MILTON MACIEL
79 – UMA ORGÂNICA SURPRESA!
Fim do cap. 78: "Então os dois policiais desdobraram-se em mesuras e agradecimentos ao incrível profissional Alcebíades Trancoso, o papa dos papa-defuntos catarinenses, quiçá de todo o Brasil. Despediram-se dele e foi cada um no encalço de um dos dois médicos emissores dos atestados de óbito dos “amarelos” restantes."
Naquela manhã, bem antes
que o delegado e seu aprendiz de feiticeiro fossem ter com o respeitado
papa-defuntos Alcebíades Trancoso, em sua Funerária Paz do Meu Amor, Celso
Teles apareceu na empresa com mais uma de suas surpresas fulminantes. Eram onze
da manhã quando ele falou para sua anjinha loira:
– Meu bem, você agora vai
ter que sair comigo. Tenho uma surpresinha para você. Não é grande coisa, mas
acho que você é até capaz de gostar. Vamos lá?
Larissa apanhou a pequena
bolsa e correu para o estacionamento, muito à frente de Celso, mostrando a
impetuosidade de uma criança que dispara na corrida para ganhar um brinquedo
novo. Gládis, que a tudo assistia, falou para Celso:
– Ai, jefito, cuidado com ela, pra ela não
cair. Ela vai desmaiar com certeza, é muita coisa pra ela aguentar, você sabe.
– E você já sabe o que é,
sua feiticeira?
– Ora, é claro que sei,
não é! Senti na hora que você ia abrir a boca, quando chegou. Mas vá devagar,
não diga de repente, deixe ela se acostumar, gostar do lugar, ficar com vontade
de ter uma coisa igual ou parecida, ter ela mesma a ideia de comprar algo
assim. Sabe, com a Lissinha não é uma boa ideia dar surpresas do jeito que você
adora. Não quando se trata de uma coisa tão grande e importante assim, que
significa quase que a vida para ela.
– Puxa, espanholita,
agora você me deixou meio em dúvida. O que eu faço, então?
– Agora vá em frente,
chefe, não tem mais como voltar atrás. Mas faça como eu lhe disse, diga que é
de um amigo ou cliente, que você quer que ela veja uma com bastante tempo para
andar por tudo. No caminho, já lá dentro, diga que é para ver se ela gostaria
de ter uma coisa assim. E deixe o resto vir naturalmente. Não fale de cara que
você já comprou e quer dar de presente para ela. Está errado. Deixe que ela
queira comprar. E que ela compre, com o dinheiro dela. Corrija o seu erro, erro
de homem apaixonado, cego dos dois olhos e da cabeça.
Celso encostou na parede,
meneou a cabeça e suspirou:
– Caramba, espanholita, o
que ia ser de mim – e do meu amor – se não fosse você? Sua bruxinha, você tem
toda a razão, toda razão deste mundo! Olhe só a barbeiragem que eu ia fazer!
Que bola fora ia ser, se eu não desse a sorte de você estar aqui, justo agora,
quando eu vim procurar Lissinha. Claro, ela é que tem que querer, querer a tal
ponto que queira comprar. E com o dinheiro dela, que é até maior do que o meu.
– Isso, chefe, deixe que
ela queira, decida, compre, pague. Se for um presente, nunca vai ter o mesmo
valor. Neste caso, dê algo diferente, depois! Plantas, por exemplo.
Celso fez que sim com a
cabeça, agradeceu mais uma vez e apressou-se a sair, pois Larissa já estava há
um bom tempo esperando junto ao Corolla fechado.
Quando o carro começou a
andar, Larissa, toda entusiasmada e impaciente começou o interrogatório:
– É de comer, amor?
Celso sacudiu a cabeça,
rindo:
– Ah, mas não é mesmo; pelo menos, por enquanto, não recomendo...
– De vestir, então?
– Não, senhora.
– Livro! Adoro livros. É
livro?
– Não é, mas você vai
precisar de muitos livros por causa disso.
– Ai, amor, assim você me
deixa perdida. E mais louca de curiosidade ainda.
Celso aproveitou pra
começar a corrigir seu erro:
– Olhe, meu amor, não é bem
um presente desse tipo. É só uma sugestão, uma coisa eu quero que você veja e
conheça. O presente é só isso, é levar você num certo lugar. Um lugar que eu
acho que você vai adorar. Esse é o presente. Então não precisa ficar se
atormentando, tentando adivinhar. Não é uma coisa, é um lugar.
– Ah, então eu vou ficar
bem quietinha e esperar. Até porque a gente está saindo da cidade, agora. É
noutro município? Jaraguá?
– Minha anjinha, lá vem
você com suas adivinhas de novo. Espere um pouco mais, a gente chega lá em
menos de quinze minutos agora. Vá apreciando a passagem, aqui começa a zona
rural. Veja só que beleza.
Larissa voltou-se para
sua direita e imediatamente seu olhar se deixou espraiar por todo a belíssima
paisagem de um campo de pastagem, entremeado por algumas árvores e um lago
paradisíaco. Seus pensamentos começaram a voar e a agrônoma que existiu sempre
dentro dela, desde garotinha, assumiu o controle. Encantada com a as coisas que
ia vendo e anotando mentalmente, esqueceu completamente de voltar a importunar
seu companheiro com mais perguntas. De vez em quando ela falava algo, às vezes
mais para si mesma, outras para chamar a atenção de Celso para alguma coisa
diferente ou bonita:
– Um monjolo! Um monjolo,
amor! Há quantos anos que eu não via um! Que massa!
Ou, pouco depois:
– Olhe só, amor, que
riachinho mais lindo! E a pontezinha, então! Parece de cartão postal. A gente
pode parar aqui um pouquinho?
Paravam, desciam, Larissa
se deliciava, molhava os pés, batia fotos com o celular. Depois seguiam em
frente, ate que ela pedisse pra parar em algum outro ponto que a entusiasmasse.
Como aconteceu, quando viu um pórtico imponente de entrada em uma propriedade,
à beira do asfalto:
– Ai, amor, olha só que
portão mais lindo, que pórtico! E a estradinha que leva para dentro, que
máximo. Toda de arbustos, estes aqui se chamam sansão-do-campo, viram uma
tremenda cerca viva. Que gente mais caprichosa, mais de bom gosto, que fez isto
aqui. Parece que é de uma fazenda grande.
– É, sim, meu anjo. É de
uma fazenda de um conhecido nosso. Pois é aqui o nosso destino hoje. A gente veio
visitar esta propriedade. Eu tive a ideia de trazer você para ver uma fazenda
que é um verdadeiro modelo para esta região. É de gado de leite. E tem árvores
frutíferas também.
Larissa saltou no pescoço
de Celso e cobriu seu rosto e lábios de beijos:
– Ai, amor, que presente
mais lindo que você me deu! Eu vou adorar, vou adorar. Muito obrigada, querido.
E correu para destravar a
porteira, para deixar o carro passar. E, para não perder a oportunidade de fazer
sua molecagem, pulou sobre a porteira e deixou-se levar por ela, enquanto ela
se abria a favor da gravidade.
– Ui, delícia! Eu adorava
fazer isso quando era criança. Padrinho Fúlvio me levava escondida na chácara
de um pessoal conhecido dele, só para eu poder brincar assim numa porteira que
tinha lá. Minha mãe nunca que ia deixar, é claro. Posso fazer mais, amor? Será
que não aparece pessoal da fazenda e acha ruim?
– Claro, Lisinha. Quantas
vezes você quiser. Nós temos todo o tempo do mundo. E não vai aparecer ninguém,
não. Fique à vontade.
E riu satisfeito. Ora,
quem haveria de reclamar, se desde 40 horas atrás, o dono da fazenda era ele
mesmo!
Larissa balançou-se na
porteira pelo menos umas dez vezes, até achar que já estava abusando. Então
pediu que Celso passasse com o carro, passou a pé, e trancou a porteira de
novo.
De novo no carro,
percorreram certa de 800 metros entre árvores e arbustos que margeavam a
estradinha de entrada. De repente, esta fez uma curva suave e desembocou...
numa visão de puro êxtase para Larissa!
Dali se descortinava todo
um complexo montado para a produção de leite. Larissa reconheceu de imediato a
construção sólida da sala de ordenha, com suas ordenhadeiras meticulosamente
suspensas. Viu atrás a grande lagoa de decantação, usada para receber os resíduos
da limpeza diária da sala, gerando material para fertirrigação. Ao lado desta
viu os inconfundíveis piquetes de pastejo rotativo Voisin, matéria que a tinha
tanto encantado no curso de agronomia.
Todos sabiam que Larissa
Silva tinha feito e completado o curso, graduando-se engenheira agrônoma. O que
ninguém comentava, no entanto, é que ela tinha sido sempre a melhor estudante
do seu curso, fechando todos os anos com o primeiro lugar na turma. Pra ela,
concretamente, nunca qualquer colega ou professor pôde aplicar a brincadeira
maldosa da “loira burra”.
A própria Larissa
eximia-se de comentar essa sua condição de super-estudante. Claramente porque
não gostava de ser mostrar melhor que os outros em nada. Isso tinha a ver com a
marca indelével que sua beleza extrema provocava, fazendo com que as pessoas só
visem nela o seu aspecto exterior. Tal coisa a contrariava demais, porque lhe
trazia de volta a a insuportável carga dos seus tempos de menina-beleza e de
Miss Amarante.
Detestando ser tão bela,
fechava-se em copas, porque sabia que os homens todos viriam se insinuando de
todas as formas, das sutis e galantes até às mais grosseiras e as que assumiam
a detestável forma de assédio. Por outro lado, ela sabia muito bem, desde
menininha, que essa mesma embalagem exterior praticamente lhe cortava toda
possibilidade de ter amigas sinceras. Para acrescentar mais peso à sua
condição, ainda havia a de ser “a menina mais rica da cidade”, a que tinha o
carro mais imponente, E, claro, a eterna Miss Amarante.
Ela cresceu, portanto,
detestando ser considerada uma “exibida”, uma narcisista, como os outros
pareciam considerá-la. E, por idêntica razão, não falava de sua condição de
melhor aluna da turma, de agrônoma premiada na solenidade de formatura com um
brasão da Faculdade. Acreditava que isso também a faria parecer “exibida”,
metida.
Mas, como aluna
aplicadíssima, leitora ávida e executante de todas as práticas que o curso lhe
permitiu, era-lhe fácil reconhecer que estava numa fazenda de leite. Viu, ao
longe, que havia um bosque de árvores em alinhamento simétrico, uma evidente
plantação de árvores frutíferas, que não conseguiu reconhecer devido à
distância.
A moça deixou Celso
terminar de estacionar o carro e se precipitou correndo em direção à sala de
ordenha da fazenda. Viu que ela estava escrupulosamente limpa e bem arrumada.
Mas, em toda pastagem visível dali, não se avistava nenhum animal. Quando Celso
chegou enfim ali, ela lhe perguntou:
– Amor, você sabe onde
estão as vacas? Porque esta é uma fazenda de leite, é evidente. Aqui é a sala
de ordenha. Onde estão os animais. Há outro campo mais adiante?
– Os animais foram todos
retirados. Vendidos. Na verdade, querida, esta fazenda estava à venda. É, de
fato, uma fazenda de produção de leite B. Eu achei que você iria gostar de
vê-la, porque ela é muito bem organizada e pertence ao um colega seu, um
agrônomo de Minas Gerais, que esteve pouco tempo por aqui. Montou a fazenda,
com a pastagem e o pomar de frutas, que eu não sei quais são. Mas o homem foi
fazer um curso no exterior, na Holanda e vai ficar mais de três anos lá. E aí,
coerente com o ditado que diz que o olho do dono é que engorda a boiada,
decidiu vender a propriedade, de porteira fechada. Mas vendeu todos os animais
antes de colocar tudo à venda, para que eles não ficassem maltratados na
ausência dele.
– Taí um cara decente!
Ele já foi embora?
– Não tenho certeza, mas
acho que já foi. Mas deixou um procurador, é claro, encarregado da propriedade
e da venda. Ah, e aqui tem um capataz, um cara que dizem que é muito decente,
que mora numa das casas daqui com a família.
– E tem casas aqui? Onde?
– Ah, para ver as casas,
você tem que entrar no carro de novo. Vamos até lá?
Larissa voou para o carro
e saltou dentro dele. Celso dirigiu por cerca de um minuto só, lentamente, e chegou em
outro ponto, ainda mais elevado, de onde se podia ver um complexo de casas.
Havia cinco delas de menor porte e, um pouco mais afastada, uma evidente
casa-sede, com piscina. Era uma construção térrea, muito moderna.
Larissa comentou:
– Acho que ele já
encontrou essas casas construídas aqui, não foi? Porque é dureza você construir
tudo isso, fazer uma sede maravilhosa dessas, e ter que ir embora, deixando
tudo pra trás, vendendo sabe-se lá por que preço. E ainda investir tudo o que
ele investiu em formação, pastos, pomar, galpões, lagoa...
– Pois foi o homem mesmo
que fez tudo. Levou uns três anos montando e construindo, depois mudou a vida
dele toda e decidiu ir para a Europa.
– Mas porque ele não
segurou isso com ele? Por que vender? Podia arrendar. Ou deixar fechada, como
está agora, com um mínimo de pessoal e gastos, ter tudo de volta nas mãos dele
quando retornar ao Brasil.
– É, mas o cara está
absolutamente decidido. No duro, eu desconfio que ele pretende ficar lá pela
Europa mesmo. Ele é casado com uma holandesa, que conheceu numa viagem a
Salvador, no ano passado. Aí se mexeu e conseguiu o tal curso de mestrado e um
trabalho por lá, também. Me parece que é em empresa da família da esposa, se eu
não entendi errado.
– Ah, então, nesse caso,
ele tem mesmo é que vender enquanto ainda está no Brasil. E levar esse capital
para se garantir na Europa.
– É o que eu acho,
também. E, quando soube desta propriedade, eu tratei de dar uma chegada aqui.
Vim com o nosso prefeito, o Marcelo, que é veterinário e entende muito bem de
fazendas e de área rural. E ele ficou muito entusiasmado. Disse que, se tivesse
dinheiro disponível, comprava esta fazenda na hora. E, por uma razão principal.
Acho que você também vai gostar de saber essa razão. Por isso é que eu resolvi
trazer você aqui.
– Puxa, então deve ser
muito especial mesmo. Qual é essa razão, amor:
– A propriedade é toda Certificada
Orgânica!
– Nossa! Deus do céu, que
maravilha! Isso é mesmo especial demais, amorzinho. Quem comprar esta
propriedade tem a obrigação de manter a produção toda orgânica. É um achado!
– Pois é, o homem impôs
essa condição ao corretor. Que ele procurasse alguém que se pudesse acreditar
que não ia detonar toda a propriedade, passando produzir com agrotóxicos e
adubos químicos.
– Ai, amor, isso seria um
grande crime, depois de todo o esforço desse meu colega mineiro.
– Pois é, você me falou
que é fissurada em agricultura orgânica e que, quando tivesse uma propriedade,
iria fatalmente submetê-la ao processo de conversão em orgânica.
– Sim, um processo que
pode levar de dois a quatro anos para ficar pronto, para a área toda poder
receber certificação orgânica.
CONTINUA
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