A Parusia: Como foi volta de Jesus Cristo à Terra
MILTON MACIEL
Vaticano, sede da Congregação Para a Doutrina da Fé, 23 de Maio de 2005. Às 14 horas,
quatro homens estão sentados à mesa de reuniões. Sente-se no ar um clima de
grande tensão. Alto, loiro, Padre Kleinubing tem olhos azuis de expressão
angustiada, sob os óculos sem aro. À direita dele, baixa estatura, pele escura,
cabelos crespos grisalhos, calva incipiente, semblante tranquilo, está Padre
Cícero Ramon. É o vigário da paróquia de Igarassu, Pernambuco, Brasil, que está
proibido de rezar missas e obrigado ao voto de silêncio desde o mês de janeiro.
Do outro lado da mesa, em frente a ele, cenho cerrado, ar de grande
preocupação, a autoridade que lhe aplicou as sanções – o cardeal alemão
Heinrich Volkmann, prefeito da Congregação Para a Doutrina da Fé, sucessor do Cardeal
Ratzinger, desde o mês passado sua Santidade Papa Bento XVI. Completando o
grupo, Padre Leonardi, italiano, assessor de Wolkmann. O cardeal foi o primeiro
a falar:
– Senhores, como
sabem, o assunto de que vamos tratar é da maior gravidade e deve continuar no
mais absoluto sigilo. Se chegar ao conhecimento da mídia e do público, as
conseqüências serão imprevisíveis e, certamente, terríveis para nossa Santa Igreja.
Por essa razão foi que impus o voto de silêncio a Padre Cícero. Mandei Padre
Kleinubing ao Brasil porque ele nasceu lá, domina o idioma. E agora que ele acaba
de regressar, trazendo-nos Padre Cícero, peço-lhe que nos apresente suas
conclusões.
– Eu estive com
Ele, Eminência! Com Ele! E não o reconheci! Pequei por soberba e por racismo, qualidades
negativas que tentei em vão esconder de mim mesmo. Nasci em Schröder, Santa
Catarina, mas foi na Alemanha que fiz minha carreira eclesiástica e onde o
bondoso cardeal Volkmann me conheceu.
Graças a ele, faço parte da Congregação, desde 2001, quando mudei para o
Vaticano. Quando estourou o caso do
beato brasileiro, o cardeal me incumbiu de acompanhar as investigações da Cúria
Metropolitana do Recife. Foi lá que tive a oportunidade de conhecer o padre
Cícero Ramon. E fui visitar o Homem na cadeia, Eminência! O vigário de Igarassu
insistia o tempo todo que esse homem era Nosso Senhor Jesus Cristo redivivo! Padre
Cícero, por solicitação do Arcebispo de Recife e Olinda, disfarçou-se de homem
comum e entrou para o grupo de seguidores do tal beato. Depois de ficar onze
meses como peregrino, tendo-se tornado bem próximo do líder, o padre passou a
acreditar piamente que aquele homem era mesmo Jesus Cristo que tinha voltado à
Terra. A Parusia!
Padre Kleinubing
fez um grande esforço para controlar sua emoção e conseguiu prosseguir:
- Quando Padre
Cícero começou a falar isso em público e o assunto chegou à Congregação, nós o
mandamos silenciar imediatamente. Quando cheguei ao Recife, quase Natal de 2004,
coincidiu de o Homem e seu grupo chegarem lá também. Mas ele foi logo preso e
ficou detido numa delegacia de Polícia. Padre Cícero Ramon ficou desesperado e
me suplicou para usar minha posição de membro do Vaticano para pressionar o
arcebispo, de forma que a Igreja Católica se empenhasse na libertação do homem.
Eu disse que só o faria depois de entrevistar o tal beato na cadeia e me
convencer que ele era efetivamente Jesus Cristo. Antes disso, ouvi o relato do
padre e confesso que fiquei bastante impressionado. Então a Cúria me forneceu o
dossiê completo da investigação, também algo bem surpreendente. Vejam, eu
trouxe uma cópia de tudo comigo. Deixem que eu lhes leia o trecho mais
importante:
“Cúria Metropolitana da Arquidiocese de Recife e
Olinda, 21 de Janeiro de 2005. Caso Severino
de Maria Zacarias, tido como beato por pessoas do povo nordestino.
Nascido em 8/2/1971, na Serra da Costela, limites da Paraíba, em Jacarará,
município de Poções, Pernambuco. Dos pais não há registro senão dos prenomes:
um certo Zacarias, retirante e carpinteiro. E uma tal Maria de Zacarias, lavradora.
Tipo físico: mulato, 1,80 m, cabelo sarará, usa óculos. Não usa barba.
Vestimentas: usa sempre uma túnica similar a uma batina, de cor branca, sandálias
e chapéu de couro. Teve estudos: graduação e mestrado em Ciências Sociais na
Universidade Federal de Pernambuco. Era professor adjunto quando, aos 30 anos,
abandonou tudo e começou uma longa marcha a pé, de mais de 2000 quilômetros,
partindo do Recife com meia dúzia de pessoas, entre elas uma estudante de
pós-graduação de Letras, Maria Milena, que consta ser sua mulher, fora dos sagrados
laços do matrimônio, porém.”
“A longa jornada
estendeu-se por três anos e no percurso esse homem foi fazendo pregações
doutrinárias subversivas, voltadas contra as instituições e contra
nossa Santa Igreja, uma série de blasfêmias e heresias. Leia-se, por exemplo, à
pagina 27 deste relatório, um trecho de um dos documentos que foi apreendido
com o homem:
“De noite tu vives
na tua palhoça,
de dia na roça de
enxada na mão.
Julgando que Deus é
um Pai vingativo,
não vês o motivo da
tua opressão.
Tu és nesta vida um
fiel penitente,
um pobre inocente no
banco dos réus.
Caboclo, não guarda
contigo essa crença,
a tua sentença não
parte do Céus.”
“Consta que o texto, evidentemente
subversivo, é de um certo Antônio Gonçalves da Silva, vulgo Patativa do Assaré, felizmente já
falecido e sobre o qual não temos maiores informações. O fato é que, com o
passar do tempo e da peregrinação, esse falso profeta começou a arregimentar
seguidores, pessoas simples e ignorantes, que passaram a ver nele uma espécie
de santo ou profeta. Temos inclusive o testemunho de um padre da nossa Igreja,
ao qual o Cardeal Arcebispo de Recife e Olinda determinou que, disfarçado,
aderisse a esse bando para saber quem era aquele homem misterioso, que, ao cabo
de três anos de pregação, já tinha mais de mil seguidores diretos na jornada,
fora as multidões que deixou afetadas em todos os lugares em que passou, em
Pernambuco, Ceará, Paraíba, Alagoas e Bahia.”
“Declaração
do Padre Cícero Romão, da paróquia de Igarassu, Pernambuco, em depoimento à Polícia Civil
desse Estado, quando foi obrigado a falar. Nos recintos da Santa Igreja ele
está impedido de fazê-lo, porque, por ordem de sua Eminência, o Cardeal Volkmann,
da Congregação Para a Doutrina da Fé,
esse padre está atualmente proibido de rezar missas e colocado sob voto de
silêncio. Diz o padre:
“Estou convencido da
santidade desse homem. Eu, pessoalmente, acompanhando-o pelo sertão da Paraíba
e de Pernambuco nestes últimos onze meses, junto com seus fiéis, o vi realizar
prodígios e milagres. Ele curava doentes, abençoava lavouras, fazia partos
difíceis de animais nas propriedades pobres, ajudava com seus homens nas
colheitas. E, mais de uma vez, quando a fome era muito grande para todos, ele
alimentou todo mundo com um pouco de jerimum ou macaxeira e um naco de carne seca, que ia
multiplicando. E ele podia, quando imprescindível, transformar água em mel-de-engenho
e rapadura. Seus homens e ele mesmo cortavam cana na safra, para ganhar algum
dinheiro. Mas, pela filosofia do líder, tudo que cada um ganhasse tinha que
juntar ao fundo comum, para justa divisão. Eu acredito na santidade dele e para
mim, como padre, não resta a menor duvida que ele é mesmo Nosso Senhor Jesus
Cristo, que voltou à Terra.”
“Era
assim que viviam, num típico modelo comunista, subversivo. Saiu o visionário do
Recife, há coisa de uns três anos, com meia dúzia de pessoas e retornou com
mais de mil a segui-lo. Isso, por si só, já caracterizava um indivíduo
politicamente perigoso, os órgãos de segurança do governo e do exército estavam
de olho nele, acompanhando sua marcha à medida que ele se aproximava do Recife.”
“Chegaram nesta capital no dia 23 de
Dezembro. Deixando a quase totalidade do grupo em Paulista, o líder do
movimento entrou em Recife com apenas 48 homens e mulheres. Foram direto para a catedral metropolitana e promoveram um comício
em frente a ela, onde o perigoso indivíduo falou por cerca de duas horas contra
nossa Santa Madre Igreja (e contra o Santo Padre), acusando-a de falsa herdeira
de Jesus Cristo. Depois uma parte desses 50 indivíduos entrou no maior Shopping
Center da cidade e organizou outra prédica, desta vez contra o sistema
industrial, comercial e financeiro do Brasil. A polícia militar foi chamada e
daí resultou o maior quebra-quebra. Os PM prenderam todos os baderneiros que
não conseguiram fugir.”
“Já o indivíduo
Severino foi preso pela Polícia Civil em frente à catedral mesmo e levado para
uma delegacia, onde consta ter sido barbaramente espancado, por ter desacatado
o delegado e todos os policiais. Chamou-os de desonestos, venais e assassinos.
Depois de espancado, ele foi levado à presença do próprio Secretário de
Segurança, Dr. João P. Lattes, na Secretaria. Este o interrogou pacientemente,
mas o homem não colaborava. Seus seguidores todos, assim como o padre já
referido, afirmam que ele é Jesus Cristo que voltou à Terra.”
“Quando o
Secretário perguntava se ele era Jesus, ele respondia sempre: “O meu nome é Severino, não tenho outro de pia.” E mais do que isso recusou-se a
falar. O Secretário devolveu-o então à delegacia do Dr. Caio Fass, onde,
testemunhas afirmam, o prisioneiro foi de novo submetido a outro “corretivo”,
incluindo pau-de-arara e choque elétrico. Mas manteve-se mudo.”
“Temos um relato
confiável, depoimento às pags. 37 a 49 deste dossiê, feito por Genésio de
Almeida, escrivão da mesma delegacia e testemunha ocular de todos os fatos
ocorridos naquelas dependências. Relatou o referido escrivão que o Dr. Caio
Fass perdeu o controle quando o interrogado o chamou de ladrão e assassino. E
mencionou, na ordem certa e com as datas corretas, todas as negociatas feitas
pelo delegado em concorrências públicas, armadas ali mesmo na delegacia.”
´Mencionou
desvios de cocaína apreendida e os dois assassinatos ordenados pelo delegado em
Novembro passado. Diz a testemunha que, ao fazer tais afirmações, o homem
praticamente assinou sua sentença de morte. Era como se ele estivesse querendo
se fazer matar. Diz textualmente o escrivão: “Naquela noite, eu mesmo ajudei o carcereiro a esvaziar uma cela lá dos
fundos, deixando ali só dois presos, por ordem expressa do delegado. Na hora eu
entendi que aqueles também estavam condenados, pois eram traficantes da facção rival à do delegado. E
foi dito e feito.”
“No outro dia,
quando o Sr. Almeida chegou à delegacia, viu que todos os três presos tinham
sido metralhados juntos. Os corpos seriam removidos em seguida, estavam
esperando o rabecão. Mas o corpo do indivíduo Severino desapareceu da cela na
frente de todos. E reapareceu caminhando em direção à porta de saída, com sua
túnica toda branca, sem uma só mancha de sangue, mas com 22 perfurações de
bala.´
“Isso se deu
justamente na hora em que o delegado Caio Fass vinha chegando. Este lhe deu voz
de prisão e, não atendido, descarregou no homem os seis tiros do seu revólver
38. Nada aconteceu ao homem, foi como se as balas tivesse passado através dele, mas morreram na hora a faxineira Honorina e o
escrivão Horácio. Isso acabou com a carreira do delegado, que foi processado,
exonerado e hoje está internado numa clínica psiquiátrica.
Isso encerrava a leitura do dossiê. Todos
esperaram, respeitosamente, até que padre Kleinubing enxugasse as lágrimas. Ele
então continuou:
– Sabe, Padre
Leonardi, eu fui visitá-lo na delegacia no mesmo dia de sua prisão, pressionado
por Padre Cícero. Fiquei sozinho numa cela com ele, que já estava bem machucado
pela violência dos policiais. Perguntei como podíamos ajudá-lo. Ele simplesmente
riu de mim: “A sua Igreja?! Ora, padre, volte para o seu Vaticano, deixe-me terminar minha missão em paz.” Ainda assim
insisti e lhe perguntei:
– O seu nome é Jesus? – ao que ele respondeu simplesmente: “O meu nome é Severino, não tenho outro de
pia” – e isso me fez desistir de ajudá-lo. Ele deitou em mim então um olhar
como eu nunca tinha visto num ser humano: Um olhar que era pura compaixão, puro
amor, como se estivesse me perdoando por minha indiferença. E por meu preconceito. Fiquei abalado, porém eu já tinha formado um
juízo preconcebido sobre ele. Afinal eu estava em frente a um NEGRO, um mulato escuro, alto e magro,
sem barba, mas com um cabelo estilo black
power enorme e um par de óculos redondos. Eu... eu preciso confessar que o
meu racismo ancestral falou mais alto, era óbvio que eu não queria aceitar um
Jesus Cristo com aquela aparência, para mim estranha. Contudo, para minha
grande infelicidade hoje, ele era mesmo
Jesus Cristo! Todas as investigações levadas a efeito depois de sua morte o
confirmaram. Como o cardeal já sabe, hoje não temos mais nenhuma dúvida: Ele
era mesmo Nosso Senhor! E eu
não reconheci e não o ajudei, tendo estado a menos de um metro dele. Ah, padre,
como o orgulho e a soberba podem perder um pecador!
Foi só então que
Padre Cícero Ramon disse algo:
– Sim, ele veio,
“mas não o reconheceram, antes fizeram
com ele tudo o que fizeram.”
Padre Leonardi
interveio:
– Mas o que
significa isso afinal? Que disparate é esse?
Ao que o cardeal
replicou simplesmente:
– Significa que aquele
homem era mesmo nosso amado Mestre Jesus.
E, mais uma vez, nós não o reconhecemos e, antes, fizemos com ele tudo o que
fizemos. Esse é o mais doloroso segredo que tenho carregado sozinho nestes
últimos dias, desde que a investigação que fizemos no Brasil comprovou, sem a
menor dúvida, a identidade do homem assassinado na delegacia: era Jesus, que
cumprindo a Parusia, voltou a nós.
– Mas, Cardeal,
como pode ele ser o Cristo, se falou coisas terríveis contra a própria Igreja
dele?
– Contra a NOSSA
Igreja, Leonardi! A nossa Igreja, que
há muitos séculos deixou de ser a Igreja Dele.
Foi isso que ele veio nos dizer. Lamentavelmente, quando o descobrimos, já era
tarde demais. Ele se foi outra vez, não somos dignos de sua presença.
Padre Leonardi deixou-se desabar no sofá
quase sem respiração, tinha os olhos esbugalhados num gesto de puro pânico, a
cabeça quase explodindo de dor.
Então o cardeal Volkmann, bastante emocionado, dirigiu-se diretamente ao vigário de Igarassu e o que disse
deixou Padre Leonardi atônito e Padre Kleinubing feliz:
–Apostate, meu
filho. Apostate. Eu lhe suplico, leve sua pregação cristã renovada para fora de
nossa Igreja. Torne-se um apóstata, eu lhe darei todo o apoio possível, de
forma velada. Mas não fique mais nesta Igreja, lidere o movimento que vai
resultar na nova Igreja Cristã, pois
a força de Nosso Senhor já se faz sentir e dos, já hoje, milhares de seguidores
que ele deixou, discípulos partem agora mesmo para conquistar o mundo. Mas eu
lhe suplico: Dê-me tempo para ir preparando a transição, mantendo por enquanto
a Igreja Católica ainda unida, até chegar a hora de entregá-la ao sucessor de Bento
XIV, para as graves definições finais, quando sua Igreja haverá de redimir o que de bom tiver sobrado da nossa. Agora vá, meu filho, nós lhe
seremos eternamente gratos. O senhor é um privilegiado, Padre Cícero, conviveu
meses a fio com Nosso Senhor. O que eu não teria dado para merecer tal
oportunidade e tal honra!...
Padre Cícero sertanejo, sacerdote por
vocação, seguidor, discípulo e agora o primeiro apóstolo de Nosso
Senhor Severino Zacarias, entendeu que aquele era o fim de sua presença
no Vaticano e em sua Igreja. Saiu à rua andando com serenidade. Sim, caminhava
em direção ao futuro, trabalharia em favor das duas Igrejas, da nova e da
velha, faria o que suas forças permitissem para deixar que o cardeal Ratzinger
exercesse o seu papado sem que fosse perturbado. Já era demais a dor do segredo
que, certamente, o cardeal Volkmann lhe haveria de colocar sobre os alquebrados
ombros quase octagenários. E o dia que o fizesse...
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