinville (SC).

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