sexta-feira, 18 de março de 2016

LUA  OCULTA – 79  
MILTON MACIEL 

79 – UMA ORGÂNICA SURPRESA!
Fim do cap. 78:  "Então os dois policiais desdobraram-se em mesuras e agradecimentos ao incrível profissional Alcebíades Trancoso, o papa dos papa-defuntos catarinenses, quiçá de todo o Brasil. Despediram-se dele e foi cada um no encalço de um dos dois médicos emissores dos atestados de óbito dos “amarelos” restantes." 

Naquela manhã, bem antes que o delegado e seu aprendiz de feiticeiro fossem ter com o respeitado papa-defuntos Alcebíades Trancoso, em sua Funerária Paz do Meu Amor, Celso Teles apareceu na empresa com mais uma de suas surpresas fulminantes. Eram onze da manhã quando ele falou para sua anjinha loira:

– Meu bem, você agora vai ter que sair comigo. Tenho uma surpresinha para você. Não é grande coisa, mas acho que você é até capaz de gostar. Vamos lá?

Larissa apanhou a pequena bolsa e correu para o estacionamento, muito à frente de Celso, mostrando a impetuosidade de uma criança que dispara na corrida para ganhar um brinquedo novo. Gládis, que a tudo assistia, falou para Celso:

– Ai, jefito, cuidado com ela, pra ela não cair. Ela vai desmaiar com certeza, é muita coisa pra ela aguentar, você sabe.

– E você já sabe o que é, sua feiticeira?

– Ora, é claro que sei, não é! Senti na hora que você ia abrir a boca, quando chegou. Mas vá devagar, não diga de repente, deixe ela se acostumar, gostar do lugar, ficar com vontade de ter uma coisa igual ou parecida, ter ela mesma a ideia de comprar algo assim. Sabe, com a Lissinha não é uma boa ideia dar surpresas do jeito que você adora. Não quando se trata de uma coisa tão grande e importante assim, que significa quase que a vida para ela.

– Puxa, espanholita, agora você me deixou meio em dúvida. O que eu faço, então?

– Agora vá em frente, chefe, não tem mais como voltar atrás. Mas faça como eu lhe disse, diga que é de um amigo ou cliente, que você quer que ela veja uma com bastante tempo para andar por tudo. No caminho, já lá dentro, diga que é para ver se ela gostaria de ter uma coisa assim. E deixe o resto vir naturalmente. Não fale de cara que você já comprou e quer dar de presente para ela. Está errado. Deixe que ela queira comprar. E que ela compre, com o dinheiro dela. Corrija o seu erro, erro de homem apaixonado, cego dos dois olhos e da cabeça.

Celso encostou na parede, meneou a cabeça e suspirou:

– Caramba, espanholita, o que ia ser de mim – e do meu amor – se não fosse você? Sua bruxinha, você tem toda a razão, toda razão deste mundo! Olhe só a barbeiragem que eu ia fazer! Que bola fora ia ser, se eu não desse a sorte de você estar aqui, justo agora, quando eu vim procurar Lissinha. Claro, ela é que tem que querer, querer a tal ponto que queira comprar. E com o dinheiro dela, que é até maior do que o meu.

– Isso, chefe, deixe que ela queira, decida, compre, pague. Se for um presente, nunca vai ter o mesmo valor. Neste caso, dê algo diferente, depois! Plantas, por exemplo.

Celso fez que sim com a cabeça, agradeceu mais uma vez e apressou-se a sair, pois Larissa já estava há um bom tempo esperando junto ao Corolla fechado.

Quando o carro começou a andar, Larissa, toda entusiasmada e impaciente começou o interrogatório:

– É de comer, amor?

Celso sacudiu a cabeça, rindo:

– Ah, mas não é mesmo; pelo menos, por enquanto, não recomendo...

– De vestir, então?

– Não, senhora.

– Livro! Adoro livros. É livro?

– Não é, mas você vai precisar de muitos livros por causa disso.

– Ai, amor, assim você me deixa perdida. E mais louca de curiosidade ainda.

Celso aproveitou pra começar a corrigir seu erro:

– Olhe, meu amor, não é bem um presente desse tipo. É só uma sugestão, uma coisa eu quero que você veja e conheça. O presente é só isso, é levar você num certo lugar. Um lugar que eu acho que você vai adorar. Esse é o presente. Então não precisa ficar se atormentando, tentando adivinhar. Não é uma coisa, é um lugar.

– Ah, então eu vou ficar bem quietinha e esperar. Até porque a gente está saindo da cidade, agora. É noutro município? Jaraguá?

– Minha anjinha, lá vem você com suas adivinhas de novo. Espere um pouco mais, a gente chega lá em menos de quinze minutos agora. Vá apreciando a passagem, aqui começa a zona rural. Veja só que beleza.

Larissa voltou-se para sua direita e imediatamente seu olhar se deixou espraiar por todo a belíssima paisagem de um campo de pastagem, entremeado por algumas árvores e um lago paradisíaco. Seus pensamentos começaram a voar e a agrônoma que existiu sempre dentro dela, desde garotinha, assumiu o controle. Encantada com a as coisas que ia vendo e anotando mentalmente, esqueceu completamente de voltar a importunar seu companheiro com mais perguntas. De vez em quando ela falava algo, às vezes mais para si mesma, outras para chamar a atenção de Celso para alguma coisa diferente ou bonita:

– Um monjolo! Um monjolo, amor! Há quantos anos que eu não via um! Que massa!

Ou, pouco depois:

– Olhe só, amor, que riachinho mais lindo! E a pontezinha, então! Parece de cartão postal. A gente pode parar aqui um pouquinho?

Paravam, desciam, Larissa se deliciava, molhava os pés, batia fotos com o celular. Depois seguiam em frente, ate que ela pedisse pra parar em algum outro ponto que a entusiasmasse. Como aconteceu, quando viu um pórtico imponente de entrada em uma propriedade, à beira do asfalto:

– Ai, amor, olha só que portão mais lindo, que pórtico! E a estradinha que leva para dentro, que máximo. Toda de arbustos, estes aqui se chamam sansão-do-campo, viram uma tremenda cerca viva. Que gente mais caprichosa, mais de bom gosto, que fez isto aqui. Parece que é de uma fazenda grande.

– É, sim, meu anjo. É de uma fazenda de um conhecido nosso. Pois é aqui o nosso destino hoje. A gente veio visitar esta propriedade. Eu tive a ideia de trazer você para ver uma fazenda que é um verdadeiro modelo para esta região. É de gado de leite. E tem árvores frutíferas também.

Larissa saltou no pescoço de Celso e cobriu seu rosto e lábios de beijos:

– Ai, amor, que presente mais lindo que você me deu! Eu vou adorar, vou adorar. Muito obrigada, querido.

E correu para destravar a porteira, para deixar o carro passar. E, para não perder a oportunidade de fazer sua molecagem, pulou sobre a porteira e deixou-se levar por ela, enquanto ela se abria a favor da gravidade.

– Ui, delícia! Eu adorava fazer isso quando era criança. Padrinho Fúlvio me levava escondida na chácara de um pessoal conhecido dele, só para eu poder brincar assim numa porteira que tinha lá. Minha mãe nunca que ia deixar, é claro. Posso fazer mais, amor? Será que não aparece pessoal da fazenda e acha ruim?

– Claro, Lisinha. Quantas vezes você quiser. Nós temos todo o tempo do mundo. E não vai aparecer ninguém, não. Fique à vontade.

E riu satisfeito. Ora, quem haveria de reclamar, se desde 40 horas atrás, o dono da fazenda era ele mesmo!

Larissa balançou-se na porteira pelo menos umas dez vezes, até achar que já estava abusando. Então pediu que Celso passasse com o carro, passou a pé, e trancou a porteira de novo.

De novo no carro, percorreram certa de 800 metros entre árvores e arbustos que margeavam a estradinha de entrada. De repente, esta fez uma curva suave e desembocou... numa visão de puro êxtase para Larissa!

Dali se descortinava todo um complexo montado para a produção de leite. Larissa reconheceu de imediato a construção sólida da sala de ordenha, com suas ordenhadeiras meticulosamente suspensas. Viu atrás a grande lagoa de decantação, usada para receber os resíduos da limpeza diária da sala, gerando material para fertirrigação. Ao lado desta viu os inconfundíveis piquetes de pastejo rotativo Voisin, matéria que a tinha tanto encantado no curso de agronomia.

Todos sabiam que Larissa Silva tinha feito e completado o curso, graduando-se engenheira agrônoma. O que ninguém comentava, no entanto, é que ela tinha sido sempre a melhor estudante do seu curso, fechando todos os anos com o primeiro lugar na turma. Pra ela, concretamente, nunca qualquer colega ou professor pôde aplicar a brincadeira maldosa da “loira burra”.

A própria Larissa eximia-se de comentar essa sua condição de super-estudante. Claramente porque não gostava de ser mostrar melhor que os outros em nada. Isso tinha a ver com a marca indelével que sua beleza extrema provocava, fazendo com que as pessoas só visem nela o seu aspecto exterior. Tal coisa a contrariava demais, porque lhe trazia de volta a a insuportável carga dos seus tempos de menina-beleza e de Miss Amarante.

Detestando ser tão bela, fechava-se em copas, porque sabia que os homens todos viriam se insinuando de todas as formas, das sutis e galantes até às mais grosseiras e as que assumiam a detestável forma de assédio. Por outro lado, ela sabia muito bem, desde menininha, que essa mesma embalagem exterior praticamente lhe cortava toda possibilidade de ter amigas sinceras. Para acrescentar mais peso à sua condição, ainda havia a de ser “a menina mais rica da cidade”, a que tinha o carro mais imponente, E, claro, a eterna Miss Amarante.

Ela cresceu, portanto, detestando ser considerada uma “exibida”, uma narcisista, como os outros pareciam considerá-la. E, por idêntica razão, não falava de sua condição de melhor aluna da turma, de agrônoma premiada na solenidade de formatura com um brasão da Faculdade. Acreditava que isso também a faria parecer “exibida”, metida.

Mas, como aluna aplicadíssima, leitora ávida e executante de todas as práticas que o curso lhe permitiu, era-lhe fácil reconhecer que estava numa fazenda de leite. Viu, ao longe, que havia um bosque de árvores em alinhamento simétrico, uma evidente plantação de árvores frutíferas, que não conseguiu reconhecer devido à distância.

A moça deixou Celso terminar de estacionar o carro e se precipitou correndo em direção à sala de ordenha da fazenda. Viu que ela estava escrupulosamente limpa e bem arrumada. Mas, em toda pastagem visível dali, não se avistava nenhum animal. Quando Celso chegou enfim ali, ela lhe perguntou:

– Amor, você sabe onde estão as vacas? Porque esta é uma fazenda de leite, é evidente. Aqui é a sala de ordenha. Onde estão os animais. Há outro campo mais adiante?

– Os animais foram todos retirados. Vendidos. Na verdade, querida, esta fazenda estava à venda. É, de fato, uma fazenda de produção de leite B. Eu achei que você iria gostar de vê-la, porque ela é muito bem organizada e pertence ao um colega seu, um agrônomo de Minas Gerais, que esteve pouco tempo por aqui. Montou a fazenda, com a pastagem e o pomar de frutas, que eu não sei quais são. Mas o homem foi fazer um curso no exterior, na Holanda e vai ficar mais de três anos lá. E aí, coerente com o ditado que diz que o olho do dono é que engorda a boiada, decidiu vender a propriedade, de porteira fechada. Mas vendeu todos os animais antes de colocar tudo à venda, para que eles não ficassem maltratados na ausência dele.

– Taí um cara decente! Ele já foi embora?

– Não tenho certeza, mas acho que já foi. Mas deixou um procurador, é claro, encarregado da propriedade e da venda. Ah, e aqui tem um capataz, um cara que dizem que é muito decente, que mora numa das casas daqui com a família.

– E tem casas aqui? Onde?

– Ah, para ver as casas, você tem que entrar no carro de novo. Vamos até lá?

Larissa voou para o carro e saltou dentro dele. Celso dirigiu por cerca de um minuto só, lentamente, e chegou em outro ponto, ainda mais elevado, de onde se podia ver um complexo de casas. Havia cinco delas de menor porte e, um pouco mais afastada, uma evidente casa-sede, com piscina. Era uma construção térrea, muito moderna.

Larissa comentou:

– Acho que ele já encontrou essas casas construídas aqui, não foi? Porque é dureza você construir tudo isso, fazer uma sede maravilhosa dessas, e ter que ir embora, deixando tudo pra trás, vendendo sabe-se lá por que preço. E ainda investir tudo o que ele investiu em formação, pastos, pomar, galpões, lagoa...

– Pois foi o homem mesmo que fez tudo. Levou uns três anos montando e construindo, depois mudou a vida dele toda e decidiu ir para a Europa.

– Mas porque ele não segurou isso com ele? Por que vender? Podia arrendar. Ou deixar fechada, como está agora, com um mínimo de pessoal e gastos, ter tudo de volta nas mãos dele quando retornar ao Brasil.

– É, mas o cara está absolutamente decidido. No duro, eu desconfio que ele pretende ficar lá pela Europa mesmo. Ele é casado com uma holandesa, que conheceu numa viagem a Salvador, no ano passado. Aí se mexeu e conseguiu o tal curso de mestrado e um trabalho por lá, também. Me parece que é em empresa da família da esposa, se eu não entendi errado.

– Ah, então, nesse caso, ele tem mesmo é que vender enquanto ainda está no Brasil. E levar esse capital para se garantir na Europa.

– É o que eu acho, também. E, quando soube desta propriedade, eu tratei de dar uma chegada aqui. Vim com o nosso prefeito, o Marcelo, que é veterinário e entende muito bem de fazendas e de área rural. E ele ficou muito entusiasmado. Disse que, se tivesse dinheiro disponível, comprava esta fazenda na hora. E, por uma razão principal. Acho que você também vai gostar de saber essa razão. Por isso é que eu resolvi trazer você aqui.

– Puxa, então deve ser muito especial mesmo. Qual é essa razão, amor:

– A propriedade é toda Certificada Orgânica!

– Nossa! Deus do céu, que maravilha! Isso é mesmo especial demais, amorzinho. Quem comprar esta propriedade tem a obrigação de manter a produção toda orgânica. É um achado!

– Pois é, o homem impôs essa condição ao corretor. Que ele procurasse alguém que se pudesse acreditar que não ia detonar toda a propriedade, passando produzir com agrotóxicos e adubos químicos.

– Ai, amor, isso seria um grande crime, depois de todo o esforço desse meu colega mineiro.

– Pois é, você me falou que é fissurada em agricultura orgânica e que, quando tivesse uma propriedade, iria fatalmente submetê-la ao processo de conversão em orgânica.

– Sim, um processo que pode levar de dois a quatro anos para ficar pronto, para a área toda poder receber certificação orgânica.

– Então agora você já está entendo por que eu trouxe você. Esta fazenda já está certificada, você ganha dois a quatro anos de tempo. Basta que você corra na frente e compre esta propriedade!

CONTINUA

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